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Dizendo sobre os textos e os comentários sobre os textos

PARTE III – A LEITURA DA LEITURA C APÍTULO IV: E SCREVENDO

C APÍTULO V: R EVISANDO

1. Dizendo sobre os textos e os comentários sobre os textos

Contentemo-nos com a ilusão da semelhança, porém, em verdade lhe digo, senhor doutor, se me posso exprimir em estilo profético, que o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças.

José Saramago. História do cerco de Lisboa.

A atividade de revisão proposta teve como produto os vinte rascunhos e eles constituem, junto com suas versões primeiras (antes da revisão em duplas) e sua versão final reescrita, o corpus de sessenta textos empíricos dessa pesquisa108. São textos escritos por vinte crianças, cada qual com três versões. Com que olhar o pesquisador se debruçou sobre eles? Quais critérios e que perspectiva orientou a análise desses textos? Como se organizaram a descrição e discussão a respeito do que foi observado?

Como a proposta de investigação não focalizou os produtos-textos, mas o processo de produção e de aprendizagem em dinâmicas interlocutivas, seguiríamos com Bakhtin, lembrando que “um sujeito, como tal, não pode ser percebido nem estudado como coisa, dado que, sendo sujeito, não pode – se continua assim sendo – permanecer sem voz; portanto, seu conhecimento só pode ser dialógico” (1981, p.383). Construir conhecimento dialogicamente supõe interagir com as vozes das crianças, do professor, dos representantes da escola estudada, dos textos diversos que perpassaram as análises e discussões propostas aqui e com elas, a partir delas, contra elas, por elas, compor um dizer sobre a situação investigada. Uma concepção de investigação que submeta seu objeto a uma verdade estável, absoluta, regular, que pretenda tratá-lo algo observável diretamente e generalizável de forma universal, não se presta a uma análise dos fenômenos de linguagem e de aprendizagem, que são de caráter indeterminado e flexível, confluência de fatores diversos e mergulhados em muitas particularidades. Para Bakhtin (1981), o sujeito que aprende não adquire simplesmente a língua, ele está na língua, ele a modifica e é por ela modificado, entrando na corrente da língua como entra na corrente da história. Em contexto escolar, assim como em qualquer contexto, a linguagem não se dá como mero objeto epistemológico e não se oferta a um recorte formal (nem aos aprendizes, nem aos pesquisadores), ela se dá por inteiro, como acontecimento multifacetado e estruturante, mais do que estruturado.

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Embora este estudo focalize a escrita, seria importante ressaltá-lo enquanto envolvendo a própria leitura, visto que os dois processos são altamente imbricados – os sujeitos envolvidos nesse processo de investigação estão às voltas constantemente com a leitura. São crianças que se lêem, na própria gênese de seu texto ou que o lêem, já “acabado”, de um outro lugar; crianças que lêem os textos de seus colegas de um lugar de leitor e/ou revisor; professor que lê os textos de seus alunos como leitor, revisor, interlocutor; professor que faz uma leitura das marcas produzidas a partir da leitura feita pelas crianças de suas versões primeiras; pesquisador que faz uma leitura dos textos das crianças como pesquisador, analista, que faz a leitura da leitura das crianças e uma leitura da possível leitura que o professor pode fazer da leitura das crianças, para intervir – pesquisador que se propõe a fazer uma “leitura” – gesto de interpretação – e uma discussão propositiva a partir desses diversos estratos de leitura. Isso tudo para reafirmar que não se trata de debruçar-se sobre os textos e sobre as “leituras” que se fazem deles – leituras dos próprios textos, de suas marcas de reelaboração ou da leitura que se fazem dessas marcas – de modo absoluto, positivista, dissociado de suas condições de produção. A leitura, em qualquer estrato, é questão de interpretação e nunca uma questão de tudo ou nada. Como diz Orlandi: “é uma questão de natureza, de condições, de modos de relação, de trabalho, de produção de sentidos, em uma palavra: de historicidade” (1993: 9).

