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Discursos e ações na institucionalização da base da indústria da reciclagem

T ERCEIRO SETOR NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS NEO LIBERAIS

3.1. O Terceiro Setor da indústria da reciclagem

3.1.1. Discursos e ações na institucionalização da base da indústria da reciclagem

As relações e mediações estratégicas que estruturam a indústria da reciclagem têm sido ditadas por interesses diversos, convergentes e divergentes, cujo consenso reside na obtenção de lucros, mesmo com a plena participação das organizações sem fins lucrativos... Estas, por sua vez, cumprem seu papel na plataforma de reformas pelas quais passa o Estado nas últimas décadas.

Buscou-se desvendar as estratégias que definem os arranjos produtivos que potencializam a expansão desta indústria que vem se estruturando. Numa posição de centralidade, estão os recicladores e indústrias produtoras de mercadorias, interessados na produção e consumo das matérias- primas oriundas da reciclagem. Também instituições bancárias e fundações, que investem recursos em projetos de ONG´s especializadas na organização da base desta indústria, pautada na formação de cooperativas de catadores.

Assim, forma-se um mercado que anuncia novas e excelentes oportunidades de negócios ambientais e empreendimentos sociais, cujas mercadorias vão além dos materiais recicláveis transformados em matérias- primas ou novos produtos que ganham o rótulo de ecológicos (papéis recicláveis para dar apenas um exemplo). Instaura-se a possibilidade de novos investimento no próprio setor produtivo, em infra-estrutura (com as novas linhas de processamento) ou logística (consultorias sobre logística reversa, coleta seletiva, etc.), ou ainda na própria organização desta nova divisão do trabalho, com as cooperativas. Já o Terceiro Setor, além de executarem projetos financiados, seja para capacitação dos catadores para este “mercado de trabalho”, seja para dar visibilidade e legitimidade aos discursos e às práticas da própria indústria, atua em consonância com as reformas do Estado.

O poder público, principal responsável pela gestão dos resíduos sólidos produzidos no âmbito das municipalidades, bem como pela elaboração de

políticas públicas nos âmbitos estaduais e nacional, possui papel central nas relações e mediações estratégicas neste contexto. Tanto as empresas de limpeza urbana, quanto os setores industriais interessados na reciclagem, têm se articulado para viabilizar a institucionalização da base industrial. Na construção destas políticas, o Terceiro Setor têm se apresentado com um papel de destaque, na realização de fóruns e plataformas de discussões, congregando sociedade civil, poder público e iniciativa privada, na elaboração de leis para a gestão dos resíduos sólidos, subsidiando o funcionamento da cadeia produtiva e do mercado de recicláveis.

Das estratégias anteriormente citadas, provém um discurso sobre necessidades e vantagens da reciclagem que passa a dar corpo a um movimento que reúne interesses diversos em diferentes escalas, e que tem nas condições sociais atuais das periferias urbanas, principalmente no desemprego e nos atributos da pobreza, alguns de seus argumentos e justificativas fundamentais.

Neste sentido, fala-se que a gestão dos resíduos sólidos contribui para a não poluição dos recursos hídricos, dos espaços públicos, evitando a ocorrência de enchentes e a proliferação de doenças, principalmente nas periferias urbanas onde o saneamento básico, os serviços públicos e as condições de habitabilidade são menos eficientes. Ou ainda, sobre a inclusão social de um número crescente de desempregados nas atividades da reciclagem. Denominados de “agentes ambientais” (principalmente por empresas, ou governos, que financiam projetos de geração de trabalho e renda com inclusão social). No caso dos catadores que coletam o lixo domiciliar, têm ainda o papel de conscientização da população, ao realizarem a chamada coleta seletiva porta-a-porta, na qual orientam os moradores de cada domicílio a separarem os materiais recicláveis que serão coletados em datas programadas;

Segundo a lógica da sustentabilidade, este trabalhador sem emprego não precisa de caridade, nem das ações arcaicas de status decadente da filantropia. O desempregado agora é um empreendedor, sendo esta uma forma recorrente das propostas de “geração de trabalho e renda com inclusão social”. Mas, lembramos aqui do que diz Martins (2002:124): o que a sociedade capitalista propõe hoje aos chamados excluídos está nas formas crescentemente perversas de inclusão, na degradação da pessoa e na desvalorização do trabalho como meio de inserção digna na sociedade. (...) A grande perda que a classe trabalhadora no mundo

inteiro está sofrendo com essa transformação brutal é a perda ou a atenuação dos direitos conquistados durante mais de cem anos de luta social.

