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5.1 Mãe é tudo igual, mesmo quando muda o endereço?

5.1.2 Da mulher independente à mulher da vida

No início do século passado, ainda que muitas vezes fosse a mulher pobre quem trazia o sustento principal da casa, o trabalho dela continuava sendo visto como mero suplemento à renda masculina. Em vez de ser admirada por ser “trabalhadora”, tinha que defender sua reputação e facilmente era acusada de “mãe relapsa”. A mulher pobre vivia cercada de uma moralidade oficial completamente descolada de seu cotidiano: segundo a norma, caberia ao homem assegurar o sustento e a elas caberia se ocupar dos afazeres domésticos. Na impossibilidade de cumprir esses valores, buscando escapar à miséria através do seu trabalho, corriam o risco de ser chamadas de “mulheres públicas”, conforme nos lembra Claudia Fonseca (2000b).

Pesquisas desta autora sobre as mulheres pobres da década de 1920 no nosso país, apontam a necessidade de existir um homem em casa como forma de “botar respeito”, e não serem vistas como meretrizes ou “sem moral”.

Analisando processos de apreensão de menores, entre 1901 e 1926, a autora nos aponta como as práticas toleradas no dia a dia adquiriam um caráter de exceção à regra quando eram apresentadas ao juiz. A “moralidade oficial” agia como uma arma de reserva para que certas categorias – burgueses e/ou homens – estigmatizasse outra – pobres e/ou mulheres – no momento de um conflito. “Admira-se, hoje, como esses fofoqueiros do senso comum mantinham a ficção de normalidade, como conseguiam acreditar e convencer os outros de que cada nova transgressão à moral familiar apresentada na justiça era um desvio pontual” (FONSECA, p. 526).

O que poderia ser considerado “falta de moral feminina” seria tão amplo que se tornaria uma arma potencial dirigida a quase qualquer mulher adulta, tanto assim que diversos homens rotulavam suas ex-companheiras de “prostitutas” somente pelo fato de terem se juntado a um novo companheiro. “Qualquer mulher que não correspondia à norma ideal era uma ‘rameira’ em potencial” (FONSECA, 2000b, p. 532).

É bastante curioso, no entanto, escutando as mulheres negras e que vivem sob condições sociais precarizadas, o quanto algumas marcas deste passado tão longínquo permanecem até hoje no imaginário social sobre elas.

Mulher que mora sozinha, mais cobiçada. Acham que é uma qualquer, não respeitam, qualquer um quer chegar, dar uma mexida. Quando uma mulher mora com homem é mais respeitada [...] Às vezes, a mulher tem um homem que mora com ela mas não serve, é só pra dizer que tem um homem, dos outros homens não ficarem mexendo.[...] Às vezes vejo – “Olha a fulana!” – “Não fala isso, cuidado o fulano! Ela tem marido! Ela tem homem!”(Neide, 2013).

A presença de um homem como quase indispensável para “botar respeito” na casa, ou seja, tanto como estratégia de proteção diante da omissão ou insuficiência da polícia, quanto para atestar a integridade moral das mulheres (FONSECA, 2000), também é algo que, vindo desde muitas décadas, permanece no discurso de Neide.

Assim, podemos também sentir uma transmissão pelos subterrâneos da cultura quando Neide nos conta da responsabilidade que recairia sobre ela pelo não cumprimento de um ideal de estrutura e cuidados familiares. Vem de muito tempo o fato de que a maior parte das vezes

fosse sobre a mulher que recaía o não cumprimento deste ideal, fruto do descompasso entre a moralidade oficial e a realidade vivida pela maioria das pessoas.

Comida, dormida não deixei faltar [...] Meus filhos falam que era obrigação minha, “quem mandou botar filho no mundo?”. Mas tem mãe e pai, filho não é feito só de mãe. Respondi: “obrigação dos dois, não tenho culpa do pai não ter responsabilidade”. Aí eles falam: “Por que você arrumou um bêbado?”[...] Acham que a mãe que erra mais (Neide, 2013).

É preciso salientar que não estamos, com isso, negando as conquistas sociais das mulheres ou o aumento de sua participação em setores fundamentais, nem desconsiderando o processo histórico, mas relembrando o que antes afirmamos: é preciso ter cautela para não tomar os novos parâmetros da família “pós-moderna” como algo que se pode usufruir como conquistas de todos. O que é compreendido como novos parâmetros, para as classes abastadas, nem sempre é assim compreendido para as configurações das famílias mais pobres.

