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Trabalhadores sobrantes: os catadores de materiais recicláveis

TRABALHADORES SOBRANTES NA BASE DA INDÚSTRIA DA RECICLAGEM : OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS

2.1. Trabalhadores sobrantes: os catadores de materiais recicláveis

A denominação trabalhadores sobrantes se refere aos trabalhadores pobres urbanos que, à margem do mercado de trabalho, são (re)inseridos produtivamente, sem contudo se emanciparem da condição de sobrantes. São trabalhadores que perderam seu emprego no setor formal (no contexto da reestruturação produtiva), ou que nunca conseguiram nele ingressar. Mais do que isto, são trabalhadores que sequer participam da denominada classe-que-vive-do-

trabalho, noção ampliada de classe trabalhadora, formulada por Antunes (1999).

Esta noção tem como chave interpretaria o assalariamento, que abrange os trabalhadores informais assalariados, mas este não é o caso dos catadores53. Tão pouco o catador se insere na interpretação feita por Singer (em O Mapa do Trabalho Informal, de 2000) a respeito do trabalho informal, analisando-o como integrante da categoria marxista de população relativamente excedente, em sua

parte estagnada54. Embora esta categoria faça parte do exército ativo, e não do exército industrial de reserva (uma importante contribuição da interpretação feita por Singer), aqui ainda se trata de relações assalariadas (Segundo Marx, máximo

de tempo de serviço e mínimo de salário). Portanto, ainda não é este o lugar do

catador. Entretanto, além destas categorias marxistas mobilizadas pelos referidos autores (as quais têm como fundamento as diversas formas como o trabalhador vende sua força de trabalho, inclusive fora do setor formal), há neste mesmo Capítulo de O Capital a definição da “esfera do pauperismo”55. Esta se situa entre as categorias propriamente ditas da população relativamente excedente (fluída, latente e estagnada) e o lumpemproletariado. Para Pochmann, os trabalhadores informais correspondem justamente ao lumpemproletariado. Em A metrópole do

trabalho (Pochmann, 2001), este autor reconhece que parte da população

excedente realiza estratégias de sobrevivência, à margem da sociedade salarial.

53 Devemos esclarecer que a pesquisa não incluiu os catadores assalariados dos comerciantes. 54 Marx, Karl. O Capital. v.1. Capítulo 23: Diversas formas de existência da população

relativamente excedente.

55 Finalmente, o mais profundo sedimento da superpopulação relativa habita a esfera do

pauperismo. Abstraindo vagabundos, delinqüentes, prostitutas, em suma, o lumpemproletariado propriamente dito, essa camada social consiste em três categorias. Primeiro, os aptos para o trabalho. (...) sua massa se expande a cada crise e decresce a toda retomada dos negócios. Segundo, órfãos e crianças indigentes. (...) Terceiro, degradados, maltrapilhos, incapacitados para o trabalho. São notadamente indivíduos que sucumbem devido a sua imobilidade, causada pela divisão do trabalho, cujo número cresce com a maquinaria perigosa, minas, fábricas químicas, etc. (...) Sua produção está incluída na produção da superpopulação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e ambas constituem uma condição de existência da produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza. Marx, v.1, 208-209. Grifo nosso.

Parece-nos que os catadores correspondem melhor a estas duas últimas categorias. Os catadores moradores de rua parecem corresponder à categoria de

lumpemproletariado. Os catadores avulsos, com diferentes níveis de pobreza (que

chega à miséria, tanto quanto aquela dos catadores moradores de rua) estariam na “esfera do pauperismo”, em sua parte apta para o trabalho. Já os catadores das cooperativas estariam deixando a esfera da pobreza e do chamado setor informal (segundo Singer). Mas, as cooperativas ainda representam uma

estratégia de sobrevivência, pois seus rendimentos raramente atingem o patamar

do salário mínimo, e as condições de trabalho permanecem por demais precárias56. No caso dos catadores que realizam as atividades de triagem, prensagem e enfardamento sob uma relação assalariada (geralmente informal) nos comércios de recicláveis, a condição de pobreza pode ser até mais perversa57.