Como antes, este trabalhador pobre, desempregado, vai “livremente” ao mercado de trabalho, e mais “livre” do que nunca nele se lança como um dos mais destemidos dos “autônomos”: vai “trabalhar por conta própria”, fazer seu próprio horário, seu próprio itinerário, com a força de seu próprio corpo, a qual ele emprega num único instrumento, uma carroça... Mais “livre” do que nunca, sua total emancipação o aguarda numa cooperativa, onde não terá patrão, nem será empregado, dizendo para sempre adeus aos direitos antes conquistados: carteira assinada e salário, tudo segundo leis trabalhistas condenadas à morte, assim como ele.

Desta forma, os catadores “incluídos” se tornam garotos-propaganda de “cases de sucesso” que atestam, inclusive com Selos, e dão visibilidade, através de logomarcas, que o empreendedorismo é uma “oportunidade” no contexto das reformas trabalhistas.

Por outro lado, no repertório que norteia as ações do desenvolvimento sustentável está posta a necessidade premente da reciclagem (em todos os níveis, da inovação tecnológica aos processos de trabalho, de sobra gerando trabalho e renda), frente à iminência catastrófica da falta dos recursos naturais para as “futuras gerações” – de capitalistas...90

É o que expõem em seus congressos, cujos discursos encontram ressonância num consenso nunca ensurdecedor... Toda a sociedade: Estado, iniciativa privada, Terceiro Setor, Universidades e todo o “restante” da sociedade (onde se encontra a figura indispensável para todo bom negócio, ou seja, o consumidor, o cliente, seu “público-alvo”) deseja a sustentabilidade. E todos querem mostrar que estão aprendendo a lição de que é preciso “amar a natureza”: a primeira natureza a ser poupada pelo sacrifício de transfiguração da

segunda natureza, ou seja os recicláveis como nova matéria-prima. Segunda

natureza até então condenada à morte, descartada como lixo, e que agora ressurge como standard de salvação do planeta. Quem melhor do que os pobres para carregá-lo? Literalmente.

90 Parece que a expressão “gerações futuras” esteja, na verdade, direcionada às futuras gerações de capitalistas. Esta idéia decorre da análise sobre as Apresentações feitas durante o Congresso

Sustentável 2007, evento que reuniu empresas, governo e ONG’s, etc., em torno para a discussão

Do mesmo modo, não faltam argumentos que subsidiem os discursos das empresas consumidoras desta nova matéria-prima acerca da lucratividade neste setor91:

1) permite ao setor industrial a aquisição de matéria-prima obtida dos materiais recicláveis (quando determinada indústria compra de recicladores material reciclável já processado) ou aquisição dos materiais recicláveis para processamento próprio e fabricação de novos produtos (embalagens, entre outros, como é o caso da Tetra Pak), cujo custo é inferior à obtenção da matéria- prima dita original;

2) ausência de trabalhadores assalariados e encargos trabalhistas, e no entanto a existência de uma base com vasto número de trabalhadores – informais, indiretos, terceirizados, autônomos ou, no nosso entender, sobrantes – organizados ou não em cooperativas em torno das atividades da reciclagem (coleta, transporte, triagem, prensagem, pesagem, enfardamento).

