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2. IMPORTÂNCIA TEÓRICA E PRÁTICA DA ADOÇÃO PELA

2.1. O que é interesse público?

2.1.3. Interesse público como realização da dignidade da pessoa humana

Uma terceira posição que se apresenta, neste contexto, é vocalizada por Marçal Justen Filho131, que procurou fundar a definição do conceito de interesse público no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III132). Também relaciona o interesse público à dignidade da pessoa humana o professor uruguaio Augusto Durán Martínez133-134.

Em referência às acepções de interesse público expostas nos tópicos anteriores, Justen Filho denuncia “o equívoco da concepção aritmética de interesse público”, à consideração de que a adoção de “um critério quantitativo se revela insuficiente e inadequado, eis que interesse público não é sinônimo de interesse da maioria”135. O que ocorre é que, se “muitas vezes, as maiorias são titulares do interesse público”, noutras “vezes, porém, o interesse público coincide com o da minoria”136. Nesses casos, “o interesse é qualificado

129 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo, cit.,

p. 120.

130 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, cit., p. 77.

131 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo, cit.,

p. 125/136, passim.

132 CRFB. “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios

e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana”.

133 MARTÍNEZ, Augusto Durán. Derechos prestacionales e interés público. In: BACELLAR FILHO, Romeu

Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Coord.). Direito administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 147.

134 Em suas próprias palavras: “El interés público se relaciona con nuestra dimensión social en el aspecto que

conlleva lo político pero también, aun sin conllevar lo político, trasciende de lo meramente privado al ocupar un espacio que necesariamente es genéricamente compartido por requerirlo el adecuado desarrollo de la personalidad” (Ibidem, p. 147).

135 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo, cit.,

p. 122.

como público não por razões meramente quantitativas”, mas porque “existem interesses que não são gerais e continuam a ser públicos”137.

Porém, adverte Justen Filho, isso não significa aceitar, sem maiores objeções, a qualificação do interesse público como interesse da sociedade138. É que, para esse professor paranaense, essa acepção de interesse público, por ele qualificada como “solução técnica” para a compatibilização dos interesses privados139, ostenta duas dificuldades fundamentais: a primeira delas “reside no risco de surgir um interesse social desvinculado de qualquer interesse individual concreto”, numa “espécie de cristalização social, em que a tradição superaria a dimensão da realidade concreta”140; a outra “refere-se à identificação do conteúdo do interesse”, pois se “não há compromisso com os interesses individuais concretos, surge o problema de determinar o interesse social”, pelo que “seria necessário atribuir a algum sujeito o poder de diagnosticar a existência e determinar o conteúdo do interesse público”141.

Justen Filho considera, ainda, que essa última concepção de interesse público (interesse público como interesse da sociedade) “propicia construções políticas não democráticas, com elevado potencial de nocividade”142, porque parte “do pressuposto de que alguns interesses privados não podem ser satisfeitos através da atuação isolada dos próprios particulares”, o que conduz a uma intervenção do Estado143. O interesse público resultaria, então, da conjugação da existência de interesses gerais e comuns com a insuficiência dos esforços individuais para sua satisfação144. Sob essa ótica, o modo pelo qual se processa o “atendimento ao interesse privado é sua transformação em público, o que permite que a sociedade, como organização de pessoas e recursos, enfrente e supere dificuldades supra- individuais”145. Justen Filho discorda da afirmação de que de que a intervenção estatal se

137 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo, cit.,

p. 122. 138 Ibidem, p. 122. 139 Ibidem, p. 122. 140 Ibidem, p. 122. 141 Ibidem, p. 122. 142 Ibidem, p. 122. 143 Ibidem, p. 122. 144 Ibidem, p. 123. 145 Ibidem, p. 123.

apresente como único caminho válido para a satisfação dos interesses individuais146; reportando-se, quanto ao particular, ao aparecimento de “novas técnicas de satisfação de interesses gerais, mais eficientes do que aquelas tradicionalmente conhecidas”147. E por isso considera “possível manter os interesses como privados e, não obstante isso, produzir sua satisfação”148.

Esse professor paranaense também rejeita a suposição de que o conceito de interesse público comporta enfoque meramente técnico, propondo, assim, “uma radical modificação no panorama jurídico”, que também agregue imperativo ético149. O que se dá é que, conquanto existam “necessidades privadas que não podem ser satisfeitas pelo esforço individual e isolado de cada qual”, muitas vezes essas “demandas são diretamente relacionadas à realização de princípios e valores fundamentais, especialmente a dignidade da pessoa humana”150. Nessas hipóteses, “o interesse deixa de ser privado porque sua satisfação não pode ser objeto de alguma transigência”151. Para o caso, não se admite “que se apliquem à satisfação dessas necessidades as regras jurídicas que disciplinam o atendimento aos demais interesses individuais”, precisamente porque a sua não-satisfação corresponderia a “infringir os valores fundamentais consagrados pelo ordenamento jurídico”152. Assim, “modernamente, o conceito de interesse público não se constrói a partir da impossibilidade técnica de os particulares satisfazerem determinados interesses individuais, mas pela afirmação da impossibilidade ética de deixar de atendê-los”153. Conforme Justen Filho, essa impossibilidade ética deve ser aferida a partir da investigação, em concreto, sobre a compatibilidade da realização dos interesses privados com a dignidade da pessoa humana, por ele considerada como “princípio fundamental, de que todos os demais princípios derivam e

