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2. IMPORTÂNCIA TEÓRICA E PRÁTICA DA ADOÇÃO PELA

2.1. O que é interesse público?

2.1.4. Interesse público como síntese dos interesses assimilados pelo

positivo: posicionamento do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello.

Diversamente do que já se afirmou164, a noção de interesse público concebida pelo Professor Celso Antônio Bandeira de Mello não traz em si qualquer traço de autoritarismo ou

161 SILVEIRA, Raquel Dias. Princípio da Supremacia do Interesse Público como Fundamento das Relações de

Trabalho entre Servidores Públicos e o Estado, cit., p. 364.

162 Ibidem, p. 364. 163 Ibidem, p. 364.

164 A propósito, cfr., por todos, as observações de Paulo Ricardo Schier quanto a poder o emprego do princípio

da supremacia do interesse público “justificar a emergência de manipulações discursivas negadoras dos direitos fundamentais”, fundadas na suposição de que “a práxis administrativo-constitucional o tem erigido a uma espécie de cláusula geral de restrição de direitos fundamentais” (SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 217-218).

arbitrariedade. Pelo contrário, esse professor paulista “sempre defendeu a propagação de um Direito Administrativo não autoritário e serviente ao administrado”, como expressou a Professora Weida Zacaner no seu Prefácio à obra “Direito administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello”165. Em idêntica direção posicionou-se Paulo Motta, para quem “Celso Antônio Bandeira de Mello é o responsável por duas das mais importantes rupturas operadas no Direito Administrativo brasileiro”, entre elas a “construção do Direito Administrativo da cidadania”166-167. O que se dá é que, como destaca o Professor Ricardo Marcondes Martins, Bandeira de Mello168 “chama a atenção para o equívoco de pensar o Direito Administrativo a partir da idéia de ‘poder’”, dispondo, a propósito, que, na doutrina desse professor paulista, “o poder no direito público é sempre instrumental, ancilar de um dever a ser cumprido pelo Estado”, o que significa dizer que “o direito público não deve ser visto como um ‘direito aglutinador de poderes desfrutáveis pelo Estado em sua feição administrativa’, mas sim como um ‘conjunto de limitações aos poderes do Estado”, ou, mais acertadamente, “como um conjunto de deveres da Administração em face dos administrados”169. Em Bandeira de Mello, ressalta Martins, o direito administrativo não se estrutura em torno da idéia autoridade pública, mas da idéia de função pública170, qualificada como “situação de dever de satisfazer o interesse público e o manejo dos poderes necessários (e apenas dos necessários) para se desincumbir desse dever”171. Portanto, a idéia de poder, na obra de Bandeira de Mello, “é sempre subordinada a

165 ZACANER, Weida. Prefácio: homenagem ao pensamento jurídico de Celso Antônio. In: BACELLAR

FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Coord.). Direito administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 11.

166 MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Direito administrativo: direito da supremacia do interesse público. In:

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Coord.). Direito administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 222. Motta considera que “as críticas lançadas contra Celso Antônio Bandeira de Mello, como cultor de um Direito Administrativo distante da cidadania (para dizer o menos) revestem-se de duas falsidades: uma pândega, porque demonstra ignorância para com sua obra; outra, trágica, porque se propagou por meia dúzia de autores” (Ibidem, p. 222).

167 Uma segunda contribuição, mas não menos importante, consiste em “acolher conceitualmente no Brasil um

sistema denominado regime jurídico-administrativo”, que permitiu a estruturação do Direito Administrativo brasileiro como Ciência Jurídica, “sem nada dever, em termos metodológicos, a outros ramos do Direito” (Ibidem, p. 222).

168 Cfr.: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 43-46.

169 MARTINS, Ricardo Marcondes. Princípio da liberdade das formas no direito administrativo. Interesse

Público, Belo Horizonte: Fórum, ano 15, n. 55, jul./ago. 2013. p. 94-95.

170 Sobre os conceitos de função e função pública, cfr., ainda: MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios

do ato administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 37-63.

idéia de dever: porque há o dever, há o poder e há este apenas e tão somente na medida exigida por aquele”172.