3) abatimento de multas ambientais ao participarem de programas e projetos que “promovem” a gestão dos resíduos sólidos, contribuindo portanto com a conscientização e preservação do meio ambiente, tanto em relação ao destino do lixo, quanto evitando o exaurimento das fontes naturais de matérias-primas e energia (a exemplo da reciclagem do plástico que substitui o uso do petróleo na fabricação dos produtos);

4) obtenção de incentivos fiscais ao participarem da promoção de projetos sociais que proporcionem “inclusão social com geração de trabalho e renda”, de acordo com o que há de mais moderno no mundo da gestão de negócios sustentáveis. Nisto se insere a norma de Responsabilidade Social Empresarial, ISO 26.000, com aprovação e reconhecimento mundialmente previsto para 2008.

Desta forma, a pesquisa se deparou com curiosos e dissimulados nexos que articulam um contingente de pobres e miseráveis urbanos, identificados como catadores de materiais recicláveis, à uma indústria que se apresenta como limpa, moderna, social e ambientalmente correta. Portanto, de fato é uma indústria que está presente nos dois circuito da economia urbana (Santos, 1979), realizando-se de forma aparentemente autonomizada em direção aos extremos das cadeias produtivas. A relação se realiza pela mediação das trocas comerciais, mas também pela atuação das ONG´s (Terceiro Setor) na

formação de cooperativas de catadores, capacitadas para atenderem às demandas exigidas por esta mesma indústria. Ademais, tais iniciativas são representadas como cases de sucesso92, e servem de efeito demonstração no mercado da Responsabilidade Social Empresarial (RSE). Esta parece ser uma boa justificativa para os recursos financeiros, públicos e privados injetados nas ONG´s, sob a retórica da “geração de trabalho e renda com inclusão social”. Mas, como nos diz Martins (2002:136), o capital não tem nenhuma responsabilidade

social. O capital não tem moral.

Neste sentido, a indústria situada no topo das cadeias produtivas, anuncia-se como o que há de mais moderno, a exemplo das novas linhas de processamento industrial com Mecanismos de Desenvolvimento Limpo – MDL. Mas, na sua base, o processos de trabalho é completamente insalubre. Por mais que os setores do “marketing verde” das empresas e projetos, públicos e privados, insistam em apresentar imagens agradáveis de cooperativas de catadores, uniformizados e trabalhando com materiais recicláveis coloridos, limpos e já separados do denominado rejeito (lixo) devemos assinalar que estes trabalhadores não estão isentos de trabalhar com os atributos da sujeira: seu odor desagradável, a presença de vetores de doenças (mosquitos, ratos), substâncias tóxicas, risco de ferimento com objetos cortantes, dentre outros. Ainda que o objeto do trabalho do catador seja o material reciclável, emancipado da sua condição pretérita de lixo, não podemos esquecer que o catador não separa apenas os diferentes tipos de materiais. O catador faz antes a separação destes materiais reaproveitáveis daquilo que efetivamente é lixo. Tal situação é agravada para o catador que trabalha na catação nas ruas, muitas vezes retirando os recicláveis das lixeiras residenciais ou de estabelecimentos comerciais, aparecendo como usurpador e inconveniente.

Neste contexto, a investigação se deparou com discursos e ações que justamente dissimulam a exploração inerente à relação capital-trabalho, pela mediação destes projetos articulados às políticas públicas de “gestão dos resíduos sólidos com inclusão social”. Ou ainda, em Programas de Coleta Seletiva Solidária, tal como existente no Município de São Paulo. O que, por sua vez, se insere no nível mais amplo das políticas neo-liberais das reformas do

92 Expressão utilizada por empresas e entidades do Terceiro Setor na exposição de Projetos que “deram certo”, ou seja, os “casos de sucesso” de suas iniciativas de “Responsabilidade Social Empresarial”.

Estado, que se propõem “à gestão da pobreza urbana”, tema reposto por uma nova linguagem compartilhada em consenso pelas parcerias público-privadas (as chamadas PPP´s93).

É para onde converge boa parte dos discursos e Projetos articulados pelo Terceiro Setor (de modo particular, o Terceiro Setor da reciclagem), o qual, como pudemos observar, tem sido fundamental neste atual período onde se conjugam reestruturação produtiva, reformas do Estado e massificação do desemprego, cujas conseqüências são duramente vividas pelos pobres que sobrevivem no urbano periférico.