146 Em suas próprias palavras: “apesar de o ser humano isolado continuar incapacitado de enfrentar todas as

necessidades privadas, isso não significa que a única via de satisfação dessas necessidades seja a estatal” (JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo, cit., p. 123). 147 Ibidem, p. 123. 148 Ibidem, p. 123. 149 Ibidem, p. 123-124. 150 Ibidem, p. 124. 151 Ibidem, p. 124. 152 Ibidem, p. 124. 153 Ibidem, p. 124.

que norteia todas as regras jurídicas”154; inclusive dos princípios que enunciam a supremacia do interesse público sobre o privado e a sua indisponibilidade pela Administração155.

Todavia, ciente de que “a dignidade da pessoa humana não poderia realizar-se plenamente se as relações intersubjetivas fossem deixadas ao sabor dos esforços individuais, desorganizados”, Justen Filho admite a intervenção de organizações intersubjetivas, compostas pelo Estado e pelas instituições jurídicas, que atuam no sentido de “conjugar os esforços individuais e disciplinar o exercício da força”156. Mas expressa que também a “sua estruturação e funcionamento tem de ser disciplinada pelo princípio da dignidade da pessoa humana”157. Nessa perspectiva, não se concebe, ainda que a pretexto de realizar o interesse público, sacrifício à dignidade de um único particular, “pois não há interesse público que autorize o desmerecimento da dignidade de um sujeito privado”158-159. Disso resulta que o que é (ou não é) interesse público deverá ser afirmado, em concreto, por essas organizações intersubjetivas (Estado e instituições jurídicas); que devem sempre ter em consideração a dignidade da pessoa humana, pois sua satisfação não pode ser objeto de transigência; o que pressupõe, igualmente, a impossibilidade de se impor ao indivíduo, ainda que com o propósito de realizarem-se interesses da coletividade, prejuízo à sua dignidade humana.

Esse posicionamento de Justen Filho não é imune a críticas. A propósito, reporto- me ao magistério de Raquel Dias Silveira, que censura a redução do conceito de interesse público à dignidade da pessoa humana160. Em suas próprias palavras:

“Quanto se diz que o Direito Administrativo é o ramo do direito que tem por escopo a realização dignidade da pessoa humana, está-se, consciente ou inconscientemente, retirando da órbita de relevância e de disciplina do Direito Administrativos outros interesses públicos primários e bens comuns políticos da mesma força e importância para os cidadãos brasileiros, notadamente, a cidadania; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; a liberdade, a justiça e a solidariedade social; o

154 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo, cit.,

p. 125.

155 Ibidem, p. 125. 156 Ibidem, p. 125. 157 Ibidem, p. 125-126. 158 Ibidem, p. 128.

159 É que, para Justen Filho, o “interesse público não é um valor compreensível ou bastante em si mesmo, [...] eis

que o único fim em si mesmo é a pessoa humana” (Ibidem, p. 128).

160 SILVEIRA, Raquel Dias. Princípio da supremacia do interesse público como fundamento das relações de

trabalho entre servidores públicos e o Estado. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Coord.). Direito administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 364.

desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização, com a diminuição das desigualdades sociais e regionais; a igualdade entre os cidadãos; e a prevalência dos direitos humanos, entre outros já citados”161.

Silveira contesta, ainda, a operatividade de semelhante construção teórica, à consideração de que “a dignidade da pessoa humana é conceito tão ou mais indeterminado que o conceito de interesse público, pois certamente o que é dignidade para uns pode não ser dignidade para outros”162. E aduz, a propósito, que se pode conjecturar, a título que exemplo, “que determinados cidadãos ‘catadores de lixo’ alcançarão a sua dignidade quando deixarem de exercer essa função”, enquanto, por outro lado, “muitos desses cidadãos podem perfeitamente almejar, como realização plena, o reconhecimento da atividade pelo Estado, valorizando-os como profissionais, com vínculo de trabalho confessado pelo poder público”163.

Para além desses elementos de crítica apresentados por Silveira, quer me parecer, ainda, que o que Justen Filho procura induzir a partir da aplicação da dignidade da pessoa humana como imperativo lógico para a depreensão do conteúdo do interesse público pode ser extraído apenas e tão-somente de uma aplicação integral do Direito às hipóteses concretas. Afinal, como esse princípio jurídico resta contemplado pelo direito positivo, a sua incidência se impõe independentemente da confirmação dessa proposta teórica pela vinculação do interesse público à sua concretização. Posto isso, considero suficiente à realização da dignidade da pessoa humana a vinculação do interesse público à juridicidade, tal como sustentado, em doutrina, pelo Professor Celso Antônio Bandeira de Mello.