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2. IMPORTÂNCIA TEÓRICA E PRÁTICA DA ADOÇÃO PELA

2.2. Contribuição da “doutrina crítica” ao princípio da supremacia do interesse

2.2.3. Absoluta compatibilidade entre a definição de conceito formulada pelo

2.2.3.3. O direcionamento da crítica à operacionalização prática do

De todo modo, a constatação de que o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado não se apresenta, em teoria, como uma “regra de preferência” não impede a sua utilização prática pelos intérpretes (aplicadores) como forma de fazer prevalecer sobre direitos subjetivos individuais assegurados pelo ordenamento determinados interesses circunstanciais manifestados do poder público (interesses secundários). O próprio Professor Celso Antônio Bandeira de Mello admite essa possibilidade quando observa, em seus escritos, que “o Estado poderia ter interesse em tributar desmesuradamente os administrados”, ou “em pagar valores ínfimos aos seus servidores, reduzindo-os ao nível de mera subsistência”404-405; e que poderia, ainda, “recusar administrativamente - e até a questionar em juízo, se convocado aos pretórios - responsabilidade patrimonial por atos lesivos a terceiros, mesmo que os houvesse causado”, ou “pagar valor ínfimo nas desapropriações, isto é, abaixo do justo, inobstante o preceito constitucional”406-407. Bandeira de Mello reconhece que, com tais expedientes, “muitos dos quais infelizmente (e injustamente) adota”, o poder público “resguardaria ao máximo seu patrimônio, defendendo interesses à moda de qualquer outro

401 Cfr.: ALESSI, Renato. Sistema instituzionale Del Diritto Amministrativo Italiano, cit., p. 197. 402 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 188.

403 Afinal, como expus, o interesse público, nessa ótica professada pelo professor paulista, identifica-se com a

juridicidade, com o cumprimento dos enunciados prescritivos que compõem o ordenamento jurídico-positivo, pelo que a sua realização pressupõe, sempre, a fruição dos direitos subjetivos conferidos aos indivíduos pelas leis e pela Constituição.

404 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 67.

405 Sobre o assunto, ler também: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”,

cit., p. 188-189.

406 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 66-67.

407 Quanto ao particular, cfr., ainda: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse

sujeito”408, mas adverte que “em todas estas hipóteses estará agindo contra o Direito, divorciado do interesse público, do interesse primário que lhe assiste cumprir”409. Para o publicista, essa prática “nada obstante seja comum, é fruto de uma falsa compreensão do dever administrativo ou resultado de ignorância jurídica”410.

Esse aspecto foi oportunamente ressaltado por Alice Gonzalez Borges na sua crítica à proposição reformadora de Humberto Ávila, Alexandre Santos de Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm e Paulo Ricardo Schier. Em suas próprias palavras, “é preciso não confundir a supremacia do interesse público - alicerce das estruturas democráticas, pilar do regime jurídico-administrativo - com as suas manipulações e desvirtuamentos em prol do autoritarismo retrógrado e reacionário de certas autoridades administrativas”411. Disso decorre a sua conclusão no sentido de que o problema não está no princípio, mas em sua aplicação prática412. Em idêntica direção se posicionou Adriana da Costa Ricardo Schier quando destacou, em doutrina, que “intérpretes mais incautos com a proteção dos valores democráticos utilizam o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado para legitimar decisões que, em essência, afastam-se dos cânones do Direito Administrativo”, em hipóteses em que “o princípio em questão acaba utilizado para justificar interpretações equivocadas que muitas vezes colocam em posição de privilégio as autoridades administrativas, implicando restrições indevidas aos direitos fundamentais”413.

Para essa professora paranaense, esse foi o contexto que inspirou “aqueles autores constitucionalistas a afirmar que o princípio da supremacia permite manipulações interpretativas que favorecem o autoritarismo e o abuso de poder na seara do Direito Administrativo”414. Todavia, como adverte, na seqüência, a publicista, “tal apropriação indevida do princípio não poderá ser utilizada como fundamento para a sua negação”415. E isso precisamente porque, como destacou, em outro trabalho, Emerson Gabardo, “o simples fato de o princípio da supremacia ser usado como argumento (ou álibi) de certos atos

408 Ibidem, p. 189.

409 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 189. 410 Ibidem, p. 189.

411 BORGES, Alice Gonzalez. Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução?, cit., p. 780. 412 Ibidem, p. 780.

413 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e o

direito de greve de servidores públicos, cit., p. 390.

414 Ibidem, p. 390. 415 Ibidem, p. 391.

arbitrários não significa de modo algum a deturpação de sua essência ou sua força ética e normativa”416.

Portanto, deve estar claro que a circunstância de o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado poder vir a ser empregado, na prática, para fazer com que interesses circunstanciais do poder público (interesses secundários) prevaleçam sobre direitos subjetivos individuais, não conduz, como imperativo lógico, ao seu abandono, ou à sua desconstrução, como recomenda a “doutrina crítica”. É que, no particular, a censura assenta- se sobre pretensa e hipotética má utilização do princípio pelos intérpretes (aplicadores)417, que decorre, muito provavelmente, da equivocada compreensão, por esses intérpretes/aplicadores, do significado da expressão “interesse público”.

Destarte, não há correlação lógica entre o problema detectado (a aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado como forma de fazer prevalecer sempre o interesse público sobre direitos subjetivos individuais) e o prognóstico da “doutrina crítica” para a sua solução (o abandono, ou desconstrução, do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado). Afinal, se problema reside na práxis, na operacionalização prática do princípio, a sua resolução passa, não pelo abandono da teoria, que se mantém absolutamente coerente com as suas premissas418, mas pelo oportuno esclarecimento dos intérpretes (com destaque para a atuação dos agentes públicos e do Poder Judiciário) sobre como deve se dar a aplicação do Direito, de modo a atingir-se, em concreto, a plena realização do interesse público.

Essa sutileza da crítica formulada foi detectada, em primeira mão, por Alice Borges, quando observou que “não se trata de desconstruir a supremacia do interesse público”, dispondo, a propósito, que “na atual conjuntura nacional, o que é preciso, mais do que nunca, é fazer respeitá-la, é integrá-la na defesa dos luminosos objetivos fundamentais de

416 GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade: o Estado e a sociedade civil para além do bem e

do mal. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 303.

417 A propósito, cfr.: (ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o

Particular, cit., p. 215); (ARAGÃO, Alexandre Santos de. A “Supremacia do Interesse Público” no Advento do Estado de Direito e na Hermenêutica do Direito Público Contemporâneo, cit., p. 04); (SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional, cit., p. 24); (BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito Administrativo, cit., p. 140 e 149); e (SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais, cit., p. 218).

nossa Constituição”419. Com essas considerações, essa professora baiana rejeita a desconstrução da supremacia do interesse público sobre o privado, destacando, no entanto, a “necessidade de sua reconstrução, com a paralela desconstrução dos equívocos e desvirtuamentos, bem ou mal intencionados, a que vem sendo submetida”420.