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O trabalho do catador no contexto do comércio de recicláveis

TRABALHADORES SOBRANTES NA BASE DA INDÚSTRIA DA RECICLAGEM : OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS

2.2. O trabalho do catador sob a perspectiva do materialismo histórico

2.2.1. O trabalho do catador no contexto do comércio de recicláveis

Nesta primeira perspectiva, o trabalho realizado pelo catador está restrito à esfera da circulação, onde se realiza o comércio. Aqui se situam as atividades de catação (a coleta), transporte e finalmente o ato da venda dos materiais recicláveis para comerciantes do setor (sucateiros, ferros-velhos, depósitos, reciclagem, entre outras modalidades).

Deste ponto de vista, o catador realiza uma troca comercial, pela qual recebe um pagamento em dinheiro pela venda (troca simples) do material reciclável obtido na atividade da catação. Neste sentido, atua como uma espécie de trabalhador autônomo, segundo uma disciplina – um ritmo, em termos de tempo e de organização das atividades elementares do “processo de trabalho”, quais sejam: catar, separar, transportar, vender.

Mas já aqui não podemos desconsiderar a possibilidade de algum

beneficiamento dos materiais recicláveis. Seja a simples separação dos diferentes

tipos de materiais catados (papéis, vidros, plásticos, metais), o que pode acontecer nos próprios espaços públicos como ruas, calçadas, sob viadutos. Ou ainda triagens mais detalhadas, de acordo com classificações desses mesmos materiais (diferentes tipos de papéis, de plásticos, de metais, de vidros).

Por outro lado, atividades como prensagem e enfardamento demandam ao menos mais um instrumento, a prensa, mas o catador avulso normalmente possui apenas uma um carrinho, o qual pode ser emprestado dos comerciantes67.

Quanto mais dependentes de técnicas e equipamentos especializados estejam as atividades da reciclagem, mais distantes se encontram do alcance do catador que trabalha “por conta própria” e de forma individual. Geralmente, somente as empresas, que se especializam no ramo da reciclagem, seja sob a forma jurídica de cooperativa ou outra modalidade, possuem a infra-estrutura necessária para executá-las, embora nem sempre em condições adequadas. É o caso de associações e cooperativas de catadores que realizam tais atividades

67 Com este “empréstimo”, o catador fica praticamente obrigado a vender os recicláveis somente naquele estabelecimento. Um mecanismo de exploração, pois o catador fica à mercê das condições impostas pelo comerciante. Uma destas condições é justamente o fato do catador não poder vender seus materiais em outro estabelecimento que lhe pague melhor.

improvisando os instrumentos de trabalho, como bancadas para triagem e uso de prensas manuais, entre outras alternativas encontradas.

Nesta perspectiva, enquanto trabalhador autônomo restrito à esfera da circulação, o catador não possui patrão, nem salário. Trabalha por conta própria, estabelece seu itinerário, faz seu próprio horário. Sobrevive com o dinheiro que recebe, geralmente no final de cada dia, em troca do que consegue catar e vender. Não produz nenhuma mercadoria, nem valor, nem mais valor (mais-valia). O dinheiro que chega às suas mãos é calculado de acordo com os preços estabelecidos para cada um dos materiais recicláveis, variando conforme seus respectivos mercados (o de papel e celulose, o de vidros, o de plásticos, o de sucatas metálicas, etc.). Vale destacar que neste mercado participam indústrias especializadas em embalagens, e indústrias produtoras de mercadorias para o consumo em geral, as quais demandam embalagens para seus produtos finais. Além disso, os preços dos materiais recicláveis oscilam em relação ao custo de produção das matérias-primas, bem como de acordo com as inovações tecnológicas de processamento dos recicláveis, ou ainda em decorrência de incentivos e financiamentos do Estado (no que se inserem as políticas públicas que disciplinam o funcionamento do setor).

Com esta primeira abordagem, o trabalho do catador poderia ser entendido como trabalho improdutivo que se realiza no âmbito da circulação, viabilizando indiretamente os lucros auferidos pela indústria da reciclagem.

