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PARTE I – VOZES DE REFERÊNCIA

C APÍTULO II: E STUDOS RELATIVOS À REVISÃO E À REESCRITA

2. Perspectiva Genética e Lingüística

Uma outra corrente que se interessa pela reescrita são os estudos derivados da genética do texto literário, corrente de crítica literária que focaliza a dinâmica interna do texto, interrogando sobre sua construção a partir da análise dos manuscritos, rascunhos, avant-textes de escritores. A genética textual analisa os textos não na linearidade sob a qual se apresentam aos leitores, mas em toda “espessura” dos estratos cuja versão final é apenas a superfície. As rasuras nas versões de um texto permitem, segundo essa perspectiva de análise literária, a recuperação da gênese e da história da produção desse texto, sobretudo a partir da análise das operações de acréscimo, substituição, supressão e deslocamento de elementos.

Fabre (1990 principalmente)50, no âmbito de seus trabalhos em lingüística aplicada, postula que os métodos de análise da crítica genética fornecem, de certo modo, instrumentos operatórios e aplicáveis à análise de rascunhos de crianças aprendendo a escrever e também fornecem pistas interpretativas, sobretudo no que se refere à natureza metalingüística das rasuras, das alterações introduzidas. A partir de uma adaptação dos estudos genéticos, a autora propõe a análise de rascunhos de alunos em idade escolar – considerando evidentemente as particularidades e diferenças entre a gênese do texto de um escritor e a gênese de uma competência escritural. Os trabalhos da autora, que em muito contribuíram para a mudança de atitude teórica e pedagógica no que concerne ao rascunho dos alunos na França, ressaltam a natureza metalingüística das modificações efetuadas pela criança no seu texto, e as colocam como índices preciosos, embora de certa forma lacunares, da gênese específica da enunciação escrita. Embora só tenhamos acesso à consciência lingüística e ao trabalho interior do sujeito que escreve de maneira indireta, as marcas de hesitação, de modificação, podem, segundo Fabre (passim), muito informar sobre a interação do produtor do texto consigo mesmo, com seu texto e com sua interiorização do destinatário. Sobre o rascunho como espaço de comunicação consigo mesmo, diz Fabre:

Duas semióticas intervêm nas modificações de gênese: a da linguagem verbal por um lado, e a de uma paralinguagem na qual se risca, flecha, sobrecarrega. O que faz o escriba? Ele faz indicações para ele mesmo: ele

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Fabre se baseia em estudos de autores ligados ao ITEM-CNRS, como Fuchs, Gresillon, Lebrave, Rey- Debove, todos citados pela autora (1990 principalmente).

coloca em memória, de forma econômica e não explícita, um programa de modificações, que ele reserva para realizar posteriormente. Ele representa para si mesmo ao menos duas fases da inscrição, uma comportando notações minimais, freqüentemente não verbalizadas, e outra traduzindo, por modificações de linguagem, indicações mais ou menos legíveis nas rasuras (FABRE, 1992, pp. 09)51.

Retornar a seu próprio texto ou fragmento de texto para modificá-lo implica em um distanciamento; o ato de rasurar mostra que a criança tomou distância em relação ao seu primeiro escrito e coloca-se como leitor de si mesmo. Como nos diz Abaurre, Fiad e Mayrink- Sabinson, “esses sinais concretos de trabalho com o texto apontam indiretamente para o fato de que o autor move-se, nesses momentos, no interior do espaço dialógico onde já se anuncia a alternância de papéis de escritor/leitor” (1997, p.80). De fato, as alterações que o produtor faz, eventualmente, no seu texto – seja no momento da escritura, seja posteriormente – são fruto de leituras que ele faz para controlar, para monitorar o seu processo de escritura. Nesse sentido, poderíamos dizer que é o sujeito “escritor”, em seu papel de leitor, que revisa. O autor é sempre o primeiro leitor de si mesmo, pois escrever implica em um trabalho de leitura constante do que se escreve e se escreveu.