Portanto, em todos os casos, trata-se de trabalhadores pobres urbanos, (re)inseridos produtivamente sob a condição de trabalhadores sobrantes. E sob esta condição estão sempre na iminência de serem novamente excluídos do processo produtivo. Inclusive parece ser este o horizonte para a grande maioria dos catadores, em relação ao processo de institucionalização da base da indústria da reciclagem. Institucionalização que prevê aumento de produtividade, sem resolver a conseqüente redução do número de catadores necessários à produção da matéria-prima pelas cooperativas (com lugar assegurado apenas para os melhores capacitados). Portanto, permanecem sob a condição de trabalhadores sobrantes. São sobrantes dos mais diversos setores produtivos, inclusive da própria indústria de reciclagem quando institucionaliza sua base... Assim, parece provável que esta indústria seguirá comportando uma característica dual, inscrevendo sua base tanto na informalidade quanto na formalidade, mesmo admitindo o incremento das cooperativas a longo prazo.

Portanto, o catador é um trabalhador pobre urbano, (re)inserido produtivamente na condição de trabalhador sobrante na base da indústria da

56 É o que procuramos expor, sobretudo, nos Relatos diversos, obtidos em trabalho de campo junto a cooperativas e núcleos de reciclagem. Também da análise do Documento do MNCR que propõe a criação de 39.000 postos de trabalho para catadores. Estes constam nos ANEXOS da Tese.

57 A pesquisa não abrangeu o trabalho destes catadores, mas a Dissertação de Legaspe (2006) oferece estas informações como um importante registro documental, sendo referência para esta Tese.

reciclagem. Justamente porque esta indústria se ergue em conformidade com a reestruturação produtiva, no que também se inclui a formação das cooperativas.

Ou seja, tal indústria arregimenta o trabalho sobrante, que ao ser mantido nesta condição, permite que a mesma se realize sem o correspondente contingente de operários, o que evidentemente os catadores não são (como já assinalado). Assim, de um lado, a indústria da reciclagem se faz presente-ausente na figura do catador. Por outro, na ausência de operários (trabalho produtivo) “no chão da fábrica” (para as etapas iniciais do processo de reciclagem: triagem, prensagem, enfardamento), está presente o trabalho pretérito (consumido justamente nas etapas anteriormente referidas realizadas pelos catadores) consubstanciado nos resíduos que chegam à indústria em estágio já adiantado de seu processamento. Portanto, a contradição fundante está na relação entre capital e trabalho, dissimulada pelos curiosos nexos tecidos no âmbito do capital comercial, onde atuam os atravessadores (comerciantes de diversos portes situados entre o catador e a indústria), com os quais o catador realiza a venda dos materiais por ele coletados.

De fato, o conjunto de atividades realizadas pelos catadores na base da indústria da reciclagem está inscrito na informalidade. Porém, como nos adverte Silveira (2004: 68), o trabalho informal não se confunde exatamente com o circuito inferior da economia. Por outro lado, o trabalho informal está presente em São Paulo desde tempos remotos: na gênese e desenvolvimento da formação do mercado de trabalho livre neste país (Pinto, 1984), ganhando maior visibilidade no contexto atual de transformações no mundo do trabalho (Pochmann, 2001; Antunes, 1999). Ou seja, em São Paulo sempre se reproduziu, no cerne mesmo do processo de industrialização-urbanização-metropolização, um contingente populacional ocupado em atividades não-formais em crescente diversificação, num fenômeno próprio ao desenvolvimento capitalista.

A gênese e o desenvolvimento, as transformações e as condições atuais do mundo do trabalho em São Paulo indicam a coexistência, a conjugação e o conflito entre o velho e o novo, o formal e o informal, bem como os nexos que os unem numa única e complexa totalidade. Destacam-se, sobre este assunto, a obra Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São

Paulo, 1890-1914, de Maria Inez Machado Borges Pinto (1984)58. Em “Cotidiano e

58 Pinto, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na

sobrevivência”, cuja análise é sobre a cidade de São Paulo, vê-se que trabalho formal e informal vão juntos no processo de industrialização-urbanização.

Consideremos que o pós anos 50 marca, efetivamente, o desencadeamento do processo de formação da metrópole, num contexto histórico nacional com o advento do predomínio do urbano sobre o rural. Porém, já na passagem do século XIX para o XX pode-se encontrar, no âmbito da formação do mercado de trabalho livre para as fazendas de café, o desenvolvimento concomitante do mercado de trabalho urbano. Importa destacar que sua gênese leva a marca do “sub-emprego, e o desemprego temporário” (Pinto,1984:13). Este antecede e se desenvolve, inclusive, para além e nos interstícios da estruturação do operariado industrial, nos quadros da consolidação do emprego formal em massa, no decurso da industrialização. A autora cita a procura por “tarefas urbanas”, ou “atividades urbanas”, por parte dos colonos em fuga das fazendas cafeeiras para as cidades59.