Bandeira de Mello leciona que, “ao se pensar em interesse público, pensa-se, habitualmente, em uma categoria contraposta à de interesse privado, individual, isto é, ao interesse pessoal de cada um”173. Mas destaca a necessidade de se prevenir “contra o erro de, consciente ou inconsciente, promover uma separação absoluta entre ambos, em vez de “acentuar, como se deveria, que o interesse público, ou seja, o interesse do todo, é ‘função’ qualificada dos interesses das partes, um aspecto, uma forma específica, de sua manifestação”174. É que, conquanto possa existir, em concreto, “interesse público contraposto a um dado interesse individual”175, não há interesse público que seja discordante do interesse de cada um dos membros da sociedade176. E isso, porque, conforme Bandeira de Mello, é “inconcebível um interesse do todo que fosse, ao mesmo tempo, contrário ao interesse de cada uma das partes que o compõem”, ou que “o bom para todos fosse o mal de cada um, isto é, que o interesse de todos fosse um anti-interesse de cada um”177.

Com essas considerações, Bandeira de Mello atesta “a existência de uma relação intima, indissolúvel, entre o chamado interesse público e os interesses ditos individuais”178. Para o publicista, “o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais”, que, em sua opinião, é composta pelos “interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da sociedade (entificada juridicamente no Estado)”179-180. Noutra passagem, o Bandeira de Mello assenta que essa dimensão pública dos interesses individuais “consiste no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da

172 MARTINS, Ricardo Marcondes. Princípio da liberdade das formas no direito administrativo, cit., p. 95. 173 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 59.

174 Ibidem, p. 59. 175 Ibidem, p. 60. 176 Ibidem, p. 59. 177 Ibidem, p. 59. 178 Ibidem, p. 60. 179 Ibidem, p. 60.

180 Quanto ao particular, cfr., ainda: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse

sociedade, ou seja, quando se qualifiquem como instrumentais ao interesse público, por concorrerem para a sua satisfação (do interesse público)181.

Exemplificando, Bandeira de Mello expressa que “um indivíduo pode ter, e provavelmente terá, pessoal - e máximo - interesse em não ser desapropriado”, mas que “não pode, individualmente, ter interesse em que não haja o instituto da desapropriação, conquanto este, eventualmente, venha a ser utilizado em seu desfavor”182. Com efeito, ele terá “pessoal interesse em que exista dito instituto”, pois é membro do corpo social, e por isso necessitará, por exemplo, “que sejam liberadas áreas para abertura de ruas, estradas ou espaços onde se instalarão aeródromos, escolas, hospitais, hidroelétricas, canalizações necessárias aos serviços públicos”, entre outras utilidades públicas, “cuja disponibilidade não poderia ficar à mercê da vontade dos proprietários em comercializá-los”183.

Bandeira de Mello destaca, então, a existência de dois tipos de interesses que podem ser assumidos pelos indivíduos: “o interesse individual, particular, atinente às conveniências de cada um no que concerne aos assuntos de sua vida particular” (interesse da pessoa ou grupo de pessoas singularmente consideradas) e “o interesse igualmente pessoal destas mesmas pessoas ou grupos, mas que comparecem enquanto partícipes de uma coletividade maior na qual estão inseridos”184.

Em vista desse exemplo proposto por Bandeira de Mello, não há dúvidas de que os indivíduos podem ser convencidos, com relativa facilidade, da necessidade do instituto da desapropriação, pois muito embora possa lhes parecer atraente, numa perspectiva pragmática, não correrem o risco de serem expropriados, não lhes será possível sustentar, racionalmente, como membros de uma comunidade, a impertinência da desapropriação das áreas necessárias ao desenvolvimento e reprodução de um melhor ambiente social. Esse segundo grupo de interesses foi considerado relevante pelo legislador, sendo, destarte, assimilado pelo ordenamento jurídico-positivo, que contempla o instituto da desapropriação185. Com isso, o

181 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 188. 182 Ibidem, p. 182.

