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2. IMPORTÂNCIA TEÓRICA E PRÁTICA DA ADOÇÃO PELA

2.2. Contribuição da “doutrina crítica” ao princípio da supremacia do interesse

2.2.5. Interesse público e ponderação: atualizando a definição de conceito

Professor Celso Antônio Bandeira de Mello.

Outra contribuição relevante extraída da “doutrina crítica” assenta-se sobre a introdução na temática do interesse público da observação segundo a qual a aplicação do Direito de nosso tempo pressupõe o emprego pelos intérpretes da chamada “técnica de ponderação”. Em apertada síntese, seus artífices expressam, quanto ao particular, que o próprio ordenamento jurídico-positivo estabelece, nas leis e na Constituição, “pré- ponderações” para a solução de conflitos individuais e coletivos, e que somente na ausência dessas “pré-ponderações” normativas é que haveria espaço para a opção dos intérpretes, frente aos casos concretos, entre um e outro interesse tencionado.

A propósito, recobro a lição de Alexandre Santos de Aragão, quando se reporta à existência de regras jurídicas que realizam uma “pré-ponderação” entre os valores envolvidos, optando, conforme a hipótese fática descrita em seus enunciados prescritivos, pela preponderância de determinado interesse, seja ele um interesse público ou privado433. Essa “pré-ponderação” pode ser feita pela própria Constituição, como se verifica, no exemplo citado por Gustavo Binenbojm, quando se observa que, diante de “potencial conflito entre o direito de propriedade e o interesse da coletividade em ver realizadas determinadas obras públicas ou obter determinados serviços públicos, cuja concretização depende da expropriação de bens particulares”, o constituinte se antecipou ao legislador e ao administrador, na medida em que, “ao tempo em que assegurava o direito de propriedade, dispôs que a desapropriação era possível, desde que à contrapartida do pagamento de uma indenização justa, prévia e em dinheiro”434. Mas também pode ser instrumentalizada na legislação infraconstitucional, hipótese em que, conforme Aragão, apresenta-se como “pré- ponderação” presumidamente constitucional, e por isso deve ser acatada pelos intérpretes (aplicadores)435. Disso decorre a advertência de Aragão no sentido de que apenas “quando o intérprete se deparar com situações para as quais não exista norma abstrata pré-ponderando os interesses envolvidos”, contexto “em que não há como se pressupor uma necessária supremacia de alguns desses interesses sobre outros”, é que lhe cumprirá “realizar a ponderação de interesses in concreto, à luz dos valores constitucionais envolvidos, que podem pesar, ora em favor de interesses públicos, ora de interesses privados”436-437.

Porém, adverte Binenbojm438, mesmo na hipótese de inexistência de “pré- ponderações” normativas sobre o objeto do dissídio os intérpretes não estão livres para optar

433 ARAGÃO, Alexandre Santos de. A “Supremacia do Interesse Público” no Advento do Estado de Direito e na

Hermenêutica do Direito Público Contemporâneo, cit., p. 04.

434 BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: um novo

paradigma para o Direito Administrativo, cit., p. 163.

435 ARAGÃO, Alexandre Santos de. A “Supremacia do Interesse Público” no Advento do Estado de Direito e na

Hermenêutica do Direito Público Contemporâneo, cit., p. 05.

436 Ibidem, p. 05.

437 Nesse mesmo sentido se posicionam Daniel Sarmento (SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de

direito constitucional, cit., p. 79), Gustavo Binenbojm (BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito Administrativo, cit., p. 163-164) e Paulo Ricardo Schier (SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais, cit., p. 235-236).

438 Em suas próprias palavras, cumpre aos intérpretes percorrer em concreto todas “as etapas de adequação,

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito para encontrar o ponto arquimediano de justa ponderação entre direitos individuais e metas coletivas” (BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito Administrativo, cit., p. 164).

entre um e outro interesse tencionado, porque devem percorrer, nessa sua tarefa interpretativa, os pressupostos empregados pela doutrina jurídica para a escorreita aplicação dos princípios/postulados439 da razoabilidade e da proporcionalidade como forma de solucionar, mediante ponderação, a tensão entre interesses igualmente relevantes para o ordenamento jurídico positivo. Nesse contexto, cumpre-lhes indagar, em vista das particularidades do caso concreto, (i) sobre a adequação da restrição a um ou outro interesse em cotejo, que consiste em verificar se o meio eleito (a restrição a um dos interesses) promove adequadamente o fim projetado (a realização do outro interesse), (ii) sobre a necessidade dessa restrição, que consiste em verificar se entre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim projetado (a realização de um dos interesses) não há outro meio menos restritivo do interesse afetado, e (iii) sobre a proporcionalidade em sentido estrito da restrição cogitada, que consiste em verificar se as vantagens trazidas pela promoção do fim projetado (a realização de um dos interesses) correspondem (e se superam) às desvantagens provocadas pela adoção do meio empregado (restrição a um dos interesses)440.