A referida obra é fundamental para a compreensão de que o urbano sempre ocupou um contingente de trabalhadores pobres urbanos, para além do emprego formal, industrial, no decurso da própria urbanização e correspondente aprofundamento da divisão social do trabalho. Além de apresentar um diversificado quadro da economia informal em São Paulo do início do século XX, nele se encontra negociante ambulante de ferros-velhos, que parece apresentar correspondência com certos comerciantes do ramo de sucatas do período atual. Mas também sobre a existência de uma “gente pobre dispostas a carregar fardos”, inserindo-se em atividades urbanas informais.

Neste contexto, a autora observa o papel fortalecido da estrutura familiar no enfrentamento das adversidades do desemprego (Pinto,1984:22). A autora adverte que, a expansão das atividades produtivas na metrópole

paulistana, a despeito da profunda diversificação da sua estrutura ocupacional, não foi suficiente para empregar a massa de trabalhadores estrangeiros, trazidos pela grande imigração, que se acumulou na cidade e, muito menos ainda, os migrantes rurais produzidos pelos sucessivos deslocamentos de colonos do campo para a área urbana.(...) (Pinto,1984:32)

59 Isto apesar do intenso controle que fizeram da Hospedaria dos Imigrantes, agência de

colocação, uma espécie de prisão, da qual o colono só saia mediante um contrato de trabalho para os cafezais (Pinto,1984:14)

O capítulo Pequenas ocupações autônomas e trabalho informal: a

economia invisível, é dedicado à exposição do peso significativo do setor informal no mercado de trabalho da cidade de São Paulo [o qual] pode ser globalmente observado, tendo em vista os dados demográficos e ocupacionais da metrópole no início do século XX. Em 1900 a cidade possuía cerca de 239.820 habitantes, na sua maioria composta por elementos das camadas inferiores, sendo que em 1901 apenas 50.000 formavam a população operária (Pinto,1984:103). Neste

contexto, a autora descreve a situação de uma massa de trabalhadores itinerantes que vivem “à cata de serviço”– expressão usada em diversas passagens da obra, os quais eram muitas vezes confundidos pelos

contemporâneos com os vadios e mendigos. (...)

Neste mesmo contexto, surge um número considerável de estrangeiros que, saídos das fazendas do interior paulista, passaram a se estabelecerem em “pequenos negócios próprios ou no trabalho temporário” na cidade. Não só a família era integrada à atividade produtiva autônoma destes pequenos empreendedores, como também o imóvel onde residiam, o qual também servia ao uso comercial e à função rentista: trabalhando com um custo operacional mínimo,

inúmeras famílias sobreviviam aproveitando o quarto da frente de sua própria casa para estabelecer pequenos armazéns de secos e molhados, quitandas de frutas e legumes, vendas, botequins, “bodegas”, bares de bebidas e petiscos; outras separavam um quarto para o casal e os filhos e nos outros cômodos montavam pensão (Pinto,1984:110).

A autora relata que muitos prosperaram a custa de trabalho de

madrugada a madrugada; outros porém, sob falência e dívidas foram levados ao

suicídio (Pinto, 1984:111-113). Ainda neste quadro, o colapso e a decadência das

indústrias estáveis eram sempre seguidos pela expansão do comércio casual, pelo aumento crescente do número de comerciantes ambulantes de quinquilarias

(Pinto,1984:115).

Na descrição feita pela autora acerca destes comerciantes ambulantes, a carroça é o principal instrumento de trabalho para o transporte dos diversos tipos de produtos ou para prestação de serviços: flagrantes do grande fluxo de

vendedores ambulantes de alimentos e produtos mais pesados, deslocando-se ao longo dos itinerários habituais, mostram sempre a enorme utilidade das rústicas carrocinhas de madeira, dos mais variados tipos, empregadas como meio de transporte das mercadorias a serem comercializadas. (Pinto,1984:118) (...)

Interessa-nos aqui, de modo especial, um relato acerca do “comércio de compra e venda de ferros-velhos exercido basicamente por imigrantes espanhóis e seus descendentes”:

havia ainda muitos trabalhadores pobres, dentre os quais destacavam-se os espanhóis, que viviam da compra e venda dos resíduos aproveitáveis do consumo industrial. Estes ambulantes compravam, a baixíssimos preços, entulhos reaproveitáveis da economia doméstica, tais como: garrafas, sacos vazios, latas, materiais descartáveis que contivessem chumbo, metal, cobre e ferro-velho. Apesar de pagar um preço insignificante por estas mercadorias, muitas das quais nem compravam, porque recebiam gratuitamente das senhoras abastadas e que gozavam da fama de generosidade, estes ambulantes prestavam um bom serviço às donas-de-casa, retirando de suas despensas entulhos de pouco valor econômico e sem nenhuma finalidade.