Ainda sob esta perspectiva, deve-se considerar que o dinheiro que o catador recebe em troca dos materiais provém, num primeiro nível, da própria esfera da circulação. Ou seja, o dinheiro chega às mãos do catador por intermédio dos comerciantes, geralmente de pequeno porte. Estes valores correspondem a uma porcentagem, a menor possível, do montante de dinheiro (já sob a forma de capital comercial68, prestando-se à função de comprar para vender mais caro) que é injetado nesta esfera da circulação onde se dá o comércio da

reciclagem. No sentido inverso, os comerciantes compram dos catadores, aos menores preços, e revendem para as indústrias, ao preço que se forma no

68 (...) Cada novo capital pisa em primeira instância o palco, isto é, o mercado, mercado de

mercadorias, mercado de trabalho ou mercado de dinheiro, sempre ainda como dinheiro, dinheiro que deve transformar-se em capital por meio de determinados processos. (...) a forma D-M-D, transformação de dinheiro em mercadoria e retransformação da mercadoria em dinheiro, comprar para vender. Dinheiro que em seu movimento descreve essa última circulação transforma-se em capital, torna-se capital e, de acordo com sua determinação, já é capital (Marx, v.1, 1988: 121-

mercado. Devemos observar que esta não é a única forma de transação comercial que os referidos comerciantes praticam, mas ficaremos nela em função dos objetivos da presente exposição69.

Por sua vez, os comerciantes que atuam nos diferentes níveis das cadeias produtivas da reciclagem (desde o dono de um pequeno depósito até o grande aparista, para exemplificar), participam da distribuição desigual do valor total deste capital comercial, conforme o diferencial que possuem em termos de propriedade. Assim, são as empresas mais capacitadas do setor (sejam elas depósitos, sucateiros ou cooperativas) as que conseguem vender os materiais recicláveis diretamente para recicladores e indústrias produtoras de mercadorias. Justamente porque atendem os requisitos exigidos pela indústria, tais como: qualidade (separação, limpeza, idoneidade, etc.), quantidade (toneladas) e freqüência dos recicláveis. O que, por sua vez, implica num nível maior de organização do processo de trabalho.

É neste contexto que entram as cooperativas, pois geralmente adotam o sistema da coleta seletiva porta-a-porta, convocando cada domicílio a “fazer a sua parte”70, separando na fonte os materiais recicláveis a serem coletados em datas pré-estabelecidas. O material reciclável separado na fonte (evitando sua contaminação pelo lixo), apresenta-se desde o início como de melhor qualidade, além da coleta porta-a-porta, por sua própria natureza, garantir uma certa freqüência. O aumento do volume, neste caso, depende do porte dos meios de transporte (que pode ser desde uma frota de carrinhos até caminhões) e do percurso percorrido (potencializado por veículos motorizados).

No caso dos depósitos (e demais modalidades correlatas), o fluxo de entrada de materiais oscila de acordo com a dinâmica das atividades dos catadores avulsos, além de outras fontes de compra de materiais71. Nisto reside um dos conflitos na competição existente entre depósitos e cooperativas. Enquanto os depósitos compram os materiais, as cooperativas possuem como princípio não realizarem compra, substituindo esta prática pela coleta seletiva

69 Existem outras modalidades de transações, das quais podemos indicar desde a dona de casa que vende os materiais recicláveis, oriundos do consumo familiar, ao comércio de sucatas mais próximo de sua casa (ou àquele que lhe pague um melhor preço), até entidades que doam os materiais recicláveis às cooperativas de catadores, para ficarmos somente nestes dois exemplos. 70 Do ponto de vista do processo industrial de produção da matéria-prima, o “fazer a sua parte” significa que também os domicílios estão entrando na composição da base estrutural desta indústria.

71 Desde a dona de casa que leva os resíduos do consumo familiar em troca de algum dinheiro, até grandes geradores, como mercados, escolas, shoppings, etc.

porta-a-porta e captação de doações. A este respeito, as cooperativas podem participar de projetos ou programas de responsabilidade social e ambiental das empresas geradoras de resíduos (tais como Suzano Papel e Celulose, Banco Real, Makro hipermercados, Rede Pão de Açúcar, shopping-centers, entre muitos outros).