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1.4. O Ministério Público e a Sociedade

1.4.2. Direito, Interesse e Ministério Público

O interesse traduz uma vontade, um desejo; enquanto que o direito implica sua incorporação ao sistema jurídico. Os interesses possuem um campo de atuação ilimitada, sendo os mais incoerentes dentro do corpo social; são infinitos e variam de acordo com os ideais individuais. Por outro lado, o direito efetua a triagem de tais interesses e emite a sua posição em relação a eles, declarando os que devem passar a integrar o ordenamento jurídico, realizando, por conseguinte, o processo de escolha.

Ao discorrer sobre o tema, em sua obra Ação Civil Pública, Motauri Ciocchetti afirma que: “após a realização do processo de escolha, não há motivo para distinguir o direito do interesse, porque o acolhimento deste pela ordem jurídica transforma-o em norma, logo, em direito80”.

O interesse que importa ao mundo jurídico é o que for assimilado como norma, permanecendo os demais, no plano fático, como vantagens almejadas por alguém, os quais, por serem alheios ao plano jurídico-normativo, não têm a possibilidade de serem exigidos pelo pretendente à sua titularidade. Nesse aspecto, direito seria o fato juridicamente definido para o qual temos uma titularidade e um sujeito definidos, além de objeto perfeitamente delimitado.

79 CAMPOS, Teresinha de Jesus Moura Borges. A importância do Ministério Público junto ao consumidor. Impressão: Associação Piauiense do Ministério Público. Teresina, 2004, p.51.

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Há, portanto, entre direito e interesse, uma vinculação na qual à preponderância daquele se reflete uma negação deste. Já direito subjetivo é a possibilidade de agir tutelado pela lei, a autorização da norma jurídica para o exercício de uma pretensão.

O direito de ação pode ser definido como o direito subjetivo público de pleitear, perante o Estado, a satisfação de um interesse reconhecido por lei. É mera autorização que a norma atribui ao interessado para pleitear a satisfação de um interesse objetivamente tutelado pela ordem jurídica. É um direito autônomo, pois não depende da existência real do mérito daquele que o exerce.

O direito tem por finalidade regular a convivência, resolvendo os conflitos sociais à medida que forem surgindo, impulsionado sempre pelo binômio anseio social/segurança jurídica. “Direito Público é o interesse no qual o Estado é o titular do interesse; e Direito Privado é o interesse no qual o indivíduo é o titular do interesse81”.

O conceito de direito individual sempre esteve presente no campo jurídico. Atrela-se a uma visão privatística. A aferição de um direito individual, como leciona Rodolfo Mancuso, consiste em examiná-lo sob os ângulos do "prejuízo" e da "utilidade": "um acidente automobilístico do qual só resultem danos materiais gerará interesses individuais (ao ressarcimento, ao recebimento do seguro); as situações de que só podem resultar benefício para as partes implicadas (por exemplo, um ato de liberalidade) geram interesses individuais, porque a utilidade do evento se esgota na esfera de atuação dos participantes82”. O direito brasileiro, desde 1969, já adotava o conceito de interesse social.

A Constituição da República Portuguesa contempla os princípios fundamentais do primeiro ao décimo primeiro artigo, dentre estes destacamos a soberania, a legalidade, a democracia e a cidadania. Os dois primeiros assim estabelecem83:

81 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 47.

82 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Manual do Consumidor em Juízo. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.36. 83 Art. 1º: República Portuguesa: Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Art. 2. º: Estado de direito democrático: A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado

na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.

No Brasil, a nova ordem constitucional de 1988 também incluiu em seu texto, como princípio fundamental, a cidadania84, erigindo à categoria das garantias individuais, classificadas como cláusulas pétreas, a defesa dos consumidores e a possibilidade do exercício da gestão participativa. A Constituição Cidadã, como também é designada, de 1988, adiante, ao dimensionar a órbita de poder do Ministério Público, confiou-lhe a proteção dos interesses metaindividuais.

Conforme dito anteriormente, o Título IV da Constituição da República brasileira, ao dispor sobre a organização dos poderes, insere em seu Capítulo IV, Seção I, o Ministério Público como instituição permanente, cujo comando constitucional é a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, delineando com precisão as suas funções institucionais na regra inserta no artigo 129.

Para o cumprimento de seu múnus constitucional é necessária a previsão de instrumentos, o que se alcança com o inquérito civil e a ação civil pública, guarnecendo os interesses difusos e coletivos, além dos individuais homogêneos.

A tendência dos estudiosos sobre o Ministério Público é a de restringir a atuação do

Parquet às hipóteses em que se vislumbre interesse público e social, diferenciando-se o

interesse público primário do secundário. A simples contraposição de interesse público e privado não traduz a necessidade da intervenção ministerial.

Em relação aos direitos sociais, afirma Gilmar Mendes,

“é preciso levar em consideração que a prestação devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão. Assim, enquanto o Estado tem que dispor de um valor determinado para arcar com o aparato capaz de garantir a liberdade dos cidadãos, no caso de um direito social como a saúde, por outro lado, deve dispor de valores variáveis em função das necessidades individuais de cada cidadão. Gastar mais recursos com uns do que com outros envolve, portanto, a adoção de critérios distributivos para esses recursos85”.

84 CF/88 - Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

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O interesse do Estado ou de seus governantes nem sempre coincide com o interesse da coletividade, da sociedade como um todo.