A descrição da vida da mulher pobre em relação ao seu trabalho e sua trajetória familiar nos anos 1920, conforme afirmamos, parecem desembocar sempre na ameaça da “mulher decaída”; qualquer deslize jogava a mulher para o campo dos “sem moral”, espaço onde se construía no dia a dia uma moralidade alternativa (FONSECA, 2000).

Não seria também algo dessa transmissão, a ameaça constante de ser reconhecida como “mulher rameira”, “mulher decaída”, “mulher da vida”, “mulher da rua”, o que tanto escutamos na escola em que iniciamos nosso trabalho? Tanto assim que, ao nos contar das inúmeras vezes que foi chamada na escola porque seu filho, de oito anos, estaria com comportamentos agressivos, Neide nos diz:

Em relação à escola, muitas vezes o Marcelo ficava nervoso, aí me chamavam. É que falavam pra ele... chamavam ele de filho da puta, ele ficava muito nervoso (Neide, 2013).

Neide nos trouxe de volta a frequente necessidade de defender a honra destas mulheres, observada por nós na escola, através do relato sobre as atitudes de seu filho: assim como os adolescentes que havíamos escutado dedicavam parte considerável do seu tempo a fazer valer a honra de suas mães, o pequeno Marcelo, ainda que sofrendo as penalidades da escola sobre seu “comportamento inadequado”, não deixava passar em branco essas ofensas.

De Neide ouvimos o que ela reportara da fala do seu filho, mas de Sofia ouvimos, diretamente, as duas pontas deste relato: tanto através do próprio filho, como dela mesma. Inicialmente ouvimos de seu filho a defesa violenta frente à simples menção do nome de sua mãe, sob o argumento de que a estavam chamando de puta, no grupo de adolescentes que coordenávamos. Mas depois fomos ouvi-la e, de alguma forma, ela também nos contou que se sentia acusada e olhada como puta, ainda que de uma maneira subtendida nas perguntas ou no espanto dos outros.

Sofia marca que tem muitos outros interesses, que não se esgotam na presença dos filhos; não esconde seus interesses pelos homens com quem namorou ou casou, apontando um lugar para onde seu desejo se voltaria para além de ser mãe. No entanto, a ausência de uma relação estável e conjugal e a presença de encontros amorosos fora dessa lógica, trariam imediatamente o entendimento de que a mulher independente seria a mulher da vida. Tanto assim que, como vimos, ao ser indagada sobre qual o sentido da pergunta se todos os seus filhos teriam um pai só, Sofia nos responde, imediatamente:

Preconceito. “Se teve nove filhos... será que foi mulher de programa, será que deu para qualquer um?” (Sofia, 2014).

O que Sofia nos explicita é que não se trata de um mesmo cálculo; o número de maridos ou relacionamentos amorosos que possa ter tido não tem correspondência exata com o número de filhos que ela tem: acaso precisaria ter?

Tive sete maridos, só tive filho com três, o resto foi uma convivência, mas tinha isso de ir dormir na casa do outro (Sofia, 2013).

O que aparece claramente na sua fala é que ela faz uma disjunção entre ser mãe e ser mulher. Mas aparece também que ela sente um estranhamento e uma desqualificação que acompanham de forma mais ou menos explícita esta disjunção.

Não foi a primeira vez que Sofia nos disse dessa frase que a ronda. Ao ser vista com seu filho mais velho, um pouco mais claro que ela, nos contou da hipótese, de uma desconhecida, de que este fosse filho de seu patrão, passando instantaneamente de mãe para mucama ou criada amásia, conforme trabalhamos no capítulo anterior.

A ideia da mulher puta não traria a presença de um desejo que não se moldaria à mulher mãe como mulher casta e assexuada, que poderia aparecer também na figura da amante, da concubina, na paixão ou na aventura amorosa? Por que Sofia – como uma mulher

cujo gozo não se esgotaria na relação com um parceiro amoroso colocado na figura de pai de seus filhos e que ao se dizer mãe não o afirmaria desde a posição de mulher casta – precisaria passar desta posição de uma mulher independente para uma puta tão rapidamente e de forma tão inexorável no discurso dos outros?

5.2 A mãe, a mulher e a puta na psicanálise freudiana e algumas dicas de