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Alguns para se conformar com o sofrimento Não olham pro lado

Acham que a culpa vem de dentro

Que um dia a sorte vai virar pro seu lado Um dia vai ser boy e não favelado

Xiii!!! Hã! Doce ilusão

Para cada Pelé tem 50.000 Jão

Mas qual é o problema? Será que isso é normal? Não, a gente vive num mundão desigual

(“Não é culpa sua”, AnarcoFunk BH)150

Sim, não se trata somente de rima: o Brasil é o oitavo país mais desigual do mundo. Segundo o coeficiente Gini, que mede a distribuição de renda em 187 países, somente sete países têm uma distribuição de renda pior que a brasileira151.

Desde os primeiros estudos dos anos 1950152, que começaram a apontar uma outra

face do processo de miscigenação brasileiro, evidenciando a relação entre privilégios e diferenças econômicas e sociais com a questão racial, o tema racial aparece muitas vezes subsumido na abordagem da questão de classes (SCHWARCZ, 2014).

Mas é preciso frisar que “mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa. Assim, tentar diluir o debate sobre raça analisando apenas a classe social é uma saída de emergência permanentemente utilizada” (BENTO, 2012a, p. 27).

150 “Não é culpa sua” música de Anarcofunk BH. Disponível

em:<https://www.youtube.com/watch?v=HkOCvPyyvAc>. Publicado em 22 de janeiro de 2014. Acesso em: 06 jan. 2015.

151 Embora o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil tenha apresentado melhora em 2013,

confirmando uma trajetória de crescimento durante as últimas décadas nas três dimensões que compõem o índice (vida longa e saudável, educação e padrão de vida decente), segundo dados do Relatório do Desenvolvimento Humano 2014. Disponível em:<http://www.pnud.org.br/Noticia.aspx?id=3909>. O país ainda se encontra, quanto ao quesito desigualdade social, à frente apenas de Bolívia, Honduras, África do Sul, Angola, Haiti e Comoros. Disponível em:<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/12/111227_brasilrankings_ss.shtml>

152 Trata-se da pesquisa conhecida como Projeto Unesco, da qual a psicanalista e então socióloga, Virgínia

Os sociólogos preferem ser imparciais E dizem ser financeiro o nosso dilema Mas se analisarmos bem mais você descobre Que negro e branco pobre se parecem Mas não são iguais

(“Racistas otários”, Mano Brown)153

Estudos recentes apontam que o preconceito racial não estaria atrelado exclusivamente às diferenças econômicas, exigindo uma abordagem que articule a questão de classe e a questão racial. É o que o conceito “negro” inspirado no “black” americano tenta mostrar, conforme enunciamos anteriormente. Trata-se de uma definição política que vem sendo defendida e utilizada pelo movimento negro há décadas, como nos lembra Kabengele Munanga, justamente com a intenção de apontar o quanto a discriminação da qual negros e mestiços são vítimas, não pode ser considerada somente uma questão econômica que atinge todos os pobres da nossa sociedade (MUNANGA, 2005-2006).

É fundamental que não se trate essas questões como se fossem sinônimas ou considerando-as de maneira hierarquizada, como se uma englobasse a outra. Por outro lado, também não podemos considerá-las como completamente desarticuladas. O que nos parece fundamental é apontar como as diferenças raciais, de gênero, classe e idade, e também regionais, que podem ser considerados marcadores sociais de diferença, são abordadas de um ponto de vista moral e tomadas negativamente (SCHWARCZ, 2014).

O que estamos defendendo é que dentro deste mundo extremamente desigual do ponto de vista social, somam-se outras desigualdades. Neste capítulo, abordaremos algumas articulações entre dois destes marcadores, classe e cor.

Segundo M.A. Bento (2012a), todos os mapeamentos realizados entre as décadas de 1970 e 1990 comparando a situação dos trabalhadores brancos e negros apontam que “entre os explorados, entre os pobres, os negros encontram um déficit muito maior em todas as dimensões da vida, na saúde, na educação, no trabalho. A pobreza tem cor154” (BENTO,

2012a, p.27).

