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4.2 Das escravas amas de leite às babás

4.2.1 A mãe preta e o pretuguês

Vende-se uma preta, moça, com bom leite, com o filho ou sem elle, que tem dous mezes (Jornal do Commercio,8/08/1850)181.

Escrava e filho. Quem quizer comprar uma mulata muito moça, sem vícios, sabendo cosinhar, lavar e engommar e estando com um filho de dous mezes e abundante leite, nesta typographia se dirá quem vende (Correio Paulistano,05/02/1865)182.

Aluga-se, para ama-de-leite, uma preta com leite de 15 dias, muito limpa, de muito bom leite e sabe coser e tratar bem de crianças (O Annuncio: Folha Diaria, 26/02/1874)183.

Esses anúncios de jornais nos dão uma ideia de quão cotidiana era a presença da ama de leite ou mãe preta ainda no século XIX, sendo um hábito que já vinha desde o início da colonização. Também nos permite perceber o pouco ou nenhum cuidado desprendido por parte dos senhores de escravos com os filhos dessas mulheres. Lembrando que se elas estavam sendo alugadas ou vendidas para amamentar é porque tinham se tornado mães recentemente, mas, apesar disso, a presença de seus filhos nem sempre era explicitada nos anúncios. Havia anúncios em que nem se mencionava a idade e a existência dessas crianças; havia outros em que se esclarecia que a venda não exigia que se os levassem com elas; outros ainda, em que mãe e filho eram vendidos juntos e aqueles em que o filho era dado ou vendido separadamente.

Dá-se a criar uma crioulinha de 6 mezes (Diario do Rio de Janeiro, 2/07/1850)184.

Vende-se uma negrinha de perto de 2 annos, muito linda e socegada (Jornal do Commercio, 24/07/1850)185.

Assim, eram vários os destinos do filho da mãe preta: muitas vezes morriam, vários eram dados a criar mediante algum aluguel, havia os que eram levados com suas mães, os que

181 MAGALHÃES & GIACOMINI, 1983, p. 77. 182 DEIAB, 2006, p. 8.

183 MAGALHÃES & GIACOMINI, 1983, p. 77. 184 MAGALHÃES & GIACOMINI, 1983, p. 79. 185 MAGALHÃES & GIACOMINI, 1983, p. 79.

eram vendidos para outros senhores e em muitas ocasiões levados à roda dos enjeitados186.

Nos casos em que o filho permanecia junto à mãe, ele era preterido na alimentação, uma vez que a prioridade e garantia de saciedade deveria ocorrer em relação ao filho do senhor.

O que é preciso ficar salientado desde já é que ao cumprir a função de mãe preta de filhos brancos, a mulher negra ficava impossibilidade de ser mãe preta de filhos pretos, ou melhor, mãe de seus próprios filhos. Assim, a contrapartida da suposta promoção da senzala à casa-grande era a apropriação de sua capacidade de amamentação, com a consequente negação do exercício da sua maternidade (MAGALHÃES & GIACOMINI, 1983). Isso exige, no mínimo, que ponhamos em questão a visão romantizada da relação entre a mãe preta e o menino branco que a coloca como encarnação da ternura e do amor: difícil imaginar que uma escrava, em nome do seu amor ou bondade, preferisse cuidar desse filho branco à custa de abandonar ou preterir seu próprio filho. Ou seja, tratava-se de uma relação absolutamente ambígua que mesclava o afeto e a promiscuidade, com hierarquia e diferença (DEIAB, 2006).

O hábito de as mães ricas não amamentarem seus filhos foi importado de Portugal, como já vimos, mas no caso brasileiro argumentava-se que as mulheres brancas ficavam esgotadas com a ação do clima nos trópicos. Em contrapartida, as negras “organisadas para viver nas regioes calidas em que sua saude prospera mais que em qualquer outra parte, adquirem nesta condição climaterica um poder de amamentação que a mesma zona recusa geralmente ás mulheres brancas”(IMBERT, 1843 apud FREYRE, 2008, p. 444). Assim como existiam argumentos científicos do porquê as escravas deveriam ser amas de leite, havia orientações aos senhores de como as escolher: “os peitos deverão ser convenientemente desenvolvidos, nem rijos nem molles, os bicos nem muito pontudos nem encolhidos, accommodados ao labio do menino” (IMBERT, 1843 apud FREYRE, 2008, p. 445).

