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Governança urbana, empreendedorismo e Parcerias Público-Privadas

T ERCEIRO SETOR NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS NEO LIBERAIS

3.2. O Terceiro Setor no contexto do neo-liberalismo: revisão conceitual

3.2.2. Governança urbana, empreendedorismo e Parcerias Público-Privadas

Em “Governabilidade e pobreza no Brasil” (1995), Valladares ao atualizar sua abordagem sobre a questão da “pobreza”, afirma que o tema expresso no título do livro suscita, entre outros aspectos, a reflexão sobre a

reforma do Estado e sobre as relações entre Estado e sociedade civil. Dentre os

objetivos do Seminário que deu origem à coletânea de textos reunida no referido livro98 estava a discussão das noções de governabilidade e governança utilizadas como formulações estratégicas de agências como o Banco Mundial – que fala sobretudo de ‘governance’ no sentido de ‘bom governo’. Outro objetivo era propiciar uma discussão específica sobre o que se pode chamar de governabilidade urbana, focalizando os governos municipais e seus esforços recentes para desenvolver uma gestão democrática da cidade, capaz de mobilizar, para a participação no processo de decisão, os diversos segmentos da sociedade civil. (Valladares & Coelho, 2005:10).

Desta mesma obra, destacamos o texto de Marcus André Mello, numa discussão sobre a governabilidade enquanto categoria da sociologia política gestada na década de 70. Lembra o autor que, tanto aqui quanto no exterior, o debate deslocou-se, em grande medida, da questão do desenvolvimento econômico para as questões relativas à moldura institucional das economias e aos requisitos societais, organizacionais e políticos que permitiriam uma maior

98 “Os textos que integram esta coletânea resultaram de um seminário organizado pelo IUPERJ no âmbito do projeto GURI – corresponde a “Global Urban Research Initiative”. (Valladares & Coelho, 1995:10)

eficiência do Estado. Na década de 90, as agências multilaterais, dentre as quais o Banco Mundial, passaram a difundir o conceito de governança. Este conceito se distingue do de governabilidade no sentido de que ‘enquanto a governabilidade se refere às condições do exercício da autoridade política, governança qualifica o modo de uso desta autoridade”99(Mello, 2005:30). O conceito ultrapassa o marco do modus operandi das políticas para englobar questões mais amplas relativas a padrões de coordenação e cooperação entre atores sociais. Embora a noção inclua a necessidade de aperfeiçoamento da capacidade gerencial do Estado, transcende o mero plano institucional, supondo participação e parceria entre o Estado e a sociedade na definição de prioridades, na implementação dos programas e das políticas públicas.

Assim como Mello (2005) distingue governança e governabilidade, Harvey (2005) adverte que “governança” urbana significa muito mais do que “governo” urbano100 pois o poder real de reorganização da vida urbana muitas vezes está em outra parte, ou, pelo menos, numa coalizão de forças mais ampla, em que o governo e a administração urbana desempenham apenas papel facilitador e coordenador. O poder de organizar o espaço se origina em um conjunto complexo de forças mobilizado por diversos agentes sociais. (Harvey, 2005:168)

Para Harvey, as transformações econômicas pós década de 70 repercutiram no âmbito do poder local, caracterizando-se como uma mudança “do administrativo urbano ao empreendedorismo”101. Esta mudança seria conseqüência dos problemas advindos das crises econômicas enfrentadas pelos países capitalistas no início da década de 70, destacando que a desindustrialização, o desemprego disseminado e aparentemente “estrutural” (...), um apelo muito mais forte (...) à racionalidade do mercado e à privatização, representam o pano de fundo para entender por que tantos governos urbanos, muitas vezes de crenças políticas diversas e dotados de poderes legais e políticos muito diferentes, adotaram todos uma direção muito parecida (...).(Harvey, 2005:168)

Harvey (2005:167) explica que a abordagem “administrativa”, que vigorou fortemente nos anos 60, foi substituída pelas ações “empreendedoras” nas décadas seguintes. Seguindo esta tendência, observa-se nos anos recentes

