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2. IMPORTÂNCIA TEÓRICA E PRÁTICA DA ADOÇÃO PELA

2.2. Contribuição da “doutrina crítica” ao princípio da supremacia do interesse

2.2.2. Desmistificações necessárias

2.2.2.1. Distinção conceitual entre interesse público e interesse do poder

Marçal Justen Filho leciona que “a tradição jurídica costuma identificar interesse público e interesse do Estado”, denunciando “uma espécie de circularidade”, pela qual “o

317 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico

dos direitos fundamentais, cit., p. 235-236.

318 Ibidem, p. 236.

interesse é público porque atribuído ao Estado e é atribuído ao Estado porque público”320. A crítica formulada por Humberto Ávila, Alexandre Santos de Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm e Paulo Ricardo Schier à supremacia do interesse público sobre o privado parece incidir nesse ponto, na medida em que se assenta na suposição de que os intérpretes (aplicadores) poderiam se servir desse princípio, quando da tomada de posições frente a casos concretos, para afastar a realização de direitos subjetivos individuais (interesses privados) em favor da realização de interesses coletivos (ou públicos). Dessa premissa resulta a qualificação, por esses autores, da supremacia do interesse público sobre o privado como uma “regra de preferência” (e não como princípio, ou postulado).

Ocorre que, em rigor, o interesse público não deve ser confundido com o interesse do Estado. Tal se infere, sem maiores dificuldades, da doutrina do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello321, da qual se extrai que, ao lado do interesse público, por ele qualificado como interesse do Estado e da sociedade na observância da ordem jurídica estabelecida322, o poder público também manifesta interesses particulares (por exemplo, cobrar tributos), designados por Renato Alessi323 como interesses secundários e adiante qualificados por Bandeira de Mello como interesses particulares do Estado324. Para esse professor paulista, esses interesses particulares do Estado somente merecem proteção jurídica quando instrumentais ao interesse público325 (por exemplo, cobrar tributos dentro dos limites legais, para tornar viável o fornecimento de serviços públicos). Portanto, a realização do interesse público, tal como conceituado por Bandeira de Mello, não induz, em concreto, a prevalência do público sobre o privado, e por isso não inibe a realização dos direitos subjetivos individuais que decorrem das regras e princípios que compõem o ordenamento jurídico- positivo.

Esse posicionamento de Bandeira de Mello quando a não se confundirem o interesse público e o interesse do poder público encontra amplo respaldo na doutrina jurídica.

320 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo, cit.,

p. 116.

321 Exposta no Tópico 2.1.4 deste capítulo.

322 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 72.

323 Cfr.: ALESSI, Renato. Sistema instituzionale Del Diritto Amministrativo Italiano, cit., p. 197. 324 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 188.

325 A propósito, recobro que, para Bandeira de Mello, o interesse público consiste no plexo dos interesses dos

indivíduos enquanto partícipes da sociedade, ou seja, daqueles interesses individuais qualificados como instrumentais ao interesse público, e que constituem, assim, o que esse professor paulista convencionou chamar “dimensão pública dos interesses individuais” (Ibidem, p. 188).

Quanto ao particular, Sérgio Ferraz expressa que “não é a natureza da pessoa que determina a natureza do direito ou do interesse abordado”326. Nesse mesmo sentido se manifestam Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem o interesse público refere-se “aos beneficiários da atividade administrativa e não aos entes que a exercem”327, e Marçal Justen Filho, que adverte que a construção do conceito de interesse público a partir da identidade do seu titular traduziria “inversão lógica e axiológica insuperável e frustração da sua função”328. Para esse professor paranaense, “definir o interesse como público porque titularizado pelo Estado significa assumir uma certa escala de valores”, num contexto em que “deixa de indagar-se acerca do conteúdo do interesse para dar-se destaque à titularidade estatal”, o que “corresponde à concepção de que o Estado é mais importante do que a comunidade e que detém interesses peculiares”329. Ocorre que, sendo o Estado um instrumento para a realização dos interesses públicos, deve-se reconhecer “que o conceito de interesse público é anterior ao conceito de interesse do Estado”, e que por isso “o interesse é público não porque atribuído ao Estado, mas é atribuído ao Estado por ser público”330, como expressa Justen Filho na seqüência. Sendo assim, “a titularidade pelo Estado representa, quando muito, um indício de ser público o interesse”, indício que conduz, “como não poderia deixar de ser, a uma presunção relativa”331. Por isso é que, para Ferraz, o “interesse público não é, pois, aquele pertinente à pessoa pública que o titularize; nem mesmo é, pura a simplesmente, o interesse do público”332.