O que se observa, então, nos textos que compõem a “doutrina crítica”, é que há limites para a atuação dos intérpretes no campo da aplicação do Direito, que em tese obstariam a prevalência, ou supremacia, de interesses públicos (coletivos) sobre privados (individuais). Esses limites se situam, conforme Ávila, Aragão, Sarmento, Binenbojm e Schier441, precisamente na constatação de que o relacionamento entre os interesses tencionados e cada caso concreto resolve-se, nos dias de hoje, mediante juízo de ponderação.

Não questiono a importância da ponderação para a concretização do Direito contemporâneo. Sobretudo quando se está diante da incidência de enunciados prescritivos de conteúdo fluido, que empregam conceitos jurídicos indeterminados, que se tornaram muito comuns no processo de construção dos textos normativos a partir da segunda metade do Século XX442. Em especial de princípios jurídicos, notadamente aqueles de estatura

439 Denominação proposta por Humberto Ávila (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à

aplicação dos princípios jurídicos, cit., p. 87-88).

440 Ibidem, p. 112-113.

441 Quanto ao particular, reporto-me, ainda, às minhas considerações no Tópico 2.2.1 deste capítulo.

442 O que se dá é que o Mundo Contemporâneo, a reboque dos conflitos e insurreições que marcaram o Século

XX, presenciou uma verdadeira revolução no campo jurídico-filosófico, que redundou, adiante, no ocaso do paradigma normativo liberal-burguês. Com isso, a forma com que o direito positivo passou a ser construído ao final do século passado, mediante o emprego de normas de tecitura aberta, compostas por cláusulas gerais e termos jurídicos indeterminados, traz para o campo da aplicação do Direito uma forte dose de indeterminação (MADUREIRA, Claudio Penedo. Direito, processo e justiça: o processo como mediador adequado entre o direito e a justiça, cit., p. 173)

constitucional443, que têm incidência substancialmente distinta da forma de aplicação característica das regras jurídicas.

Sobre a distinção entre regras e princípios, Humberto Ávila leciona que, conforme Dworkin, “as regras são aplicadas ao modo tudo ou nada (all-or-nothing)”, de maneira que havendo colisão entre elas, uma delas deve ser considerada inválida, ao passo que os princípios “não determinam absolutamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios”444. Também merece destaque, nesse contexto, o magistério de Robert Alexy, citado pela “doutrina crítica”, que qualifica os princípios como “mandamentos de otimização (Optimierungsgebote)”445, o que lhes confere, na lição de José Joaquim Gomes Canotilho, a capacidade de “cimentar” o ordenamento jurídico-positivo446. E tal se dá porque, conforme Alexy, os princípios, diversamente das regras (que são normas que ordenam, proíbem, permitem ou autorizam algo definitivamente), não contêm um “dever definitivo”, mas um “dever-prima-facie”, de modo que a eventual colisão entre eles é resolvida mediante o emprego da ponderação447-448.

Mas a circunstância de a ponderação ser elemento indispensável à aplicação do Direito de nosso tempo não refuta, ou supera, a proposição do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello quanto a caracterizar-se o interesse público como interesse do Estado e da

443 Tal não bastasse, o direito se constitucionalizou, contexto em que, em vista da positivação nos textos

constitucionais de princípios de direito natural (v.g. dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, etc.), ganha corpo a idéia de principialização da Constituição, que passou, então, a assumir o status de elemento unificador da ordem normativa, como expressa Hermes Zaneti Júnior (ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: O modelo Constitucional do Processo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 54).

444 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, cit., p. 28. 445 Cfr.: ALEXY, Robert. A institucionalização da razão. In: ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo.

Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 37.

446 Cfr.: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 1.163. 447 ALEXY, Robert. A institucionalização da razão, cit., p. 37.

448 Nesse mesmo sentido manifestou-se o professor Samuel Meira Brasil Júnior neste trecho de sua obra: “[...] o

núcleo da diferença entre regras e princípios encontra-se em outra característica. Segundo Alexy, esta característica decorre do modo com que cada espécie normativa estabelece a “medida possível de cumprimento”. Os princípios podem ser cumpridos em diversos graus e o meio ordenado para seu cumprimento depende das possibilidades fáticas e das jurídicas (ponderação com as regras e com os princípios que orientam em sentido contrário). As regras somente possuem uma medida possível de cumprimento, com a determinação no campo do fático ou juridicamente possível. Assim, os princípios são mandamentos de otimização (“Optimierungsgebote”) enquanto as regras podem ser cumpridas ou descumpridas” (BRASIL JÚNIOR, Samuel Meira. Justiça, Direito e Processo: a argumentação e o direito processual de resultados justos. São Paulo: Atlas, 2007. p. 89).