Nos séculos XVII e XVIII, os mestres na arte de curar e criar meninos em Portugal divergiam de qual seria a ama ideal: a loira ou a negra. Mas aqui, segundo Gilberto Freyre “a tradição brasileira não admite dúvida: para ama de leite não há como a negra” (FREYRE, 2008, p. 444).

A gente, por exemplo, como mulher negra, nunca precisou lutar para estar no mercado de trabalho, a gente sempre esteve. Na verdade, desde a época da senzala quem estava no mercado de trabalho sendo escravizada para a mulher branca,

186 Segundo Jurandir Freire Costa (1989) a roda dos enjeitados ou rodados expostos tinha esse nome por tratar-se

de um cilindro de madeira colocado na entrada da Casa de Roda ou Casa dos Enjeitados, instituição criada em 1738 por Romão Mattos Duarte, com o objetivo “caritativo-assistencial de recolher crianças abandonadas”(COSTA, 1989, p.164). A roda, por ter uma parte da superfície lateral aberta, permitia que fossem introduzidos os “expostos” sem que fosse possível ver desde dentro quem os tinha colocado lá.

inclusive cuidando dos filhos da mulher branca, para a mulher branca ser sinhá, era a escrava, era a mulher negra (Daniela Gomes, jornalista, 2013)187.

A partir de 1850, uma onda de epidemias atingiu o Rio de Janeiro e milhares de pessoas morreram devido à febre amarela, cólera, varíola, escarlatina, tuberculose, malária e sífilis. As epidemias atingiram principalmente os escravizados que moravam na cidade, os libertos, os brancos e pobres que se concentravam nos cortiços, que passaram a ser vistos como foco de contágio (DEIAB, 2006, p. 9). Neste momento, as amas de leite passam a ser vistas como possíveis transmissoras de sífilis ou tuberculose através do leite. A taxa de mortalidade infantil nesta época era gigantesca188, a ponto de a Academia Imperial de

Medicina, na metade do século XIX, se reunir para tentar responder a duas questões fundamentais: quais seriam as principais causas de mortalidade nos primeiros seis anos de vida e quais as moléstias mais frequentes entre crianças. Além do trato com o cordão umbilical, os banhos, impropriedades da alimentação e vestiário, foram elencados o “aleitamento mercenário” e os “maus costumes” das amas de leite, que transmitiriam sífilis189,

escrófulas, entre outras moléstias (COSTA, 1989, p. 163).

O avanço do pensamento médico-higienista, juntamente com o processo de declínio do sistema escravista e o início da imigração de forma mais sistemática, foram fazendo com que a amamentação realizada pelas escravas fosse declinando (DEIAB, 2006).

Tanto as mudanças econômicas, provenientes da proibição do tráfico em 1850, quanto as mudanças culturais, foram dificultando cada vez mais a presença de escravos domésticos. Os europeus recém-chegados trouxeram com eles a mudança de costumes em função do tipo de preconceito racial que existia na Europa; além do desprezo que nutriam pelos negros – como o nutriam os brancos brasileiros – tinham repulsa a uma maior proximidade com eles.

“A higiene, apontando o escravo como um mal, reforçava a ordem econômica, ensinando a família a prescindir dele. Transformando a necessidade em virtude, os médicos tornavam o inevitável, desejado” (COSTA, 1989, p. 125).

A partir da segunda metade do século XIX, começam a aparecer então imagens divergentes sobre as amas de leite: desde a encarnação do alimento e do cuidado materno e afetuoso, até o risco da transmissão de doenças. Essa mudança de concepção fica evidente na

187 Depoimento no documentário “25 de julho – Feminismo negro contado em primeira pessoa”. Disponível

em:<www.youtube.com/watch?v=J6ev2V-Ee3U>. Acesso em:5 jun. 2014.

188 “Entre 1845 e 1847, o Dr. Haddock Lobo observa que as crianças de 1 a 10 anos concorriam com 51,9% da

mortalidade total” (COSTA, 1989, p. 162).