183 Ibidem, p. 182.

184 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 60.

185 A começar pela Carta da República, que refere ao instituto no inciso XXVI do seu artigo 5º (que trata da

desapropriação por utilidade pública), no parágrafo 4º do seu artigo 182 (que trata da desapropriação pelo não aproveitamento adequado do solo urbano), no caput de seu artigo 184 (que trata da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária) e no parágrafo 1º de seu artigo 216 (que trata da desapropriação para proteção do patrimônio cultural brasileiro).

interesse pessoal de um indivíduo, ou de um grupo isolado deles, de que não exista o instituto da desapropriação não está apto as gerar direitos subjetivos, precisamente porque não foi acatado pelo Poder Legislativo, qualificando-se, assim, como simples interesse individual de cunho pragmático.

Destarte, essa pretensão pragmática manifestada no exemplo relativo ao instituto da desapropriação, conquanto encerre, sob certa ótica, interesse privado, não caracteriza, no confronto com o ordenamento jurídico-positivo, interesse do todo, ou interesse público, e por isso não está apta a induzir direitos subjetivos individuais. Por sua vez, o interesse pessoal de cada um dos membros da comunidade (portanto, um interesse individual, ou particular) de que exista o instituto da desapropriação, concebido em função das suas necessidades enquanto integrantes do corpo social, porque foi integrado ao direito positivo, qualifica-se como interesse do todo, ou interesse público, e por isso está apto a induzir direitos subjetivos de cunho individual. Com essa ressalva, mesmo interesses individuais (ou particulares) podem ser qualificados, conforme Bandeira de Mello, como interesse do todo, ou interesse público186- 187.

Há, pois, em concreto, interesses privados que podem conflitar com o interesse público (não contemplados pelo ordenamento) e interesses privados coincidentes com o ao interesse público (contemplados pelo ordenamento). Porém, não se observará, sob tais premissas, conflito entre o interesse público e os direitos subjetivos individuais. É que os interesses individuais contemplados pelo ordenamento jurídico-positivo (que são os que induzem direitos subjetivos) integram o conceito de interesse público, porque a ele são instrumentais, constituindo, assim, o que Bandeira de Mello convencionou chamar dimensão pública dos interesses individuais188-189.

186 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 61.

187 Sobre o assunto, ler também: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”,

cit., p. 183.

188 Cfr.: (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 60 e 182) e (MELLO,

Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 182).

189 Assim, no limite, apenas poderia constituir algum desafio à coerência dessa construção teórica proposta por

Bandeira de Mello a depreensão prática de direitos subjetivos individuais que se acredita existir, quando considerada a lei em abstrato, mas que, em concreto, diante das circunstâncias da hipótese fática analisada, não se revelam presentes. Muito embora essa discussão, dada a sua relevância, constitua material suficiente para a construção de um novo estudo, que investigaria, entre outros assuntos, o modus operandi da aplicação do Direito sob o regime jurídico brasileiro, em rigor, essa crise se resolve pela tão-só compreensão da distinção entre os planos da construção do direito pelo Parlamento e da sua aplicação pelos intérpretes.

Assim, para Bandeira de Mello, o interesse público somente se justifica, como categoria jurídica, “na medida em que se constitui em veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das que o integrarão no futuro”190. Disso decorre a sua conceituação como “interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato de o serem”191-192. Por isso, o publicista procura identificar o interesse público com a realização dos interesses individuais, quando o apresenta (o interesse público) com faceta deles (dos interesses individuais)193. A importância dessa compreensão reside, conforme Bandeira de Mello, em um “duplo aspecto”194.

Em primeiro lugar “enseja mais facilmente desmascarar o mito de que interesses qualificados como públicos são insuscetíveis de serem defendidos por particulares [...] mesmo quando seu desatendimento produz agravo pessoalmente sofrido pelo administrado”195, o que desmente a “indevida suposição de que os particulares são estranhos a tais interesses”196. Ao ensejo, Bandeira de Mello denuncia “o errôneo entendimento de que as normas que os contemplam foram editadas em atenção a interesses coletivos, que não lhes diriam respeito, por irrelatos a interesses individuais”197.