Interrogar os textos, como produtos que escondem e desvelam as marcas de sua produção e articular a eles os comentários feitos pelas crianças em situação de revisão colaborativa, é abordar a questão do ponto de vista do processo de apropriação da língua e dos discursos. Assim, de certo modo, trata-se de analisar o processo materializado, levantar hipóteses, interpretar, inferir, propor um olhar sobre os processos pelos quais a criança teria chegado a tais produtos. Como nos diz Soares (apud ROCHA), trata-se de “flagrar indícios que revelam e desvelam os mecanismos pelos quais a criança vai construindo sua competência textual” (1999, p.13). Ora, tais indícios são apreendidos por um processo de inferência que não pode se apoiar sobre premissas absolutas e tomar uma forma dedutiva; os indícios não são exatamente objetos de uma produção pelo sujeito que escreve, mas de um reconhecimento e, de certo modo, de construção por quem os analisa. Desse modo, trata-se de um processo de reconstrução que, de qualquer forma, escapa à tentativa de fechar a leitura dos rascunhos em um pretenso conhecimento definitivo e acabado sobre o processo de produção e reflexão das crianças. O rascunho não constitui em um mapa já mapeado ou completamente mapeável. Pelo contrário, é cada vez novo e outro, cada vez diferente para cada texto, para cada sujeito, para os mesmos em outros momentos, para cada grupo, para cada situação de

aprendizagem, para cada situação concreta de interlocução. Cabe relembrar que não se trata de uma análise lingüística fina do produto, na qual o rascunho é tomado apenas como o traço semiótico de uma atividade lingüística. As marcas de reelaboração testemunham o vaivém que corresponde ao tateamento da elaboração das idéias, da construção do sentido, da pesquisa que o aluno conduz sobre a forma do dizer sobre o que quer dizer, experimentando possíveis em língua e discurso e são tomadas em um contexto mais amplo de considerações.

Escolheu-se apresentar aqui as análises e discussões sobre cada texto e cada dupla em particular, pois, durante as análises constatou-se que cada situação punha em cena uma faceta importante das operações de revisão e reescrita, seja referentes ao tratamento lingüístico, seja aos próprios procedimentos de revisão. As observações pertinentes a cada texto e suas particularidades foram, entretanto, articuladas às observações gerais que a investigação como um todo suscitou. Alguns aspectos analisados foram tratados na perspectiva das regularidades encontradas, outros, na da particularidade, das singularidades, já que consideramos que aspectos singulares e episódicos podem também, e muito, informar sobre o que é tomado como objeto de atenção e reflexão pela criança que escreve, que aprende, que aprende a escrever. A diversidade de elementos focalizados nos oferece um rico material para refletir sobre o que chama e o que não chama a atenção delas, o que está na pauta de suas preocupações naquele momento, o que se constitui em elementos observáveis. Trata-se, assim, de dar certa visibilidade a essas pistas, interpretar esses traços que se dão a conhecer, permitindo a emergência de um amplo contexto de articulações, que se sabem sempre abertas e provisoriamente apreensíveis. A operação de revisão, que deixa marcas no papel ou no registro em áudio, é tomada como atividade reflexiva dessas crianças que, nos seus modos não completamente regulados de enunciar, de organizar o dizer, de agir, pensar, escrever, se constituem enquanto sujeitos de seu dizer, de sua voz própria, autores, sujeitos. Crianças que espalham conhecimentos no papel, buscando formas, querendo dizer a partir do que sabem e do que estão aprendendo.

Cabe ressaltar que as análises desses materiais – cada texto/comentários ou o conjunto dos textos/comentários – foram apresentadas nas dimensões descritiva, interpretativa e propositiva (mas não prescritiva) no âmbito das articulações de sentido tecidas a partir das situações singulares vividas e pensadas.