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O trabalho do catador no contexto da estrutura industrial

TRABALHADORES SOBRANTES NA BASE DA INDÚSTRIA DA RECICLAGEM : OS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS

2.2. O trabalho do catador sob a perspectiva do materialismo histórico

2.2.2. O trabalho do catador no contexto da estrutura industrial

Em primeiro lugar, na análise sobre a origem do capital comercial que se forma no nível dos comerciantes de recicláveis, deve-se compreender que o mesmo não surge da esfera da circulação72, mas provém da indústria que demanda e compra os materiais recicláveis. Seja como matérias-primas de seus próprios processos produtivos, seja para transformá-los em novas matérias- primas para outras indústrias dos mais diversos ramos73.

Aí está um ponto de inflexão, que aponta para outra perspectiva de análise do trabalho do catador.

Os materiais recicláveis têm entrado nos processos produtivos enquanto matérias-primas mais baratas, diminuindo custos com capital constante, em sua parte circulante. Isso é geralmente explicado como decorrência de economias diversas, seja em relação ao processo de extração dos materiais in

natura (o que também implica tributações de ordem ambiental, sobretudo quando

resulta em impactos ambientais, o que costuma ser a regra e não a exceção), seja pelo menor consumo de energia e de água (conforme os cálculos apresentados pela pesquisa de Sabetai Calderoni, Os bilhões perdidos no lixo, de 1997).

Mas, a produção da matéria-prima oriunda da reciclagem, como qualquer outra mercadoria, ocorre na esfera da produção. Por sua vez, o

72 Mas já que é impossível explicar por meio da própria circulação a transformação de dinheiro em

capital, a formação de mais-valia, o capital comercial parece impossível na medida em que se permutam equivalentes, só sendo ele, portanto, dedutível do duplo prejuízo infligido aos produtores de mercadorias que compram e vendem pelo comerciante que se atravessa parasitariamente entre eles. (...) Para que a valorização do capital comercial não seja explicada por mero engodo dos produtores de mercadorias, é preciso dispor de uma longa série de elos intermediários (...). (Marx, v.I, tomo I, Pp. 136-137)

73 A exemplo, as garrafas tipo PET que são transformadas em matéria-prima para a indústria têxtil, como fio sintético.

processo integral de reciclagem começa no seu nível de base, onde se encontra o conjunto de atividades realizadas pelos catadores. Segundo esta perspectiva, o trabalho do catador, que aparece separado do processo produtivo, pode também ser compreendido enquanto trabalho integrado ao capital produtivo.

Em qual sentido? Ao menos de duas formas. Primeiro, o conjunto de atividades realizadas pelos catadores, na primeira etapa do processo de reciclagem, é parte constitutiva e imprescindível do processo de reciclagem. Por sua vez, como explicado em relação à esfera do comércio, o que os catadores ganham na troca simples que realizam com os comerciantes, corresponde a uma porcentagem diminuta dos preços de mercado. Corresponde, portanto, a trabalho não pago. E este entendimento deve estar presente na explicação sobre porque estas matérias-primas são mais baratas do que as denominadas “materiais primas originais”. Em segundo lugar, como são matérias-primas mais baratas, permitem o aumento da taxa de lucro (economia de gastos com capital constante em sua parte circulante). Mas estes resultados só vão aparecer no nível da própria indústria, portanto muito longe do processo de trabalho realizado pelos catadores, mas não independe deles.

Vejamos: trata-se de um exército de desempregados lançados à catação dos materiais recicláveis que, histórica e culturalmente, são descartados enquanto resíduos da sociedade de consumo, numa só palavra: lixo. Enfatizemos, um exército de catadores: ao menos 500.000 catadores em todo o Brasil (ABRELPE74); de 20.000 (Instituto Polis75) a 40.000 catadores somente na cidade de São Paulo, segundo estimativas de pesquisas realizadas por entidades que se dedicam ao tema, e com base em estudos realizados nesta Tese.

São milhares de catadores, trabalhadores pobres urbanos, (re)inseridos produtivamente numa sociedade incessantemente produtora de mercadorias e vorazmente consumidora: são eles que vão ao lixo, são eles que realizam, feito máquinas, o momento tênue e brutal no qual acontece a mudança de qualidade do lixo em material reciclável. Neles reside uma síntese-contraditória do mais sui generis dos operários (o que, evidentemente, não são), cuja força vital (literalmente força) é empregada na transformação da “natureza” (não mais a “primeira”) em novo produto, mercadoria a ser consumida pela indústria sob a

74 Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais.

75 Entidade do da Sociedade Civil que atua no Fórum “Lixo e Cidadania” no Município de São Paulo.

forma de matéria-prima. Este é o ato exato, e primeiro, que insere o catador no processo de produção de matéria-prima para as indústrias dos mais diversos ramos. Trabalho totalmente não pago. É preciso insistir: o que é pago ao catador corresponde a uma ínfima parte dos preço formados no mercado de recicláveis, estabelecidos pelas próprias indústrias consumidoras desta matéria-prima. Quanto poderia valer o trabalho do catador? Não cessam de surgir novos discursos, promovidos pela própria industria da reciclagem, veiculados sobretudo por seu Terceiro Setor, acerca da importância do seu papel como agentes

ambientais. Também não faltam depoimentos favoráveis a isto, provenientes dos

próprios catadores, capacitados e certos de que prestam um dos mais importantes serviços para a sociedade inteira. E qual é o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de “n” toneladas de materiais recicláveis durante “x” horas de jornada de trabalho? Depende. Há um silêncio sobre estes termos. Como resposta, multiplicam-se teorias diversas sobre como agregar valor aos materiais recicláveis, aumentar a produtividade, eliminar atravessadores, vender direto para a indústria a “preços justos”. Sob qual modelo? Cooperativas. Prestadoras de serviço para a indústria que se estrutura com apoio do governo, da sociedade civil, da imprensa, da sociedade inteira. “Postos de trabalho são assim gerados”. Todos agradecem: desempregados que agora são convocados, como nunca antes, a serem os baluartes do empreendedorismo. Enfim, toda a sociedade que agora pode consumir sem ferir os preceitos da responsabilidade social e ambiental. Afinal, quem promove efetivamente aquele retórico “R” da Redução, o último a ser lembrado na “Trilogia dos 3R’s”? Quando muito, ele é timidamente citado por conferencistas que explicam a eficiência de suas teorias, como esta dos 3, ou 4 ou 5 “Rs” (reduzir, reutilizar, reciclar, repensar, etc..). Este é o outro mundo possível, onde certamente viverão as futuras gerações... de capitalistas.