Este panorama se configura no atual momento histórico, revelando formas dramáticas de sobrevivência, próprias de uma urbanização crítica (Damiani, 2004) que envolve, direta ou indiretamente, toda a sociedade. Urbanização resultante de um processo de industrialização que só fez aprofundar, sem revolver, as negatividades gestadas no cerne do seu próprio desenvolvimento. É esta sociedade que se vê enredada sob um consenso, que além de universal apresenta-se como inquestionável, imprescindível e definitivo: a necessidade de promover o desenvolvimento sustentável. Retórica que vem sendo muito bem trabalhada pelos setores de “marketing verde” das empresas, com suas práticas correlatas.

Do mesmo modo, observa-se que este conjunto de atividades que os catadores realizam, com extrema precariedade na base industrial, é acompanhado de discursos veiculadores de uma nova racionalidade produtiva, segundo os mais modernos preceitos de sustentabilidade e responsabilidade socioambiental das empresas94. E ainda, exatamente por veicularem um discurso fundado em princípios universais, pode-se dizer inquestionáveis (todos querem um “planeta limpo”, com uma “indústria limpa”), apropriam-se das condições sociais existentes nos territórios empobrecidos, em frentes de expansão e acumulação de capital que, refazendo o caminho da integração e expropriação dos pobres que nela sobrevivem, ergue-se como modelo de nova indústria, segundo os preceitos da sustentabilidade.

93 Aliás, esta nova linguagem vem repleta de siglas, cujo domínio dos significados parecem definir um “território” semântico destinado aos adeptos da sociedade civil organizada.

94 Não por acaso a questão da reciclagem tem lugar de destaque nos fóruns e ações empreendedoras do Instituto Ethos de Resposabilidade Social que tem como alguns de seus parceiros: PETROBRAS, SUZANO Papel e Celulose, Grupo Pão de Açúcar, FINEP - Financiadora de Estudos e Projetos, SEBRAE, CAIXA, Fundação Banco do Brasil, ABONG -

Portanto, conclui-se que o discurso, de um modo geral, ornamenta as práticas; não é em si falso ou verdadeiro. Esta pesquisa procurou as práticas, mas não pôde neglicenciar os discursos, exatamente porque estão sendo justificativos de uma situação real (de certa forma nova) de aprofundamento da divisão do trabalho. Esta, por sua vez, torna-se mais evidente no contexto de institucionalização da base industrial, com a tendência de implantação crescente de cooperativas.

Por fim, como já indicado neste sub-capítulo, nos ANEXOS da Tese estão reunidos relatos de Projetos, Eventos e Empreendimentos, com participação do Terceiro Setor da reciclagem, inscritos no processo de organização da base desta indústria no contexto nacional. Estão novamente aqui assinalados, ressaltando-se a importância na Tese: 5º Festival Lixo e Cidadania, ocorrido em 2006, na cidade de Belo Horizonte. Este evento é um dos mais importantes no contexto das ações do Terceiro Setor da indústria da reciclagem (ANEXO 05); trabalho de campo na Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Materiais Reaproveitáveis - ASMARE (cooperativa modelo); visita às instalações da Fábrica de Plásticos da Rede Cataunidos/Insea, da Região Metropolitana de Belo Horizonte em parceria com a ONG Insea (ANEXOS 06); Projeto Ações de desenvolvimento social junto aos catadores de materiais

recicláveis (parceria OAF e MNCR, com financiamento do MDS) (ANEXO 07).

Relato do Encontro Nacional e da Marcha do MNCR (Brasília, 2006) (ANEXO 08); apontamentos sobre o documento “Análise do custo de geração de postos de trabalho na economia urbana para o segmento dos catadores de materiais recicláveis” (ANEXO 09). De modo especial, este último Anexo é um importante complemento da análise sobre o processo de institucionalização da base da

indústria da reciclagem. Desta forma, recomendamos a leitura do mesmo, bem

como dos demais relatos que, embora sejam parte constitutiva da própria Tese, foram inseridos como ANEXOS dada a especificidade de cada um, que conjunto constituem um importante registro documental.