(Pinto,1984:136)

Outro relato importante é sobre um grande número de trabalhadores

pobres [que] se dedicava a pequenas atividades autônomas, associadas ao setor de transportes, tais como: charreteiros, cocheiros, carroceiros, barqueiros e carregadores ambulantes de sacos, fardos variados, malas e mudanças: estes profissionais independentes, em geral “gente pobre”, eram profundamente úteis. Exerciam funções fundamentais à vida cotidiana da cidade. (...) Executavam tarefas menores, dedicavam-se a ocupações de pouco ganho, que devido à baixa lucratividade não foram assimiladas pelos setores mais dinâmicos da economia capitalista. As classes populares prestavam pequenos serviços autônomos baratos, associados ao setor de transporte, essenciais à rotina diária da cidade, mas, como proporcionavam baixíssima margem de lucros, não interessava ao empresariado progressista e aos órgãos públicos encampá-los (Pinto,1984:137).

Enfim, são (...) homens sem qualificação profissional, ex-desocupados, operários

especializados, que não encontravam emprego fixo permanente, imigrantes italianos, portugueses, espanhóis, alemães, pretos, mulatos, brancos e brasileiros de origem humilde, [que] valiam-se de sua força física, boa saúde e juventude, para estabelecer-se por conta própria como carroceiros e carreteiros

(Pinto,1984:139).

Por último, queremos destacar o relato sobre o trabalho daqueles que,

para fugir do desemprego crônico, ex-operários juntavam-se à multidão de trabalhadores sem especialização, casuais, que desde a madrugada se agrupavam em torno da zona cerealista central de São Paulo, ponto de contratação de carregadores avulsos (Pinto,1984:141). Neste relato, aparece a

prática da catação das sobras mutiladas de alimentos (...) um dos motivos que

atraíam de imediato e provisoriamente, desempregados famintos, sem qualquer recurso de sobrevivência momentâneo, para este tipo de serviço.

(Pinto,1984:142) (...) Na verdade, o grande contingente de homens disponíveis e

dedicados a carregar fardos, era composto por uma massa heterogênea de mulatos, brancos e imigrantes paupérrimos, procedentes de várias nacionalidades (...), e o estado de profunda penúria, a pobreza comum, generalizada, eram os critérios para a identificação destes profissionais. (Pinto,1984:144-145)

Por outro lado, observamos que a origem remota do atual trabalhador que se põe à atividade da catação – o catador de materiais recicláveis – não tenha correspondência com o referido comerciante, mas sim em relação aos denominados “trabalhadores pobres”, constitutivos de uma “gente pobre” que já no início do século se caracterizava como homens disponíveis e dedicados a

carregar fardos, sendo que o estado de penúria profunda, a pobreza comum, generalizada, eram os critérios para a identificação desses profissionais

(Pinto,1984:137;144). Ainda assim, deve-se ressaltar que a análise sobre o catador não o interpreta como “profissional”, nem como “autônomo”, mas como um trabalhador pobre urbano que, na condição de sobrante, tem sua energia vital consumida nas atividades da reciclagem.

É preciso compreender que estamos diante do processo de produção das matérias-primas, numa estrutura industrial cujo conjunto de atividades consome a energia vital dos catadores60, sejam eles avulsos ou organizados em grupo. De um modo geral, os catadores trabalham majoritariamente de modo informal. Os que trabalham individualmente são chamados de catadores avulsos ou carrinheiros, pois seu instrumento de trabalho elementar é um carrinho, comumente sob a forma de carroça (daí também serem denominados de

carroceiros). Os catadores organizados em grupos trabalham coletivamente,

sendo esta a proposta do modelo de cooperativas. Se por um lado é possível encontrar trabalhadores sobrantes que, vivendo da catação e/ou coleta, reproduzem-se na condição de trabalhadores pobres, por outro, há catadores que sobrevivem na mais profunda miséria (principalmente quando são moradores de rua). Porém, em ambos os casos, o que os catadores ganham corresponde a uma ínfima parte, a menor possível, dos preços dos materiais recicláveis definidos no