Reformulações seriam analisáveis como pontos de dificuldade, de hesitação, como intenção explícita de agenciamento de elementos, em busca de uma organização mais satisfatória da escrita enquanto sistema e enquanto discurso. Na busca da construção de sentidos há reformulação de idéias e da maneira de dizê-las. Para Fabre (1990), o ato de rasurar, de modificar pode ser tomado como uma atividade reflexiva do sujeito aprendiz, cujo percurso pode ser de alguma forma “lido”, pode se deixar “ler”, pelas modalidades de suas rasuras52. A autora considera que o rascunho de textos testemunha as atividades metalingüísticas da gênese textual, pois revelam o percurso dos possíveis sucessivamente rejeitados. No âmbito dos estudos em aquisição da linguagem escrita, também Abaurre, Fiad, Mayrink-Sabinson (1997), numa perspectiva bastante produtiva e próxima da de Fabre, consideram essas marcas privilegiadas, pois, em sua singularidade, indiciam operações epilingüísticas do sujeito, revelando uma certa consciência, ainda que fugaz, de suas escolhas. O grupo de pesquisadores em aquisição da linguagem escrita do IEL/Unicamp, representado especialmente (no que diz respeito ao tema da reescrita) por essas autoras, vem pesquisando a

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A tradução das citações de Fabre é de nossa responsabilidade.

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É bom relembrar que as marcas revelam um trabalho sobre o texto e esclarece o sentido desse trabalho, mas não permite a reconstituição da atividade suposta do sujeito, a determinação exata de suas intenções, como já sublinhado anteriormente. A autora confirma, nesse sentido, o cuidado que requer a interpretação dessas marcas. De qualquer modo, ressaltar seu caráter de indício, que requer interpretação, já é tomá-los como uma construção e não como dado na realidade.

relevância e o caráter peculiar das marcas deixadas pelos sujeitos nos textos que produzem numa perspectiva semiótica-indiciária, que valoriza o dado singular na pesquisa em aquisição da linguagem escrita53.

Fabre54 (1990) considera a rasura como um termo genérico designando qualquer modificação efetivada através das operações de acréscimo, substituição, supressão ou deslocamento de elementos de níveis diversos no texto, desde os grafemas, sinais de pontuação, acentos, até as palavras, sintagmas e enunciados mais longos. As rasuras são as marcas visíveis de uma atividade de reescrita, imediata ou diferida, que revelam escolhas incessantes e instáveis. Substituindo, suprimindo, acrescentando, deslocando elementos de níveis diversos, quem escreve trata os signos como variáveis sendo suscetíveis de comparação, análise, equivalência, o que revela certa consciência da não transparência da linguagem. Fabre (1986, 1990) propõe uma “leitura” e análise das marcas lingüísticas deixadas nos rascunhos por meio dessas operações, mas também das marcas “paralingüísticas” (flechas, manchas, riscos, parênteses, empilhamentos de morfemas, signos etc) que as acompanham.

Os rascunhos infantis estudados por Fabre (1986), revelam uma predominância de substituições, quase ausência de deslocamentos e distribuição instável de supressão e acréscimo, mas com uma maior incidência de supressões. A autora constatou que a operação de acréscimo no início da aprendizagem da escrita é pouco representada nos rascunhos, aparecendo apenas relativa a elementos gráficos ou palavras, raramente frases inteiras. O deslocamento – que é uma permutação de elementos que modifica a sua ordem no texto, ou deslocamento de um trecho para outro ponto do texto – é uma modificação rara, pouco presente no seu corpus de rascunhos, principalmente o deslocamento de enunciados maiores. Essas duas operações, segundo as pesquisas da autora, continuam menos efetuadas nos rascunhos ao longo dos anos escolares. A supressão, que é uma rasura sem substituição do segmento retirado, é uma operação bem mais freqüente, presente desde o início da aprendizagem da escrita. Parece que, nessa fase inicial, ela aparece quando alguma dificuldade é encontrada, mas é não tratada, ou um tema é vislumbrado, mas é abandonado. Evidentemente, pode referir-se também a elementos que foram, por exemplo, repetidos ou que