sociedade na observância da ordem jurídica estabelecida449, isto é, como correta aplicação do Direito. Com efeito, a admissão de que o interesse público assenta-se no cumprimento do Direito (ou da ordem jurídica estabelecida), conjugada à constatação de que a aplicação do Direito contemporâneo exige ponderação, apenas permite afirmar, por imperativo lógico, que a definição sobre qual dos interesses em tese conflitantes deverá prevalecer no caso concreto (porque detém a qualificação de interesse público) pressupõe o manejo pelos intérpretes, quando tal se fizer necessário (isto é, quando não se tratar de conflito entre regras jurídicas ou quando inexistir “pré-ponderações” normativas assimiladas pelo ordenamento), da “técnica de ponderação”.

Persiste hígida, pois, mesmo com a introdução desse novo elemento valorativo, a definição de conceito formulada por Bandeira de Mello. Sobre ser possível atualizá-la, pelo emprego da “técnica da ponderação”, citada pela “doutrina crítica”, reporto-me ao magistério do Professor Ricardo Marcondes Martins, discípulo de Bandeira de Mello, que leciona, em consonância com o que expus anteriormente, que “somente a ponderação pode indicar qual é o interesse público”, dispondo, a propósito, que “o resultado da ponderação corresponde ao interesse público a ser perseguido pelo Estado”450. Martins detalha esse processo na seguinte passagem doutrinária:

“Diante de determinadas circunstâncias fáticas incidem vários princípios jurídicos. A ponderação indica o peso de cada princípio incidente e, assim, a medida de concretização exigida pela ordem jurídica. Interesse público consiste exatamente nessa medida, ou seja, na exigência pela ordem jurídica de concretização dos princípios incidentes no caso concreto. Suponha-se o seguinte exemplo: incidem, no caso, dois princípios, P1 e P2: P1 concretizável pelas medidas M1 e M1’ e P2 concretizável pelas medidas M2 e M2’. A realização de M1 afasta totalmente P2, a realização de M2 afasta totalmente P1 e a realização de M1’ possibilita o cumprimento de P2 por M2’. Efetuada a ponderação entre os princípios, conclui-se que, no caso, o peso de P1 exige sua concretização pela M1, ainda que esta afaste totalmente P2. O interesse público consistirá na realização de M1. Em outras circunstâncias, porém, efetuada a ponderação, conclui-se que o peso de P2 exige sua concretização por M2, ainda que esta afaste totalmente P1. O interesse público consistirá na realização de M2. Por fim, em outras circunstâncias fáticas, a ponderação demonstra que nem o peso de P1 justifica o afastamento total de P2, nem o peso de P2 justifica o afastamento total de P1. O interesse público consistirá na realização de M1’ e M2’. Interesse público, nesta exposição - insiste-se -, é a medida da exigência pelo sistema jurídico da concretização dos princípios incidentes no caso concreto”451.

449 Cfr.: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 72.

450 MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado, cit., p. 58. 451 Ibidem, p. 58-59.

Nessa perspectiva, adverte Martins, “a Administração Pública tem por dever apurar todos os princípios incidentes no caso concreto e concretizá-los na medida exigida pelo sistema normativo, globalmente considerado”452. Devem ser considerados, então, “todos os princípios relativos a direitos subjetivos, todos os princípios relativos a bens coletivos e todos os princípios formais”, com vistas à concretização do Direito, no sentido da perfeita realização dos direitos subjetivos depreendidos nos casos concretos453. Afinal, como assentei454, o interesse público reside precisamente na realização desses direitos subjetivos, que decorrem da aplicação das regras e princípios que compõem o ordenamento jurídico- positivo, portanto na concretude do interesse do Estado e da sociedade na observância da ordem jurídica estabelecida455. Por esse motivo, e porque a aplicação do Direito pressupõe, hodiernamente, dada a incidência de princípios jurídicos, o recurso do intérprete à “técnica de ponderação”, justifica-se a atualização da definição de conceito manifestada por Bandeira de Mello, embora apenas para destacar que a investigação sobre o efetivo conteúdo do interesse do Estado e da sociedade na observância da ordem jurídica estabelecida (portanto, do interesse público) frente a cada caso concreto deve ser feita, sempre, mediante a ponderação pelos intérpretes dos interesses em tese conflitantes, mas sem perder de vista as “pré- ponderações” realizadas pelo constituinte e pelo legislador.

452 MARTINS, Ricardo Marcondes. Abuso de direito e a constitucionalização do direito privado, cit., p. 59. 453 Ibidem, p. 59.

454 Vide Tópico 2.1.4 deste capítulo.

3. AS ATIVIDADES TÍPICAS DE ADVOCACIA PÚBLICA E O ÂMBITO DA SUA