Em segundo lugar mitiga “a falsa desvinculação absoluta entre uns e outros”, refutando a ilação de que “sendo os interesses públicos interesses do Estado, todo e qualquer interesse do Estado (e demais pessoas de Direito Público) seria ipso facto um interesse público”198. A propósito, Bandeira de Mello expressa que “a noção de interesse público [...] impede que se incida no equívoco muito grave de supor que o interesse público é exclusivamente um interesse do Estado”, lapso de compreensão “que faz resvalar fácil e naturalmente para a concepção simplista e perigosa de identificá-lo com quaisquer interesses

190 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 61. 191 Ibidem, p. 61.

192 Ao ensejo, cfr., ainda: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p.

183.

193 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 61. 194 Ibidem, p. 61.

195 Ibidem, p. 61. 196 Ibidem, p. 61. 197 Ibidem, p. 61. 198 Ibidem, p. 61-62.

da entidade que representa o todo”199-200. Para esse professor paulista “o Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito”, e que, por isso, “independentemente do fato de ser, por definição, encarregado de interesses públicos”, pode ter, como qualquer outra pessoa, “interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa”201-202. Esses últimos interesses não são, conforme Bandeira de Mello, “interesses públicos”, mas se qualificam, na verdade, como “interesses individuais do Estado”, que só podem ser perseguidos pelos agentes estatais quando coincidem com a realização do interesse público203.

Essas considerações de Celso Antônio Bandeira de Mello vão ao encontro da classificação consagrada na doutrina italiana por Renato Alessi204, que tem ampla aplicação entre nós em sede doutrinária205 e pretoriana206. Como expus207, Alessi distingue os interesses do Estado em primários e secundários, e leciona que determinados interesses transitoriamente defendidos por órgãos estatais (interesses secundários) podem não corresponder ao interesse público (primário), sobretudo quando representarem pretensão circunstancial cuja realização se mostra incompatível com os limites impostos pelo legislador à intervenção do Estado na esfera de disponibilidades jurídicas dos indivíduos208. Assim, aqueles interesses designados por Bandeira de Mello como “interesses individuais do Estado” correspondem aos “interesses secundários” referidos por Alessi, ao passo que a “dimensão pública desses interesses

199 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 187.

200 A propósito, cfr., ainda: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 65. 201 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 188.

202 Sobre o assunto, ler também: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p.

65-66.

203 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 188. 204 Cfr.: ALESSI, Renato. Sistema instituzionale Del Diritto Amministrativo Italiano, cit., p. 197. 205 Cfr., por todos: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 33. 206 Vide STJ, RESP 787967-SE, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 23/08/2007.

207 Vide Tópico 1.3 do capítulo precedente.

208 Essas considerações têm por base a classificação consagrada em âmbito acadêmico pelo jurista italiano

Renato Alessi (Cfr.: ALESSI, Renato. Sistema instituzionale Del Diritto Amministrativo Italiano, cit., p. 197), que tem ampla aplicação entre nós em sede doutrinária (Cfr., por todos: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 188) e pretoriana (Vide STJ, RESP 787967-SE, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 23/08/2007).

individuais”, que o professor paulista qualifica como “interesse público”, corresponde ao que Alessi convencionou chamar “interesse primário”.

Recobro, ao ensejo, na esteira do que observei anteriormente, que é impróprio falar em interesse público secundário209, porque, como expressa, em doutrina, o Professor Ricardo Marcondes Martins, o “interesse público secundário só é reconhecido pelo Direito quando for coincidente com o interesse público primário”210. Assim, adverte Martins, o “interesse público secundário, enquanto interesse juridicamente reconhecido, não possui autonomia”, precisamente porque “só é juridicamente acatado pelo ordenamento se for coincidente com o primário”, pelo que, “noutros termos, o interesse secundário será um interesse juridicamente reconhecido somente quando for também um interesse primário”211- 212.

