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2. IMPORTÂNCIA TEÓRICA E PRÁTICA DA ADOÇÃO PELA

2.2. Contribuição da “doutrina crítica” ao princípio da supremacia do interesse

2.2.1.1. Posicionamento de Humberto Ávila

Humberto Ávila admite que “a adequação do interesse público [...] para a teoria do Direito Administrativo foi devidamente esclarecida”247, mas adverte que “a administração não possui autonomia da vontade”, devendo, portanto, “executar a finalidade instituída pelas normas jurídicas constantes na lei dando-lhes ótima aplicação concreta”248. Em suas palavras,

princípio da supremacia do interesse público sobre o particular não constitui critério adequado para resolução” de colisões entre interesses públicos e privados (SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional, cit., p. 23). Binenbojm, por sua vez, destaca como propósito do seu ensaio a demonstração da “inconsistência teórica do dito princípio da supremacia do interesse público sobre o particular com a sistemática constitucional cidadã, comprometida com a proteção e promoção dos direitos individuais de maneira ponderada e compatível com a realização das necessidades e aspirações da coletividade como um todo” (BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito Administrativo, cit., p. 129). Aragão não vocaliza em seu texto o objeto da sua crítica, mas parece aderir integralmente às considerações de Ávila, Sarmento e Binenbojm (ARAGÃO, Alexandre Santos de. A “Supremacia do Interesse Público” no Advento do Estado de Direito e na Hermenêutica do Direito Público Contemporâneo, cit., p. 01-22). Esses autores, embora também censurem a sua utilização prática pelos intérpretes (aplicadores), também criticam o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado mesmo em sua dimensão teórica. Entre eles, apenas Schier informa que parte “da existência de referido princípio”, embora para “demonstrar que a práxis administrativo- constitucional o tem erigido a uma espécie de cláusula geral de restrição de direitos fundamentais” (SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais, cit., p. 218). Sua crítica incide, então, preponderantemente sobre o emprego desse princípio pelos intérpretes (aplicadores), transportando-se, assim, ao campo da aplicação do Direito.

246 Como expõe o Professor Luís Roberto Barroso no seu Prefácio à coletânea, num esforço de síntese do

pensamento jurídico nela expressado (BARROSO, Luís Roberto. Prefácio, cit.).

247 Tal se infere dessa outra passagem doutrinária: “O problema [...] não é propriamente a descrição e a

explicação da importância do interesse público no ordenamento jurídico brasileiro, mas o modo mesmo como isso é feito. A importância do interesse público (que determina os fins e fundamentos legítimos da ação estatal), do bem comum (como o mais compreensivo e abstrato fim, verdadeiro fundamento da permanência da vida social, a ser entendido como medida ou proporção estabelecida entre bens jurídicos exteriores conflitantes e distribuíveis) ou mesmo dos fins estatais (qualquer interesse público tornado próprio do Estado) [...] não são objeto primordial de nossa análise [...]” (ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, cit., p. 174).

“a administração não exerce atividade desvinculada, mas apenas exerce, nos fundamentos e limites instituídos pelo Direito, uma função”249.

Disso resulta, segundo Ávila, que “só a um primeiro olhar [...] é adequada a descrição desse ‘princípio da supremacia’”250. Nessa descrição, a supremacia do interesse público sobre o privado apresenta duas características específicas: em primeiro lugar, tratar- se-ia de “um ‘princípio jurídico’ (ou norma-princípio), cuja função primordial seria regular as relações entre o Estado e o particular”, mas num contexto em que a “sua pressuposta validade e posição hierárquica no ordenamento jurídico brasileiro permitiriam que ele fosse descoberto a priori, sem o prévio exame da sua referência ao ordenamento jurídico (‘axioma’)”251; em segundo lugar não se cuidaria apenas um princípio, mas um “princípio relacional”, que “regularia a ‘supremacia’ do interesse público, mas com referência à ‘relação entre o Estado e o particular’”252. Daí que, para Ávila, o conteúdo normativo da supremacia do interesse público sobre o privado pressupõe “a possibilidade de conflito entre o interesse público e o interesse particular no exercício da função administrativa, cuja solução deveria ser (em abstrato em princípio) em favor do interesse público”253. Nessa perspectiva, Ávila qualifica a supremacia do interesse público sobre o privado, não como princípio, ou postulado254, mas como uma “regra de preferência”255.

