• Nenhum resultado encontrado

3.3 Criminalização da miséria e do conflito: encarceramento e genocídio

3.3.1 Primeiro prende, depois julga

Quando Vera Batista recupera o percurso que vai do século XIII até o grande encarceramento que ocorreu no século XXI, chama a nossa atenção para a produção de uma máquina de controle dos pobres e dos resistentes que foi produzindo sua própria Kultur; ou seja, foi construindo uma civilização que, nas suas entranhas, é punitiva (BATISTA, V., 2011b). Tanto assim que ela aponta a falta de coragem, no Brasil, em se assumir um discurso que deslegitimize o Estado Penal, uma vez que o desejo de punir estaria instaurado e se ancoraria em permanências históricas, nas quais se imbricam tanto uma colonização genocida, quanto o regime de escravidão e a cultura inquisitorial ibérica (BATISTA, V., 2012). As práticas escravistas foram produzindo um estilo punitivo161 que permaneceu após a abolição

160Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/02/1407239-adolescente-e-agredido-a-

pauladas-e-acorrentado-nu-a-poste-na-zona-sul-do-rio.shtml>. Acesso em: 20 mai. 2015.

161Segundo o Código Criminal de 1830 (artigo 60, nota 17), com exceção das penas de morte ou galés, os que

viviam escravizados, quando condenados, teriam todas as demais penas convertidas em açoites. Depois de executada a pena de açoites, estes seriam entregues ao seu senhor, que deveria trazê-los com um ferro, cumprindo privadamente a pena pública, pelo tempo e da maneira que o juiz determinasse. Vale lembrar que os senhores buscavam evitar as galés, tanto por interesses financeiros, como porque temiam que o escravizado as buscasse como melhoramento. Tal situação contrariava o paradigma benthamiano da regra de severidade, em que um prisioneiro não pode ter sua condição melhor do que a dos indivíduos da mesma classe que vivem numa situação de liberdade. A condição de vida do réu já era a pior possível, restando a pena de morte ou um castigo físico doloroso como respostas possíveis aos casos de infrações dos escravizados. “Ou morte, ou tortura, eis o dilema dos penalistas do escravismo” (BATISTA, N., 2006, p.299).

da escravatura, como se o próprio escravismo se prorrogasse e se mostrasse presente na exploração capitalista que o sucedeu, através de uma forma extremamente dura e controladora162 (BATISTA, N., 2011).

Isso significa que nossa “violência policial inscreve-se em uma tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar” (WACQUANT, 1999, p. 5). Vale apontar que quando Maria Rita Khel (2010) afirma a importância de recuperar a memória dos desaparecidos e vítimas da ditadura brasileira (1964- 1984), pois o “esquecimento” da tortura produziria a naturalização da violência como grave sintoma social no Brasil, concordamos com a autora. Porém, na esteira de Wacquant (1999), N.Batista (2011), V. Batista (2012) e Gagnebin (2010), acrescentaríamos que essa prática violenta já se inscreveria numa Kultur de “controle dos miseráveis pela força” que está na origem da história do nosso país e que precisaria também ser relembrada, como afirmamos no capítulo anterior. Esta violência se apoia numa concepção hierárquica de cidadania fundada na oposição entre os selvagens e os cultos, de modo que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem (WACQUANT, 1999) ou, ainda, se mesclam e se sobrepõem.

Tal sobreposição fica evidente com o fim da escravidão, quando os ex-senhores defendem em suas propostas políticas uma tutela direta sobre a liberdade dos negros recém- libertos, com o intuito de os obrigarem a firmar contratos de trabalho. Uma vez que já não era permitida tamanha ingerência na vida dos ex-escravizados obrigando-os ao trabalho, o que se fez foi uma repressão à vadiagem (MATTOS, 2013). Pode-se imaginar que os limites entre essa repressão e o cerceamento da liberdade recém-adquirida ficassem muitas vezes lábeis e a atuação policial se confundisse com o poder dos fazendeiros. Tanto assim que, nos meses que antecederam a República, algumas autoridades policiais se transformaram em braço dos ex- senhores, defendendo seus interesses para condicionar o comportamento dos recém-libertos (MATTOS, 2013).

Analisando diversos processos criminais do século XIX do Tribunal de Relações do Rio de Janeiro, Hebe Mattos aponta que fica patente um assustador descaso com a vida humana, em 1889, quando se tratava de um liberto: enquanto dificilmente os inquéritos se transformavam em processo criminal quando vítima e agressores eram identificados como

162 É exemplar, nesse sentido, a informação de Nilo Batista de que, “numa fábrica da cidade do Rio de Janeiro,

em 1903 – quinze anos após a abolição da escravatura – o patrão mandava açoitar com vara de marmelo operários grevistas tal qual se fizera com escravos na plantagem” (BATISTA, N., 2011, p. 5).

libertos, um liberto podia ser condenado à prisão por injúrias verbais, quando o reclamante não o era (MATTOS, 2013). Os diversos jornais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais analisados por esta historiadora, munidos de exemplos de casos de rebeldia e insubordinação por parte dos ex-escravizados, “procurados com lupas”, nas palavras da autora, buscavam construir a imagem do liberto como despreparado para a liberdade, perigoso e não muito humano, justificando, assim, a necessidade de uma atuação mais enérgica por parte das autoridades policiais, incentivando a formação de guardas particulares nas fazendas e defendendo veementemente que se proibisse o uso de armas de fogo aos libertos (MATTOS, 2013).

Esta colocação não nos parece distante da afirmação de Gas-Pa quando aponta que, apesar de a quilombagem ter sido a primeira forma expressiva de organização combativa da classe trabalhadora brasileira – por ter contribuído para desorganizar a economia escravista, desde aquela época já se teria negado o caráter de preso político163 ao “preto” rebelde. “Por

mais que sua ação organizada e coletiva tenha como fim a subversão de uma ordem, o preto subversivo sempre foi relegado ao status de bandido comum” (GAS-PA, 2014).

