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1.3. A noção de urbano periférico

1.3.3. Territórios empobrecidos no urbano periférico

O conjunto de atividades que corresponde à base da indústria da

reciclagem, tende a se concentrar nos territórios empobrecidos da metrópole, sob

domínio do urbano periférico.

São territórios tanto para o catador em sua prática socioespacial (o

chão dos catadores), quanto para a indústria que neles tem a sua base estrutural

e se caracterizam como territórios de escassez da riqueza produzida. Em primeiro lugar, porque concentram o processo de trabalho realizado pelos catadores que, sob a perspectiva estrutural da indústria, pode ser entendido como trabalho produtivo e não pago44. Portanto, são territórios de expropriação, pois viabilizam a formação de capital que se realiza no alhures, na indústria propriamente dita. Por sua vez, permanecem sob a condição de pobreza, portanto, são territórios de

pobreza. Neste sentido é que se localiza a formação de capital para a indústria

que neste contexto se ergue45.

Em segundo lugar, trata-se de territórios nos quais se concentram os

locais com atividades da reciclagem46. Seja pelo fato destes locais estariam

43 Ordinário adj. 1. Que está na ordem das coisas habituais; comum, habitual, useiro, vulgar. (...) 5. De pouco preço, de qualidade média ou inferior. (Dicionário Prático Michaelis, v.5.1, DST Software Brasil Ltda).

44 Como já explicado, o que os catadores ganham corresponde a uma diminuta parte dos preços dos recicláveis (definidos ao nível do mercado pelas próprias indústrias) e não pelo trabalho que realizam.

45 É o capital de composição orgânica alta que regula a taxa média de lucro. (...) nos setores

periféricos das economias subdesenvolvidas, que tendem à baixa composição orgânica do capital, a acumulação primitiva do capital tende a se tornar um componente de acumulação originária constante. (...) A forma de acumulação originária pode se outra, mas sua função permanece, recria-se nos setores e territórios em que o capital se expande de modo insuficiente, onde a expansão capitalista significa criar as condições de reprodução ampliada do capital a partir de relações não capitalistas de produção. É neste contexto que tem lugar o reaparecimento da escravidão ou a recriação de ‘formas não-contratuais de emprego da força de trabalho. (Martins,

2002:155) Grifo nosso.

46 Comércios (depósitos, ferros-velhos, sucateiros, etc.) e grupos de catadores (cooperativas, associações, núcleos, grupos) dos mais diversos portes e modalidades.

fundamentalmente associados aos atributos do lixo47, seja pela informalidade e precariedade com que funcionam, ou ainda porque são os pobres que se inserem neste conjunto de atividades. Sob esta perspectiva, são evidentes as razões pelas quais os locais com atividades da reciclagem tendem a se concentrar nos territórios empobrecidos da metrópole. São locais de convergência dos materiais

recicláveis, nos quais se concentram as atividades de triagem, prensagem e

enfardamento (entre outras correlatas) após concluída a atividade dispersa da catação ou coleta. Neste sentido, estes locais de convergência equacionam o ajuste necessário para a produção da matéria-prima que se inicia na Primeira Etapa da Reciclagem (coleta, triagem, prensagem e enfardamento). Ou seja, como todo processo produtivo, as atividades da reciclagem necessariamente devem se concentrar em determinados pontos do espaço. Assim, a reciclagem parece não poder superar a forma dispersa que caracteriza a atividade da catação/coleta (posto que os resíduos sólidos urbanos48 são gerados de modo disperso e difuso em toda a extensão do espaço), mas resolve esta contradição concentrando as demais atividades em pontos determinados do espaço (como já assinalado). Neste sentido, estes locais conformam uma rede horizontal de “entrepostos” de materiais recicláveis inscritos no urbano, Nível no qual se encontra a base da estrutura piramidal da indústria.

Territórios de pobreza: em relação à indústria propriamente dita, são

territórios de escassez da riqueza produzida; em relação aos trabalhadores

pobres urbanos, são territórios de expropriação. Próprios das periferias urbanas, estes territórios constituem a base da indústria da reciclagem, sob o domínio do

urbano periférico.