A propósito, Ávila expressa “que o ‘princípio da supremacia do interesse público sobre o privado’ não é, rigorosamente, um princípio jurídico ou norma-princípio”256. A uma porque “conceitualmente ele não é norma-princípio”, pois “possui apenas um grau normal de

249 ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, cit., p.

173.

250 Ibidem, p. 173. 251 Ibidem, p. 173. 252 Ibidem, p. 173. 253 Ibidem, p. 173-174.

254 Não é demais lembrar que Ávila distingue princípios e postulados. Para esse professor gaúcho, a distinção se

justifica na medida em que os postulados normativos situam-se num plano distinto daquele em que se encontram as normas cuja aplicação estruturam, sejam elas regras ou princípios. Sua função seria, então, a de estruturar (ou conformar) a aplicação das normas jurídicas, de modo que só elipticamente os postulados normativos poderiam ser desatendidos, pois, em rigor, devem ser consideradas violadas, não esses postulados, mas as normas (regras ou princípios) que não forem escorreitamente aplicadas no contexto dessa estruturação. Daí a sua designação, por Ávila, como “metanormas, ou normas de segundo grau” (Cfr.: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 87-88).

255 ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, cit., p.

174.

aplicação, sem qualquer referência às possibilidades normativas e concretas”257. A duas porque “normativamente ele não é norma-princípio”, já que “não pode ser descrito como um princípio jurídico-constitucional imanente”258. A três porque “não pode conceitualmente e normativamente descrever uma relação de supremacia”, vez que “se a discussão é sobre a função administrativa, não pode ‘o’ interesse público (ou os interesses públicos), sob o ângulo da atividade administrativa, ser descrito separadamente dos interesses privados”259. Para Ávila, esse “princípio” também “não pode ser havido como postulado explicativo do Direito Administrativo”, porque “não pode ser descrito separada ou contrapostamente aos interesses privados”, que “consistem em uma parte do interesse público”, e tampouco pode ser delineado “sem referência a uma situação concreta”, pelo que “em vez de um ‘princípio abstrato de supremacia’ teríamos ‘regras condicionais concretas de prevalência’ (variáveis segundo o contexto)”260.

Em vista disso, Ávila expressa que determinadas atividades administrativas não podem ser ponderadas sempre em favor do interesse público e em detrimento dos interesses privados envolvidos, como expressa essa “regra de preferência”261. Tal se verifica, por exemplo, no esclarecimento dos fatos na fiscalização de tributos, na determinação dos meios empregados pela Administração, na ponderação (pela Administração ou pelo Poder Judiciário) dos interesses envolvidos na limitação da esfera privada dos cidadãos e na preservação do sigilo262, identificados por Ávila como hipóteses em que o interesse público abstratamente não poderia ter preferência (ou prevalência) sobre direitos subjetivos individuais263.

257 ÁVILA, Humberto. Repensando o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular, cit., p.

213. 258 Ibidem, p. 213. 259 Ibidem, p. 213-214. 260 Ibidem, p. 214. 261 Ibidem, p. 215. 262 Ibidem, p. 215.

263 Em contraposição a essa afirmação de Ávila, que adiante demonstrarei assimilada pelos demais autores que

compõem a “doutrina crítica”, destaco a seguinte passagem da obra do Professor Ricardo Marcondes Martins: “O ordenamento jurídico estabelece uma razão prima facie em favor do interesse da coletividade. Assim, na ponderação entre o interesse de um particular e o interesse da coletividade há, em abstrato, um peso maior dado ao interesse da coletividade. Disso não decorre que sempre o interesse da coletividade irá prevalecer. Nenhum princípio tem caráter absoluto, mas isso não quer dizer que todos os princípios tenham, num plano abstrato, a mesma importância, o mesmo peso: abstratamente considerados, os princípios apresentam pesos diferentes. Eis a função do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado: ele introduz uma carga de argumentação em favor dos princípios relativos a bens coletivos. Ainda que, em teoria, haja alguém que

Para Ávila, a ponderação passa, necessariamente, pela determinação dos bens jurídicos envolvidos e das normas que lhe são aplicáveis, pelo que cumpre ao intérprete (ou aplicador do Direito), nesse contexto, “procurar preservar e proteger, ao máximo, esses mesmos bens” e não “direcionar, de antemão, a interpretação das regras administrativas em favor do interesse público, o que quer que isso possa vir a significar”264. Dessas últimas observações sobressai que a crítica do professor gaúcho também se circunscreve ao modo como o direito é aplicado pelos intérpretes, sob a invocação da supremacia do interesse público sobre o privado, estendendo-se, assim, ao campo da práxis jurídica.