Nessa perspectiva, somente esses interesses ditos “primários” qualificam-se como interesse público. É que os interesses ditos “secundários” apresentam-se como “interesses individuais do Estado”, e por isso são correlatos aos “interesses particulares” (por exemplo, cobrar tributos). Esses interesses particulares do Estado só merecem proteção jurídica quando instrumentais ao interesse público213 (por exemplo, cobrar tributos dentro dos limites legais,

209 A propósito da distinção teórica entre interesses primários e secundários, o Professor Ricardo Marcondes

Martins observa, reportando-se diretamente à doutrina de Alessi (ALESSI, Renato. Principi di Diritto Amministrativo, v. 1, cit., p. 200-201), que o interesse primário corresponde ao “complexo de direitos individuais prevalentes em uma determinada organização jurídica da coletividade”, ao passo que o interesse secundário comporta “o interesse da administração enquanto aparato organizativo, unitariamente considerado” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Arbitragem e administração pública: contribuição para o sepultamento do tema, cit., p. 197-198). Entre nós, essa distinção foi propagada por Bandeira de Mello, para quem o interesse primário qualifica-se como dimensão pública dos interesses individuais, porque se refere ao plexo de interesses dos indivíduos enquanto partícipes da sociedade, ao passo que o interesse secundário é o interesse particular (ou individual) do Estado, enquanto pessoa jurídica autônoma (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, cit., p. 65-66). De todo modo, tanto Alessi, quanto Bandeira de Mello “insistiram numa observação importantíssima”, ao enunciarem que “o interesse secundário só pode ser perseguido pela Administração quando for coincidente com o primário” (MARTINS, Ricardo Marcondes. Arbitragem e administração pública: contribuição para o sepultamento do tema, cit., p. 198), como destaca Martins na seqüência.

210 Ibidem, p. 200. 211 Ibidem, p. 201.

212 Trata-se, conforme Martins, “de uma armadilha conceitual: a Administração só pode perseguir o interesse

primário e, por isso, só pode perseguir o chamado interesse secundário quando este for interesse primário” (Ibidem, p. 201).

213 A propósito, recobro que, para Bandeira de Mello, o interesse público consiste no plexo dos interesses dos

indivíduos enquanto partícipes da sociedade, ou seja, daqueles interesses individuais qualificados como instrumentais ao interesse público, e que constituem, assim, o que esse professor paulista convencionou chamar “dimensão pública dos interesses individuais” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de “interesse público”, cit., p. 188).

para tornar viável o fornecimento de serviços públicos). Por isso é que, para Bandeira de Mello, o interesse público consiste “no interesse do Estado e da sociedade na observância da ordem jurídica estabelecida”214, pressupondo, assim, uma correta aplicação do Direito; e funciona, destarte, como limitador da intervenção estatal na esfera das disponibilidades jurídicas do cidadão, de modo a que essa intervenção se opere apenas nas hipóteses taxativamente admitidas pelo ordenamento jurídico-positivo215.

Em novos exemplos, Bandeira de Mello refere à possibilidade de divergência de pensamento entre as múltiplas pessoas que “considerarão de interesse público que haja, em dado tempo e lugar, monopólio estatal do petróleo, que se outorgue tratamento privilegiado a empresas brasileiras de capital nacional ou que se reserve a exploração mineral exclusivamente a brasileiros” e aquelas outras que, por serem, talvez, “estrangeiras ou mais obsequiosas a interesses alienígenas que aos nacionais”, manifestar-se-ão em sentido diametralmente oposto216. Ao ensejo, o publicista leciona que “encarada a questão de um ângulo político, sociológico, social ou patriótico, poderá assistir razão aos primeiros e sem- razão completa aos segundos”, mas adverte que, do ponto de vista estritamente jurídico “será de interesse público a solução que haja sido adotada pela Constituição ou pelas leis quando editadas em consonância com as diretrizes da Lei Maior”217-218.

Com essas considerações, Bandeira de Mello procura por a claro que “uma coisa é a estrutura do interesse público” e outra, completamente diferente, é “a inclusão e o próprio delineamento, no sistema normativo, de tal ou qual interesse que, perante este mesmo sistema,