A distinção entre interesse público e interesse da Administração (ou interesse do poder público) também é encontrada na obra do Professor Clovis Beznos333, para quem o interesse público “constitui-se na síntese dos interesses da coletividade, emanados das normas e princípios constantes do ordenamento jurídico, de onde decorrem os valores prevalentes relativos à mesma coletividade”, ao passo que o interesse da Administração resta circunscrito

326 FERRAZ, Sérgio. Regulação da economia e livre concorrência: uma hipótese. Revista de Direito Público da

Economia, Belo Horizonte: Fórum, n. 1, jan./mar. 2003. p. 203.

327 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo:

Atlas, 1991. p. 163.

328 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo, cit.,

p. 117.

329 Ibidem, p. 117. 330 Ibidem, p. 117. 331 Ibidem, p. 118.

332 FERRAZ, Sérgio. Regulação da economia e livre concorrência: uma hipótese, cit., p. 203. 333 BEZNOS, Clovis. Procuradoria Geral do Estado e defesa dos interesses públicos, cit., p. 138.

às manifestações volitivas do corpo administrativo, que não necessariamente serão coincidentes com o interesse público. Como Bandeira de Mello, Beznos reporta-se à doutrina de Renato Alessi, para advertir que os chamados interesses secundários “somente podem realizar-se em caso de coincidirem com os interesses públicos”, isto é, com os interesses primários, e observa que “com freqüência podem se atritar ambas as espécies, decorrendo ipso facto a ilegitimidade desses interesses secundários”334-335.

A propósito, Romeu Felipe Bacellar Filho lembra que é próprio do exercício da função administrativa a realização de interesses coletivos336. Mas observa que “estes interesses coletivos, dos quais a Administração deve buscar satisfação, não são necessariamente os interesses da Administração enquanto aparato organizativo autônomo, mas sim o interesse coletivo primário, ou seja, o interesse da coletividade”337. Para Bacellar Filho, “somente esse interesse é público”338. Em tal conjuntura, “o interesse do aparato administrativo é simplesmente um dos interesses secundários, assim como os demais interesses meramente individuais”339.

Também defendem a distinção teórica entre interesse público e interesse do poder público, entre outros, Cristiana Fortini, Maria Fernanda Pires de Carvalho Pereira, Tatiana Martins da Costa Camarão340, Francisco das Chagas Gil Messias341 e Derly Barreto Silva Filho342. Esse posicionamento é absolutamente compatível com a conhecida lição Cirne Lima, no sentido de que a “Administração [...] é a atividade do que não é proprietário, do que não

334 BEZNOS, Clovis. Procuradoria Geral do Estado e defesa dos interesses públicos, cit., p. 138.

335 Recobro, ao ensejo, na esteira do que observei anteriormente, que é impróprio falar em interesse público

secundário, porque, como expressa, em doutrina, o Professor Ricardo Marcondes Martins, o “interesse público secundário só é reconhecido pelo Direito quando for coincidente com o interesse público primário” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Arbitragem e administração pública: contribuição para o sepultamento do tema, cit., p. 200). Assim, adverte Martins, o “interesse público secundário, enquanto interesse juridicamente reconhecido, não possui autonomia”, precisamente porque “só é juridicamente acatado pelo ordenamento se for coincidente com o primário”, pelo que, “noutros termos, o interesse secundário será um interesse juridicamente reconhecido somente quando for também um interesse primário” (Ibidem, p. 201).

336 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. A noção jurídica de interesse público no Direito Administrativo

Brasileiro, cit., p. 92.

337 Ibidem, p. 92. 338 Ibidem, p. 92. 339 Ibidem, p. 92.

340 FORTINI, Cristiana; PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho; CAMARÃO, Tatiana Martins da Costa.

Processo Administrativo: comentários à Lei nº 9.784/1999. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 48.

341 MESSIAS, Francisco das Chagas Gil. Interesse público e interesse estatal, cit., p. 1.415.

342 SILVA FILHO, Derly Barreto. O controle da legalidade diante da remoção e inamovibilidade dos advogados

tem a disposição da cousa ou do negócio administrado”343. Nessa perspectiva, se o Administrador não é “proprietário” do interesse público, não tendo, assim, disposição sobre ele, é inadmissível que, em concreto, o interesse público seja tomado como sinônimo do interesse da Administração ou do poder público.

2.2.2.2. Distinção conceitual entre o interesse público e os múltiplos interesses atribuídos à