Neste sentido, são mobilizados para a formação de determinados tipos de capitais que consomem o trabalhador sobrante, numa relação capital-trabalho mediada por curiosos e dissimulados nexos, no âmbito da esfera do comércio. Portanto, para a indústria da reciclagem, os territórios de escassez da riqueza

produzida não correspondem aos denominados “territórios-reserva” ou “territórios

47 Impactos de vizinhança, sujeira, insalubridade, periculosidade, vetores de insetos e doenças, dentre outros.

48 A pesquisa focaliza os resíduos sólidos urbanos, considerando tanto os resíduos das atividades que se concentram no centro (sobretudo resíduos do comércio e serviços), quanto os resíduos domiciliares, predominantes nas vastas periferias urbanas.

adormecidos” (Robira, 2005:10)49. Segundo esta autora, estes territórios possuem ”particulares estruturas urbanas, sociais e econômicas, subprodutos do processo

de acumulação territorial, [que] invalida-os temporariamente para a própria acumulação50”. Esta é justamente a condição que parece validá-los para o conjunto de atividades inscritas na base da indústria da reciclagem! Em outras palavras, para determinados tipos de capitais (como parece ser o caso da reciclagem) os territórios empobrecidos são mobilizados para formação de capital, caracterizando-se como “territórios de escassez da riqueza produzida”. Ao mesmo tempo, para outros tipos de capitais (imobiliário, financeiro, sob ação das políticas de espaço, tal como a Operação Urbana), constituem “territórios-reserva”, “onde se produz a acumulação de escassez” (Robira, 2005:17).

Harvey (2004:124), em “O novo imperialismo” discorre sobre aquilo que denomina de “acumulação por espoliação”:

A acumulação por espoliação pode ocorrer de uma variedade de maneiras, havendo em seu ‘modus operandi’ muitos aspectos fortuitos e casuais. (...) O termo-chave aqui é, no entanto, excedente de capital

[por vezes acompanhados de excedente de trabalho]. O que a

acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar- lhes imediatamente um uso lucrativo. (...) se o capitalismo vem passando por uma dificuldade crônica de sobreacumulação desde 1973, então o projeto neoliberal de privatização de tudo faz muito sentido como forma de resolver o problema. Outro modo seria injetar matérias-primas baratas no sistema. Os custos de insumos seriam reduzidos e os lucros, por esse meio, aumentados. 51

Encontramos nesta passagem da obra de Harvey uma explicação que parece corresponder ao que se passa nos territórios empobrecidos nos quais se realiza a base da indústria da reciclagem. Primeiro, o entendimento de que a acumulação por espoliação pode ocorrer de várias formas, nas quais o capital se apodere de “ativos” liberados a custo baixo ou mesmo custo zero. O autor menciona a força de trabalho como um destes ativos, que no caso dos catadores parece corresponder ao referido custo zero. Outro “ativo” seria os territórios empobrecidos nos quais se realiza o conjunto de atividades da reciclagem.

49 ROBIRA, Rosa Tello. Áreas metropolitanas: espaços colonizados In CARLOS, A. F.; CARRERAS, C. (orgs.). Urbanização e mundialização: estudos sobre a metrópole. São Paulo: Contexto, 2005. Pp. 09-20

50 Grifos nossos.

Exatamente porque, para o capital industrial propriamente dito, estes territórios nos quais se concentram os locais com atividades de reciclagem, nada custam. Sejam eles espaços públicos, tais como calçadas, áreas comuns dos conjuntos habitacionais das periferias, baixos de viaduto nas áreas centrais, ou mesmo áreas privadas que representam custos para os comerciantes. Por último, o autor se refere justamente ao mecanismo de obtenção de matérias-primas mais baratas com vistas à elevação dos lucros. Ora, no caso das matérias-primas produzidas pelo processo de reciclagem, a caracterização desta mercadoria como sendo mais barata inclui justamente os dois “ativos” anteriormente citados: o custo zero do processo de trabalho realizado pelos catadores, cujas atividades se concentram nos territórios empobrecidos da metrópole. Por fim, a própria abundância de resíduos sólidos urbanos, passíveis de serem transformados em matérias-primas, encerra o último, e mais importante, “ativo” que o capital toma posse, configurando assim o tripé sobre o qual a indústria se ergue. É emblemático que o lixo, denominado de “passivo ambiental” pelas teorias econômicas destinadas aos cálculos de sustentabilidade, sejam transformados em “ativos” no processo de reciclagem. Cabe ainda ressaltar que as indústrias encontram uma saída pela tangente em relação à responsabilização por estes “passíveis ambientais”: livram-se da possibilidade de pagarem taxas enquanto co- responsáveis pela geração dos resíduos (já que são as indústrias que produzem as embalagens que se tornarão lixo) e ainda “agregam valor” às suas mercadorias que levam o selo da reciclagem. E mais, quando determinada empresa passa a comprar os materiais recicláveis das cooperativas, ganham “pontos positivos em sua carteira” de Responsabilidade Social e Ambiental.