O que se está se afirmando é que se não é possível dizer que a miséria ou a pobreza sejam a causa dos crimes, é possível, contudo, afirmar que o nosso modelo econômico e político criminaliza a pobreza e determina os alvos sociais do sistema penal (BATISTA, N., 2011).

É isso o que Gas-Pa denuncia: após mostrar a semelhança entre a imagem atual do jovem negro acorrentado num poste no centro do Rio e as situações de violência sobre os negros no passado escravista, ele salienta que esta cena foi vista “na mesma capital onde um jovem branco que passa com seu carro importado por cima de um ciclista preto, matando-o, é condenado a prestar dois anos de serviços comunitários” (GAS-PA, 2014). Sua correlação metaforiza este ponto fundamental da desigualdade racial presente em nosso país: o “recorte da hierarquia de classes e da estratificação etnorracial e a discriminação baseada na cor, endêmica nas burocracias policial e judiciária” (WACQUANT, 1999, p. 6).

Isso significa que tanto em São Paulo como em outras grandes cidades, os negros não só recebem uma vigilância diferenciada por parte da polícia, como têm mais dificuldade no acesso ao auxílio jurídico e são punidos com penas mais pesadas do que os indiciados brancos, mesmo quando cometem um crime igual (WACQUANT, 1999). Assim também as

163 O que nos parece absolutamente alinhado com a posição do criminólogo Nilo Batista: “Todo crime é político.

‘Nos anos 70, eu me lembro que o Augusto Thompson, [...] deu uma resposta maravilhosa numa conferência, a um aluno que perguntou, ‘professor, qual é a diferença entre criminoso comum e criminoso político?’, e o Thompson falou, ‘a diferença é que o comum também é político, só que ele não sabe’” (BATISTA, N., 2003).

condições durante o período de detenção são mais duras e as violências cometidas no encarceramento são mais graves. “Penalizar a miséria significa aqui ‘tornar invisível’ o problema negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval de Estado” (WACQUANT, 1999, p. 6).

Segundo Vera Batista (2012), nós perdemos o olhar crítico que tínhamos contra o autoritarismo no fim da ditadura e hoje a tortura e o extermínio daqueles identificados como inimigos são aplaudidos. Para a autora, há uma adesão à jurisdicionalização da vida, que traz a abundância de controles sobre os conflitos domésticos e privados e traduz toda a conflitividade em punição, sustentando o grande encarceramento pelo qual vem passando o Brasil (BATISTA, V.,2011a).

“O neoliberalismo abandonou também as ilusões re (ressocializações, recuperações, reeducações) para ir direto ao armazenamento, emparedamento e neutralização” (BATISTA, V., 2012, p.6). Tanto assim que no Brasil a população carcerária passou de 140.000 em 1994 para cerca de 500.000 presos e 600.000 nas penas alternativas em 2011. Embora os Estados Unidos ainda sejam os maiores carcereiros do mundo, esses números demonstram que o Brasil, infelizmente, também ganhou um lugar de destaque nesse quesito (BATISTA, V., 2011a).

A opção pelo encarceramento é denunciada em documento de 2012 do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e Pastoral Carcerária Nacional, que afirma que “a prisão provisória tem sido utilizada em São Paulo como instrumento político de gestão populacional e [...] voltado ao controle de uma camada específica da população”(ITTC, 2012, p. 94).

O que a pesquisa do ITTC e Pastoral Carcerária revelou é que em diversos casos em que o réu estava sendo acusado de um delito para o qual poderia receber, ao final do processo, uma medida ou pena alternativa à prisão, era mantido preso cautelarmente até a sentença definitiva. Ou seja, o princípio da presunção de inocência fica invertido, mantendo-se preso o suspeito de forma automática como se o flagrante já constituísse prova suficiente de culpabilidade. Além disso, a prisão cautelar funciona como a antecipação de uma pena que em mais de um terço dos casos viu-se que nem deveria ser aplicada.

“O fato de que praticamente quatro em cada dez presos provisórios não recebem pena privativa de liberdade [ao final do processo] revela o sistemático, abusivo e desproporcional uso da prisão provisória pelo sistema de justiça no país” (IPEA;DEPEN, 2014, p. 7).

No entanto, novamente é preciso lembrar que isso não se dá de maneira homogênea. Segundo pesquisa realizada na década de 1990 por Sérgio Adorno, “se o crime não é privilégio da população negra, a punição parece sê-lo [...] a discriminação socioeconômica é

frequentemente associada e reforçada pela discriminação racial e étnica”164 (ADORNO, 1996,

p.1). Tanto assim que em levantamento comparativo entre varas e juizados, o que se percebe é “maior número de réus negros nas varas criminais, onde a prisão é a regra, e maior quantidade de acusados brancos nos juizados, nos quais prevalece a aplicação de alternativas penais” (PIMENTA, 2014, p. 1). O que esses dados explicitam é que são “os processos de construção de desigualdades e de reprodução de opressões nas instituições brasileiras, que conferem a cor negra aos nossos cárceres” (PIMENTA, 2014, p. 1). Ou seja, o encarceramento também tem cor.

A gente vê um rico que comete crimes hediondos e não responde por isso. O meu irmão foi acusado de roubo majorado, que é o Artigo 157, sem estar portando nenhuma arma. Está preso há um ano e é réu primário, tinha acabado de fazer 18 anos. Ainda não teve nenhuma audiência. E o pior é que ninguém liga, ninguém percebe que o encarceramento está relacionado com o genocídio (depoimento, rapaz negro ao jornal Brasil de Fato)165.