189 Vale lembrar que: “a crença de que uma negrinha virgem constituía o mais eficiente depurativo para o branco

sifilítico [...] constituía, também, a via pela qual a mulher negra, tornando-se portadora do mal, o transmitia às novas gerações de brancos enquanto ama de leite” (SAFFIOTI, 2013, p. 238).

análise apresentada por Rafaela Deiab (2006) dos retratos de crianças brancas com suas amas de leite realizados à época. Presença indispensável, uma vez que pela baixa qualidade dos negativos era necessário que a criança ficasse imóvel durante um longo tempo, as amas de leite estavam sempre carregando as crianças brancas, demonstrando a segurança e intimidade que a elas transmitiam. Como de 1860 até por volta de 1870 as escravas eram relativamente valorizadas e naturalizadas pela sociedade, e a forma em que apareciam no retrato mostrava o status da casa em que eram propriedade, as fotos trazem a ama negra e a criança branca no mesmo plano, de rostos colados e estando ambos bem focados. Nos retratos próximos ao fim da escravidão, durante a década de 1880, elas passam a um segundo plano: as crianças muitas vezes sentadas em seu colo e elas atrás, desfocadas ou cortadas do retrato. Até que, diante da concepção da escravidão como instituição “retrógrada” e “perigosa”, incompatível com o Brasil “civilizado”, “moderno” e “branco”, elas se tornam um mero apoio, com sua presença sendo indicada de forma cada vez mais encoberta; o que vai aparecendo é somente um rastro de sua presença, “uma mão, um punho, até serem completamente banidas das imagens” (DEIAB, 2006, p. 19).

Essa mudança nos retratos é tomada por Rafaela Deiab (2006) como uma metáfora da escravidão: se de início era mostrada e publicizada, posteriormente passa a ser escondida e retocada, até que é retirada do “(en)quadro nacional”. Mas, continua a autora, “mesmo que encoberta, ela persistiria nos hábitos consolidados durante mais de três séculos” (DEIAB, 2006, p. 20).

A grande questão que retorna e ressoa para nós, como psicanalistas, é de como essa memória de hábitos consolidados durante séculos persistiria ainda que, ou principalmente, por estar encoberta.

Já em 1933 Gilberto Freyre (2008) atribui à relação da escrava que embalava o filho do senhor a transmissão da influência africana presente no modo de falar e de andar, na música, no canto de ninar, na ternura, “em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra” (FREYRE, 1933/2008, p. 367). As críticas que este autor recebeu foram inúmeras, não porque apontasse a presença de laços afetivos inegáveis e trouxesse à discussão a importância dos que foram escravizados na vida sexual e familiar do brasileiro, mas pelo abrandamento das marcas da violência inerentes a essas relações, de saída e estruturalmente, assimétricas e hierárquicas. Como afirma Rafaela Deiab a respeito das relações entre as mães pretas e os meninos brancos: “afeto não anula a violência; proximidade não elimina a diferença” (DEIAB, 2006, p. 198).

Freyre (1933/2008) evoca a importância psíquica própria do ato de mamar – afirmando já ser algo reconhecido pela psicologia da época – chegando à suposição de que a realização de tal ato com a ama negra seria explicação plausível para a predileção ou até exclusivismo de homens brancos nas relações sexuais com mulheres negras.

O autor também reconhece as marcas da presença da ama negra com a criança branca na linguagem infantil e na linguagem em geral. A linguagem infantil, segundo ele, amoleceu nesse contato: “algumas palavras, ainda hoje duras ou acres quando pronunciadas pelos portugueses, se amaciaram no Brasil por influência da boca africana” (FREYRE, 2008, p. 414). E, numa metáfora primorosa, afirma que “a ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles” (FREYRE, 2008, p. 414). É assim que ele nos lembra que a linguagem infantil brasileira traz um sabor quase africano: “cacá, pipi, bumbum, tentém, neném, tatá, papá, papato, lili, mimi, au-au, bambanho, cocô, dindinho, bimbinha. Amolecimento que se deu em grande parte pela ação da ama negra junto à criança; do escravo preto junto ao filho do senhor branco” (FREYRE, 2008, p. 414).

Freyre expande essas marcas até a linguagem como um todo, afirmando que a relação da ama negra com o menino branco, da mucama com a sinhá-moça e do sinhozinho com o moleque, teria acabado com a dualidade entre a língua falada na casa-grande e aquela falada na senzala. De tal modo que palavras africanas fariam parte do uso diário sem que se sentisse o “sabor arrevesado do exótico” ou “vergonha de empregá-las”. Ele nos cita, entre outras, as palavras: cafuné, caçula, batuque, bunda, mucama, tanga, cachimbo (FREYRE, 2008).