Por tanto, os territórios empobrecidos da metrópole constituem para a indústria da reciclagem “territórios de escassez da riqueza produzida”: porque a riqueza é neles produzida, mas sem que resulte na superação da pobreza que os qualifica. Ao contrário: neles a escassez da riqueza é mantida52.

A (re)inserção produtiva dos catadores, na condição de trabalho sobrante, está diretamente associada com estes territórios. Porém, devemos observar que o chão dos catadores, enquanto territórios de uso no urbano periférico, vai além destes locais de convergência dos materiais recicláveis.

52 Porque, não nos iludamos, o capitalismo que se expande à custa da redução sem limites dos

custos do trabalho, debitando na conta do trabalhador e dos pobres o preço do progresso sem ética nem princípios, privatiza ganhos nesse caso injustos e socializa perdas, crises e problemas sociais (Martins, 2002:11)

Porque a coleta se estende por toda a trama fina do espaço urbano, onde o catador realiza a coleta ou catação, atividade elementar do processo de reciclagem.

Se o catador, enquanto trabalhador pobre urbano, é (re)inserido produtivamente na base desta indústria, por outro lado seu processo de trabalho não se apresenta numa relação direta com a indústria. Como esta separação (capital industrial – trabalho produtivo) se realiza espacialmente, geograficamente? Como superar esta alienação que arregimenta um exército de catadores, auto-disciplinados em função de sua própria fome, sem que exista a figura de um capataz, um patrão, que o castigue ou demita na infração de suas obrigações? Como se dá esta total sujeição, este despojamento do corpo amalgamado à carroças tão pesadas quanto seus próprios “fardos”?

Há que se compreender que a (re)inserção produtiva do catador no conjunto de atividades que compõem a base desta indústria acontece porque o urbano ocupa. A urbanização completa da sociedade, o urbano como social, pode nos oferecer uma chave interpretativa. No urbano são produzidos incessantemente uma infinidade de desejos de consumo, toneladas e mais toneladas de dejetos do consumo, resíduos em excessos de todos os tipos: de mercadorias, de lixo, de gente, riqueza e miséria. Justapostos, entrepostos, sobrepostos. Como é próprio da metrópole fragmentada. Lixo gerado por todos os lados, catadores que percorrem ruas e avenidas de todos os cantos, desde centros empresariais e comerciais às áreas residenciais ricas e pobres. Não há limite territorial para a produção de lixo. Entretanto, uma vez “desviados” para a reciclagem, ele tem destino certo: os territórios empobrecidos da metrópole sob domínio do urbano periférico.

A forma urbana pode permitir que esta indústria esteja presente onde ela mais pareça ausente e distante: é ela quem arregimenta este exército de catadores, sem retirá-los da informalidade, fazendo-se presente em meio ao desemprego resultante da sua própria reestruturação. Esta indústria requer um processo de trabalho espacialmente pulverizado: seus “operários” (o que, evidentemente, não são, como já assinalamos) não trabalham concentrados em unidades fabris ou em cooperativas incubadas com a “eficiência” do seu Terceiro Setor. Pelo contrário. Ao menos meio milhão de pessoas percorrem os arranjos mais finos dos espaços urbanos, catando em avenidas, ruas, calçadas, passeios públicos e em milhares de domicílios em todo o país. A indústria da reciclagem

estende seus tentáculos, instalando-se sob viadutos e pontes, fundos de quintais e garagens, terrenos baldios públicos e privados, onde quer que a pobreza possa dar lugar à formação e expansão de seus negócios. Inclusive sob a forma da acumulação primitiva, na expropriação-exploração-espoliação dos catadores, enquanto se apropria dos territórios empobrecidos da metrópole paulistana.

Por fim, entende-se que a urbanização, nos moldes em que ocorre, expressa a socialização capitalista do espaço e do tempo. Portanto, mesmo quando a indústria propriamente dita aparece como ausente no espaço urbano, a urbanização pode revela-la. Justamente porque a urbanização está estritamente relacionada com os processos produtivos. Assim, o parâmetro de raciocínio sobre o urbano diz respeito aos efeitos dos processos sociais envolvidos na industrialização. E neste sentido, a indústria não precisa estar materialmente presente para que seja entendida como a força estruturante do capital, o qual incide, inclusive, sobre o capital comercial. Os catadores de materiais recicláveis trabalham sob esta determinação: com seu trabalho, participar da reprodução da riqueza, e sobreviver na miséria.

CAPÍTULO II

TRABALHADORES SOBRANTES NA BASE DA INDÚSTRIA DA RECICLAGEM

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