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As marcas de reelaboração como indício da relação singular do sujeito com a linguagem são aí analisadas sob o ângulo do “paradigma indiciário” de Ginzburg (1986) e se constitui em uma interessante abordagem teórico-metodológica no âmbito dos estudos em aquisição da linguagem. Para uma revisão dessa perspectiva, ver Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (1997), Góes (2000) e Abaurre (1996). Ver também Ginzbug (1991) e Castro (1996).

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A perspectiva de Fabre, embora sublinhando aspectos do processo de escrita, é uma perspectiva lingüística e focaliza prioritariamente o objeto textual, lançando luzes sobre sua gênese. A autora não se preocupa com aspectos como as condições de produção das reescritas textuais e seus desdobramentos na prática pedagógica.

pareceram estranhos ou supérfluos no enunciado, num momento de releitura. A operação de substituição, por sua vez, constitui uma supressão seguida de um acréscimo de outro elemento, um elemento novo. Essa operação indica que diante de uma insatisfação, o produtor do texto procurou realmente modificar sua escritura. Constitui uma operação de rasura bastante expandida, freqüente. Diante desses dados, a autora faz a hipótese de que, comparando-se os rascunhos de adultos experientes e crianças no início da aprendizagem da escrita ao que se observa em rascunhos de outros níveis de escolaridade, há uma emergência progressiva da consciência lingüística (ou metalingüística), na atividade de revisão textual. Pesquisas em psicolingüística mostram também que quanto mais o redator é experiente, maior é o tempo da redação que é consagrado à revisão (HAYES e FLOWER, 1981).

No corpus de textos que analisou, Rocha (1999), no entanto, mostrou haver indícios de que as discussões infantis em torno da tessitura textual centraram-se no “dizer mais” (completar ou inserir enunciados), na inserção de informações para tornar o texto mais compreensível. Góes (1993) ressalta que “dizer melhor” ou “de outro jeito” (substituir enunciados) mostra-se como um objeto de reflexão complexo para produtores iniciantes de textos, aparecendo mais tardiamente como preocupação. Como diz a autora, “dizer de novo” revela “um modo mais complexo de utilização de recursos de linguagem” (1993, p.112). Provavelmente, essa diferença de resultados de Fabre (1986) e Rocha (1999) diz respeito aos elementos focalizados. Enquanto a perspectiva de Fabre (1986) abrange todo tipo de modificação, centrando-se em aspectos mais formais, Rocha (1999) refere-se basicamente à percepção em torno da inadequação ou insuficiência do nível de informatividade do texto, um aspecto que se refere basicamente à textualidade. “Dizer mais”, segundo ela, seria constitutivo de “dizer melhor”, “dizer de novo” (GÓES, 1993) e, tanto “dizer mais” quanto “dizer melhor”, seriam representações das crianças a respeito da textualidade, relacionadas à construção da perspectiva do leitor.

Seja como for, tomar os rascunhos infantis como objeto de análise, a partir das marcas, das operações de rasura que apresenta, permite que o processo de produção, mais que o produto em si, seja analisado. Como é um espaço de escrita que contém o texto em curso de produção, assim como os comentários metatextuais e extra-textuais – “sobredizeres” do próprio autor e os de outros que porventura contribuam com suas leituras atentas – o rascunho é testemunho também dos diversos modos de revisar.

Evidentemente, como já foi dito, entre a análise de versões provisórias de autores consagrados, tarefa da crítica genética, e a análise de rascunhos infantis, tem-se uma grande diferença. Trata-se, no segundo caso, de observar o desenvolvimento de capacidades relativas

à produção escrita, em seus diversos níveis de complexidade, na perspectiva de alguém que aprende, que se apropria, que tateia, que começa a constituir sua relação com a escrita.