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2.1 O escravismo e a tentativa de “passar em branco”

2.1.1 Produção dos sem raízes e sem história

O esquecimento deliberado com que foi tratada a escravidão no Brasil não pode ser atribuído a sua pouca importância: há estimativas de que 10,7 milhões de africanos escravizados teriam sido deportados para a América e, destes, 4,8 teriam vindo para o Brasil (LUNA & KLEIN, 2010). Vale lembrar que teriam sido transportados 5,5 milhões para cá, sendo esta diferença devida ao número dos que não sobreviveram à travessia.

Os relatos dos navegadores portugueses ou daqueles a serviço de Portugal que chegaram em solo africano entre o século XV e início do século XVI demonstravam um interesse sobre a diversidade da população nativa, acreditando que era preciso conhecê-la para ampliar relações comerciais. Revelavam um olhar sobre a diversidade física e cultural, descrevendo as nuances de cor de pele, tipo de cabelo, maneira de vestir-se e até práticas religiosas e costumes, permitindo o pouco conhecimento do qual dispomos sobre as populações africanas daquele período. No entanto, isso se perderá por completo conforme o registro passe a ser dos traficantes: a multiplicidade cultural da África passa a ser ignorada na medida em que a relação se transforma em uma relação puramente comercial. Na segunda metade do século XVI todos os africanos que vieram para cá passam a ser reconhecidos apenas como “negros de Guiné”, o que englobava toda a África Ocidental localizada ao norte do Equador (OLIVEIRA, 1997). Embora africanos das mais diversas procedências108 tenham

convivido tanto nas lavouras, como nas cidades e nas minas, tanto no período que corresponde a esse primeiro ciclo, como nos posteriores, não nos restaram informações mais detalhadas sobre a origem dos escravizados africanos deportados para o Brasil. Eles eram identificados pelos locais em que foram capturados e embarcaram em solo africano; com isso, o nome de uma mesma etnia foi utilizado para identificar grupos étnicos distintos procedentes de um mesmo porto (NOGUEIRA, 2011). Os termos que foram utilizados para designar suas origens eram não só genéricos, mas do repertório dos europeus ou das populações locais que os classificavam segundo grupos que já lhes eram conhecidos (OLIVEIRA, 1997).

A falta de confiabilidade e exatidão desses registros, sobre a transportação dos negros africanos para cá, também se deve ao fato de que durante o século XVII os dados eram provenientes, basicamente, de documentação fiscal – em que os artifícios para fugir do controle do Estado e a fraude eram elementos fundamentais (OLIVEIRA, 1997).

108 Embora com participações variadas ao longo dos séculos, presume-se que 94% dos africanos desembarcados

no Brasil eram provenientes de Angola e Congo/Luanda (sudoeste da África), golfo de Benim (oeste) e Moçambique (leste); já os africanos que foram transportados para a América do Norte eram provenientes de outra região, vinham majoritariamente da Senegâmbia (LUNA & KLEIN, 2010, p.169-170).

A produção do esquecimento sobre a experiência escravista109 se inicia, portanto,

juntamente com a deportação dos negros africanos para o Brasil, com os registros e documentos assentados numa relação que transformava cada africano numa mercadoria. A procedência de cada um, seus nomes, as especificidades culturais, não eram considerados nem registrados, uma vez que “este dado não era computado no valor da ‘peça de Guiné’, medida que era calculada com base na idade, no sexo e na força física” (OLIVEIRA, 1997, p. 41).

Quando um navio negreiro aporta, a notícia espalha-se como um rastilho de pólvora. Acorrem, então, todos os interessados na chegada da embarcação com sua carga de mercadoria viva, selecionando do estoque aqueles mais adequados aos seus propósitos, e comprando os escravos da mesmíssima maneira como se compra gado ou cavalos num mercado [...] Há uma grande quantidade de pessoas que fazem um verdadeiro negócio dessa compra e venda de carne humana [...] (Mahommah Baquaqua, ex-africanoescravizado, autobiografia, 1854)110.

Não bastassem a precariedade e a generalização das informações nos títulos de aquisição dos africanos escravizados trazidos ao Brasil, em 1842 é aprovado um decreto que dispensa a apresentação deste título para realizar a primeira matrícula deste: trata-se de um acobertamento e conivência do Estado com uma prática que se tornara ilegal. A primeira lei que proibia a deportação de africanos escravizados para cá foi de 1831, conhecida como Lei Feijó, declarando livres os que chegassem a partir dessa data. Embora não tenha sido revogada, nunca foi cumprida efetivamente e, com raríssimas exceções, não declarou livres aqueles que aqui chegaram após sua promulgação. Assim, a dispensa do título de posse tinha o firme propósito de permitir a matrícula de escravizados cuja procedência era duvidosa, tratando-se basicamente de legalizar aqueles que vieram transportados ilegalmente111.

Ainda que sejam escassos e não confiáveis os dados na transportação dos africanos escravizados, trazendo uma indeterminação e imprecisão dos nomes, origem e pertença

109 Vale lembrar que primeiramente os portugueses recorreram aos povos originários como a principal forma de

mão de obra no continente americano, mas por uma série de razões tanto políticas como culturais e religiosas, o governo de Portugal colocou-se contra a escravização permanente da população indígena (LUNA & KLEIN, 2010, p. 25). Não iremos abordar as questões relativas à população indígena, apesar da relevância do tema, por entender que foge ao recorte de nossa pesquisa.

110 Lara, Silvia Hunold “Biografia de Mahommah G. Baquaqua”.Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8,

n.16, março 88/agosto 88, p. 273-274.

111 A prática de escravização ilegal com a conivência do governo durante o período de 1831 a 1850, que

implicou na vinda de mais de um milhão de africanos nesse período, constituiria argumento suficiente, segundo alguns autores, para “definir a responsabilidade do Estado e sua obrigação de reparar os descendentes pelo descumprimento da legislação brasileira da época” (RICUPERO, 2012, p. 14). De qualquer modo, ainda que antes de 1831 o comércio de africanos escravizados não fosse ilegal, foi reconhecido como crime contra humanidade pela Unesco (MATTOS, 2013, p. 368).

referentes ao período anterior à vinda para o Brasil, é no período pós-abolição que a produção de seres sem direito a raízes e história se faz ainda mais emblemática.