A definição de Renato Alessi bem traduz a diferença:

"(...) interesse público compreende o interesse público primário e o secundário: não há confundir o interesse do bem geral (interesse público primário) com o interesse da administração (interesse público secundário), pois este último é apenas o modo como os órgãos governamentais veem o interesse público86”.

Segundo Mazzilli,

“a distinção de Alessi permite evidenciar, portanto, que nem sempre coincidem o interesse público primário e secundário. Nesse sentido, o interesse público primário (bem geral) pode ser identificado com interesse social, o interesse da sociedade ou da coletividade, e até mesmo com alguns dos mais autênticos interesses difusos (o exemplo, por excelência, do meio ambiente em geral)87”.

As atribuições do Ministério Público, modernamente, são objetos de reflexão pelas chefias institucionais em todo o País, havendo quem se manifeste sobre a necessidade da racionalização da sua atuação, fixando-se a discussão na dispensa da intervenção ministerial em determinadas hipóteses, como, por exemplo, em uma separação judicial de pessoas maiores, capazes e sem filhos menores.

Além disso, o Ministério Público tem as suas funções inseridas nas Constituições das Repúblicas Portuguesa e Brasileira, incumbindo-lhe, desta feita, atender a tais ditames, os quais, visivelmente, parece não se coadunar com a atuação em casos em que não há nenhum interesse público primário, difuso, coletivo ou individual homogêneo.

Dessa forma, os membros desta instituição terão condição de concentrar seus esforços no alcance dos anseios da sociedade revelados pela Assembleia Nacional Constituinte, de

86 SALES, Miguel. A Luta pelo Ministério Público, apud ALESSI, Renato. Jus Navigandi. Disponível em < http:1// www. jus.com.br> Acesso em 17.07.04.

87 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio

1988, pois, como bem asseverado por Sérgio Ferreira, “o Parquet funciona como o Advogado da Sociedade, atuando não só na sociedade, mas para a sociedade88”.

A intervenção do Ministério Público faz-se pelo reconhecimento do caráter coletivo ao interesse ou direito e também para equilibrar a relação ou situação jurídica. Para Hugo Mazzilli:

“São três as causas que trazem o Ministério Público ao processo: a) a existência de interesse indisponível ligado a uma pessoa (e.g. um incapaz ou uma fundação); b) a existência de interesse indisponível ligado a uma relação jurídica (e.g. em ação de nulidade de casamento); c) a existência de um interesse, ainda que não propriamente indisponível, mas de suficiente abrangência ou repercussão social, que aproveite em maior ou menor medida a toda a coletividade (e.g. em ação para a defesa de interesses individuais homogêneos, de largo alcance social, ou a defesa de pessoas carentes89”.

Declara em seguida que em relação a todos estes casos “a finalidade da atuação ministerial consistirá no zelo do interesse cuja existência provocou sua atuação e que em caso de eventual conflito entre o interesse público primário e o secundário, será pelo primeiro deles que deverá zelar o MP, só defendendo este último quando efetivamente coincida com o primeiro90”.

Não obstante o interesse difuso não ser simples somatório dos interesses particulares, também é verdade que, normalmente, o ataque a ele representa uma violação com reflexos na esfera particular e privada do indivíduo.

O Ministério Público deve eleger prioridades, posto que são várias as suas atribuições, as questões são complexas, e os recursos materiais e humanos são restritos.

Invocando René Descartes, Filomeno ressalta: “Eleger prioridades diversas é a melhor maneira de aviltar todas91”.

Nessa trilha, advertem Luiz Fabião Guasque e Denise Freitas Fabião Guasque:

88 FERREIRA, Sérgio de Andréa. Princípios Institucionais do Ministério Público. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Coletânea de Legislação do Brasil, 1996, p.61.

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MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio

cultural, patrimônio público e outros interesses. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 89.

90 Ibidem, p. 90.

91 FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor, apud DESCARTES, René, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p.114.

“pretendermos hoje a atuação do Ministério Público com fundamento na legislação infraconstitucional não é mais ordem. Face às novas atribuições, os integrantes do Parquet devem se utilizar de todos os meios possíveis desta nova realidade de forma a garantir sua autoridade contra os abusos da liberdade, criando um sistema de providências cautelares tendentes a prevenir as lesões da ordem e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A partir da atuação do Ministério Público como guardião atento do Direito, iremos possibilitar a liberdade sem abuso e o poder sem arbítrio, disciplinando a vida social, corrigindo os desvios da História e oferecendo ao nosso povo um ideal de vida, que impulsionará o progresso e a civilização92”.

O Estado, como de resto o Ministério Público, baseia sua intervenção no domínio privado sempre com os olhos voltados para o coletivo. E, para este, certamente não há limites. É papel do Parquet tutelá-lo, acompanhá-lo, protegê-lo. O Ministério Público não pode ter sua atividade moldada previamente com absoluto rigor e com conotação de imutabilidade. A Instituição segue o interesse coletivo e representa-o.

O Ministério Público existe para defender a sociedade de forma coletiva e não para defender o direito ou interesse de uma pessoa isoladamente; é fiel fiscal e observador da lei. Assume o papel de agente transformador da sociedade, em prol da justiça, da lei e da ordem pública.

É uma instituição de caráter constitucional essencial, nos termos do art. 127 da Constituição Federal Brasileira, à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem pública, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.