No Brasil, há um consenso que abarca tanto estudos de sociologia como de antropologia, até o discurso de governantes e mesmo a fala da população em geral, de que os negros são pobres, tomando como explicação para este fato, o passado escravista. Vale ressaltar que, embora o âmago desta afirmação possa ser verdadeiro, ela acaba por obturar

153 “Racistas otários”, compositor: Mano Brown, álbum Holocausto Urbano, 1990. 154 Grifo nosso.

alguns problemas, isentando as gerações presentes por tal situação, oferecendo uma desculpa para a manutenção das desigualdades e afirmando que os governos estariam corrigindo gradualmente tais disparidades, que desapareceriam com o desenvolvimento e crescimento econômico (GUIMARÃES, 2002).

Não foi só durante a escravidão que as desigualdades raciais se construíram e se firmaram, como nos lembra o rapper carioca Gas-Pa155: “a tal ‘libertação’ na verdade era uma

condenação à miséria. A última preocupação dessa lei [Abolição da Escravatura] foi com os negros [...] a eles não foi dada nenhuma garantia de sustento, de manutenção das próprias vidas” (GAS-PA, 2014).

O que fica evidenciado com as estatísticas é que não apenas o ponto de partida dos negros é desvantajoso, devido à herança da escravidão, mas que a cada estágio da competição social – como o trabalho e a escola – somam-se novas discriminações que aumentam ainda mais esta desvantagem (GUIMARÃES, 2002). Se, conforme a metáfora de Carlos Mendes, “na periferia, como no tabuleiro de xadrez, as peças brancas saem na frente” (MENDES, 2012, p.12), é preciso acrescentar e salientar que, a cada jogada, isso se repete e perpetua.

60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais Já sofreram violência policial

A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras Nas universidades brasileiras

Apenas 2 por cento dos alunos são negros

A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente Em São Paulo

Aqui quem fala é Primo Preto,mais um sobrevivente (“Capítulo 4 versículo 3”, Racionais Mc´s)

Os dados que abrem esta música dos Racionais não são versos quaisquer, eles ressoam o que M.A. Bento (2012a) havia afirmado há mais de duas décadas e que permanece nos indicadores sociais atuais: uma associação entre pobreza e cor no Brasil. Para ficar em só dois exemplos: “Os jovens pobres são majoritariamente não brancos (70,8 %)” e “o número de jovens negros analfabetos, na faixa etária de 15 a 29 anos, é quase duas vezes maior que o de jovens brancos” (Pnad/IBGE, 2007) 156.

155 Gas-Pa é rapper, membro do Coletivo Lutarmada e desenvolve trabalho na periferia do Rio de Janeiro. 156Pnad/IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2007).Disponível

em:<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicsociais 2007>. Acesso em: 8 mai. 2015.

A escola é um triste exemplo de como a cada estágio da competição social a discriminação se reafirma e a desigualdade se intensifica; tanto assim que Fulvia Rosemberg nos aponta que “a população pobre frequenta a escola pobre, os negros pobres frequentam escolas ainda mais pobres [...] toda vez que o ensino propicia uma diferenciação de qualidade, nas piores soluções encontramos uma maior proporção de alunos negros” (ROSEMBERG, 1990 apud SCHWARCZ, 2014, p. 91)157. No entanto, entre tantos indicadores sociais

fundamentais que abordam esse complexo campo de desigualdades – desde as vertentes da educação, do trabalho, da moradia, da saúde, do transporte – pretendemos nos centrar no campo jurídico e penal. Isto porque este campo nos parece indispensável para incluir a sensação de suspeição, que Suzana nos apresenta, num campo discursivo para além da sua vivência individual.

3.3 Criminalização da miséria e do conflito: encarceramento e genocídio