60 Exceto no caso dos catadores que trabalham como assalariados dos comerciantes, pois há salário, e portanto, a relação é de exploração da força de trabalho (mais-valia).

mercado pelas próprias indústrias. Esta situação também é válida para as cooperativas, pois o aumento da retirada dos cooperados é determinada, sobretudo, pelo aumento do volume dos recicláveis (ganhos de escala). Esta é a condição vigente para venderem diretamente para as indústrias, obtendo o preço por elas pago (sem a intermediação dos comerciantes que compram para vender mais caro). Ou seja, o que comerciantes e indústrias pagam aos catadores corresponde ao preço dos recicláveis (definidos ao nível do mercado) e não ao trabalho por eles realizado.

Devemos ainda apontar a distinção existente entre a noção de

trabalhadores sobrantes em relação ao trabalho sobrante. No primeiro caso, trata-

se de trabalhadores que se tornam desnecessários para os mais diversos setores produtivos. Situação agravada no processo de reestruturação produtiva resultante da Terceira Revolução Técnico-Científica, pós anos 70. Estes trabalhadores, que já não conseguem vender sua mercadoria força de trabalho em relações formais de trabalho, em troca, portanto, de salário, nem por isso deixam de possuir a capacidade viva de trabalho que produza valor, e mais-valia. Ocorre que no conjunto de atividades que corresponde ao processo de trabalho inscrito na base da indústria, os trabalhadores sobrantes são (re)inserido no processo de produção de uma mercadoria a ser consumida produtivamente. Ou seja, na produção de matérias-primas.

Porém, os trabalhadores que realizam o referido conjunto de atividades, sobretudo as etapas iniciais – catar e separar os materiais – não são assalariados. O dinheiro que ganham corresponde a uma parte, a menor possível, dos preços definidos no mercado de recicláveis, envolvendo fatores como: custo de produção das matérias-primas derivadas de outros processos (vulgarmente denominadas de “matéria-prima original” ou “matéria-prima virgem”); demanda da própria indústria que repercute na oferta e procura pelos recicláveis; variações do mercado financeiro (em relação à moeda internacional, o dólar); incremento de inovações tecnológicas nas linhas de processamento dos recicláveis; dentre outros fatores observados no decorrer da realização da pesquisa.

Por sua vez, o que estes trabalhadores ganham em troca do material vendido corresponde ao irrisório para uma sobrevivência ordinária (em seu duplo sentido). E este ganho não significa pagamento pelo tempo de trabalho socialmente necessário (integrante do salário) que supostamente permitiria a sobrevivência e reprodução destes trabalhadores enquanto força de trabalho.

Portanto, se estes trabalhadores sobrantes, mobilizados como catadores de materias recicláveis, não são reproduzidos como trabalho socialmente necessário, parece que estamos diante do consumo integral destes trabalhadores, que numa analogia ao conceito de trabalho sobrante, corresponderia a uma mais-valia de 100%. Como diz Martins (2002:136) o trabalhador volta a se confundir, como

acontecia na escravidão, com o trabalho propriamente dito. Este é o trabalho puro, que não envolve nenhum encargo social, nenhuma responsabilidade de ninguém.

Mas este trabalho não pago corresponde a um processo de trabalho ao término do qual a mercadoria matéria-prima, oriunda da reciclagem, será consumida produtivamente.

A catação, e demais atividades realizadas pelos catadores, apresentam a seguinte peculiaridade. Este conjunto de atividades entra num fluxo inverso àquele que normalmente existe no mercado. O comércio de recicláveis não tem exatamente a função de realizar o valor das mercadorias através de sua venda ao mercado consumidor (consumo improdutivo). Ao contrário, Este ramo do comércio, como outro qualquer, compra para vender mais caro, mas o circuito de produção e consumo da mercadoria está direcionado ao consumo produtivo. Pois estas mercadorias entrarão na massa da parte circulante do capital constante, enquanto matérias-primas mais baratas, representando redução de custo com capital constante e, portanto, aumento da taxa de lucro. Matérias-primas mais baratas pois contém trabalho não-pago. Ademais, são mercadorias que adquirem um “valor agregado” enquanto “ecologicamente corretas”, por sua vez anunciadas pelo chamado marketing verde das empresas enquanto práticas de Responsabilidade Social e Ambiental. Retomaremos esta discussão posteriormente.

Neste sentido, entende-se que o processo de trabalho realizado pelo