A princípio, essas colocações de Gilberto Freyre sobre as transformações na língua nos soam parecidas com as interpretações de Lélia Gonzalez. Mas é preciso frisar que, embora não desconsidere a importância de Casa-Grande & Senzala (FREYRE, 1933/2008), Gonzalez faz questão de apontar o que o autor deixa de afirmar: ser mãe preta não era uma atividade executada por amor ou por bondade, mas pela imposição da condição escrava (BARRETO, 2005). Ou seja: “não aceitamos tais estereótipos como reflexos ‘fiéis’ de uma realidade vivida com tanta dor e humilhação. Não podemos deixar de levar em consideração que existem diferentes formas de resistência. E uma delas é a resistência passiva”(GONZALEZ, 1979 apud BARRETO,2005, p. 39). Alguns anos mais tarde, Lélia Gonzalez será ainda mais incisiva ao discorrer sobre essa forma de resistência: aponta que a mãe preta, na sua relação com o menino branco que amamentava, teria tido um papel revolucionário e silencioso, passando os valores da sua ancestralidade para os brancos. Ela, de forma consciente ou inconsciente, teria africanizado o português, ensinando-o e

transformando-o em pretuguês190: uma linguagem da dominação reempregada para marcar

uma resistência, através do seu uso tanto pelos negros, como pelos indígenas. “Exatamente essa figura [mãe preta] para a qual se dá uma colher de chá é quem vai dar a rasteira na raça dominante” (GONZALEZ, 1984, p. 235). Numa reapropriação e num desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação, a mãe preta teria deixado na memória dos brasileiros brancos a presença africana, ou seja, resistindo e agindo contra o seu próprio dominador (BARRETO, 2005).

“O que a gente quer dizer é que ela não é esse exemplo extraordinário de amor e dedicação totais como querem os brancos e nem tampouco essa entreguista, essa traidora da raça como querem alguns negros muito apressados em seu julgamento” (GONZALEZ, 1984, p. 235).

O que havia sido posto por Freyre nesse amolecimento da língua através da ama preta, com Lélia Gonzalez toma o valor da lalíngua, conceito fundamental para articular a linguagem e o corpo, a língua materna nas suas marcas mais primordiais.

A africanização do português a que Lélia Gonzalez se refere não implica simples mudanças na língua, como se fosse uma questão gramatical ou fonética: o que ela aponta é que, ao ensinar a língua materna, a mãe preta deixou marcas no corpo dos brasileiros. “É importante ressaltar que o objeto parcial por excelência da cultura brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo que, por sua vez, e juntamente com o ambundo, provém do tronco linguístico bantu que ‘casualmente’ se chama bunda)” (GONZALEZ, 1984, p. 238). Lembremos que, para Lacan, “é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas” (LACAN, 1953/1998, p. 277), sendo aqui o termo bunda um exemplo claro dessa criação: tanto assim que Lélia Gonzalez observa que os portugueses não têm bunda, e sim nádegas. Sem dúvida não se pode dizer que um termo equivale ao outro: podemos dizer que criam partes do corpo diferentes, se entendermos que as palavras recobrem e contornam o corpo entendido como corpo erógeno, numa distinção do corpo biológico.

Lélia Gonzalez nos fala do corpo erógeno conforme aponta que os cuidados da mãe preta com o bebê, filho do senhor, incluíam a internalização de valores e o ensino da língua materna. Ou seja, ela chama de língua materna essa que foi transmitida não pelas mães que

190 “É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante

dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo,acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais,que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês” (GONZALEZ, 1984, p. 238).

geraram esses filhos, mas sim a língua daquelas que ela considera que exerceram a função de mãe.

“Que é que amamenta, que dá banho, que limpa cocô, que põe prá dormir, que acorda de noite prá cuidar, que ensina a falar, que conta história e por aí afora? É a mãe, não é? Pois então. Ela [mãe preta] é a mãe nesse barato doido da cultura brasileira” (GONZALEZ, 1984, p. 235). Enquanto a mãe branca seria aquela que somente teria gerado os filhos do senhor, a mãe preta seria aquela que realmente teria exercido a função materna.

É a partir da sua concepção da mãe preta que Lélia Gonzalez nos oferece uma pista para o que iremos considerar as peculiaridades da constituição subjetiva de mulheres negras no nosso país. No seu tom, tão coloquial quanto incisivo, ela resume a mãe preta, afirmando: “ela, simplesmente, é a mãe. É isso mesmo, é a mãe. Porque a branca, na verdade, é a outra” (GONZALEZ, 1984, p. 235). Lélia Gonzalez inverte a lógica em que a mãe branca seria a mãe e a mãe preta, a outra: podemos supor que isso não representa pouca coisa na relação entre mulheres brancas e negras, conforme veremos mais adiante.