99 Grifo nosso. 100 Grifo nosso.

101 (...) desde o início da década de 1970, a mudança do administrativismo urbano para algum gênero de empreendedorismo continua sendo um tema persistente e recorrente. (...) Há uma concordância geral de que a mudança tenha ver com as dificuldades enfrentadas pelas economias capitalistas a partir da recessão de 1973. (Harvey, 2005:168)

um consenso geral sobre “benefícios positivos obtidos pelas cidades que adotam uma postura empreendedora em relação ao desenvolvimento econômico”. De fato, tal consenso se difunde por todas as esferas da sociedade, caracterizando um modo de ser do Estado e da sociedade civil à semelhança da estrutura gerencial das empresas. Para Harvey (2005) o modelo de Parceria Público- Privada constitui o elemento principal do empreendedorismo, caracterizando-se como especulativo e associado à economia política do lugar, em detrimento de melhores condições para o território: em primeiro lugar, o novo empreendedorismo tem, como elemento principal, a noção de “parceria-público-privada”, em que a iniciativa tradicional local se integra com o uso dos poderes governamentais locais, buscando e atraindo fontes externas de financiamento, e novos investimentos diretos ou novas fontes de emprego. (...) Em segundo lugar, a atividade da parceria público-privada é empreendedora, pois, na execução e no projeto, é especulativa, e, portanto, sujeita a todos os obstáculos e riscos associados ao desenvolvimento especulativo, ao contrário do desenvolvimento racionalmente planejado e coordenado. Em muitos casos, isto significou que o setor público assumiu o risco, e o setor privado ficou com o benefícios (...). Em terceiro lugar, o empreendedorismo enfoca muito mais a economia política do lugar do que o território. (...) Normalmente, o novo empreendedorismo urbano se apóia na parceria público-privada, enfocando o investimento e o desenvolvimento econômico, por meio da construção especulativa do lugar em vez da melhoria das condições num território específico, enquanto seu objetivo econômico imediato (ainda que não exclusivo).

(Harvey, 2005:172-174)

Arantes (2004) analisa as práticas e discursos dos agentes do Terceiro Setor no processo de reforma do Estado. O autor questiona as mudanças recentes na administração pública diretamente vinculadas ao campo de atuação das organizações não-governamentais, cujas parcerias revelam um modelo gerencial, em consonância com a lógica empresarial102, a exemplo das políticas públicas fomentadoras do “empreendedorismo”. O principal “desafio” para as parcerias entre as diferentes esferas (governamental, não-governamental e privada) reside no campo aberto para projetos e inovações de combate à pobreza, sobretudo frente ao desemprego que, por sua vez, concentra-se em metrópoles como São Paulo. Nos trechos citados a seguir, podemos observar alguns destes questionamentos formulados por Arantes: em princípio, como aliás o próprio nome indica, uma Organização Não-Governamental não pode pensar e agir como uma agência estatal. (...) [Porém] de uns tempos para cá, autoridades governamentais

102 Grifo nosso.

desandaram a gesticular e arengar como se fossem militantes de uma ONG de todas as ONGs, (...) ocupando (...) postos chaves no aparelho de Estado, sobretudo os diretamente concernidos por uma enteléquia cívica denominada “o social”. Ato contínuo, têm se dedicado a lançar “programas” de fortalecimento, e, pelo visto, em promoção (...). Espaços obviamente de “participação”, e mais enfaticamente, de “participação cidadã”, irrigados por “canais de interlocução”, através dos quais governo e a supracitada sociedade civil “aprendem a pensar e agir juntos”, constróem plataformas para futuras “parcerias” e novas “interações”, conferem “visibilidade” a iniciativas emergentes”, promovem a “cidadania ativa”. (...) Para quem orbita nesses espaços de alta densidade moral, tudo é “desafio”: miséria, violência, fome, desemprego, etc. (...) O maior “desafio”, porém, é a “incorporação da cidadania”, a “defesa e promoção dos direitos”. Reforma do Estado? Administração Pública “gerencial”? Com certeza, desde que “voltada para a cidadania”. Quer dizer, mais uma vez, destinada ao fortalecimento de uma “sociedade civil eticamente estruturada”. (...) No limite, não há nada que não exija aspas, ou – imaginando uma futura organização do pensamento não-governamental – que não deva ser dito como quem cita. (Arantes, 2004:165-166)

Ainda em relação ao empreendedorismo, Harvey (2005) entende que o mesmo apresenta coerência com a transição dos sistemas de produção fordista, estando em grande medida relacionado com o trabalho informal. Ou seja, desde o início da década de 1970, não há nada sobre o empreendedorismo urbano que seja antitético à tese relativa à mudança macroeconômica (...). De fato, pode-se afirmar com segurança que as mudanças na política urbana e o movimento rumo ao empreendedorismo têm desempenhado um importante papel facilitador na transição dos sistemas de produção fordista localizacionalmente rígidos. (Harvey, 2005:181).

3.2.3. A mediação das ONG’s nos investimentos destinados às demandas