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PARTE I – VOZES DE REFERÊNCIA

C APÍTULO II: E STUDOS RELATIVOS À REVISÃO E À REESCRITA

1. Perspectiva Cognitiva

Pesquisas psicolingüísticas de enfoque cognitivo têm abordado os processos redacionais em adultos experientes desenvolvendo modelos recursivos de composição escrita. O modelo de atividade cognitiva do sujeito de Hayes e Flower (1981) constitui uma das principais referências de autores que abordam a questão da produção de texto, sob diferentes perspectivas: psicolingüística, lingüística, didática. Este modelo, genérico, define três grandes conjuntos de processos da atividade redacional, tomada como produção de qualquer tipo de texto: a planificação, a transcrição e a revisão. Esses três processos seriam monitorados por uma instância denominada monitoging. A planificação (planning) envolve a convocação de idéias e os conhecimentos da situação de comunicação, o destinatário do texto, o tema, o objetivo. Por seu turno, a transcrição ou textualização (translating) corresponde a todo o processo concreto de escritura, no qual o produtor do texto escolhe e agencia as formas lingüísticas do enunciado (escolhas lexicais, antecipação de convenções da escrita, manejo

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Estudos provenientes de pesquisas em psicologia cognitiva e psicolingüística serviram de referência na medida em que puderam ser reconsiderados sob uma ótica interacionista e que, confrontados às pesquisas aplicadas, puderam ser reinvestidos em termos de prática pedagógica. Não é preciso reiterar mais uma vez o caráter inócuo da aplicação direta dos resultados ou modelos provenientes de disciplinas diversas ao campo da educação. Vários resultados de pesquisas de campos afins, no entanto, nos fornecem elementos importantes para pensar a relação do sujeito escritor com o texto.

dos recursos textuais) e as realiza graficamente. Por fim, a revisão (reviewing) consiste no reajustamento do enunciado, incidindo em qualquer aspecto, local, global, e inclusive nos aspectos próprios da planificação. Assim, neste modelo, os três processos são articulados por um princípio de recursividade constante, a revisão intervindo a todo o momento. Os reajustamentos podem intervir no final da redação de um texto ou durante a própria escritura. Nem tudo o que é efetuado pelo produtor experiente de texto, no entanto, do planejamento à revisão, o é de forma consciente e deliberada, havendo um nível de automatismo em muitas operações. Desde aspectos como a escolha das palavras, a concordância gramatical, até os textuais e mesmo a adequação ao leitor, podem se dar sem que se constituam em objeto de atenção particular e, ainda assim, o texto satisfará a esses critérios. Parece que a dificuldade maior encontrada pelos aprendizes é relativa à gestão de sua própria atividade, isto é, à gestão simultânea desses três componentes – planejamento, textualização e revisão – pela instância de controle (monitoring), que é ainda limitada. Dito de outro modo, ainda estão constituindo o autocontrole em relação a suas produções, ainda não têm desenvolvido o grau de automatização necessário ou a capacidade de selecionar estratégias que os liberem da “sobrecarga cognitiva” relacionada ao tratamento de diversos aspectos e níveis da produção escrita.

Fayol (1996) argumenta que o modelo, ou a própria “modelização” em questão concebe a produção de textos como uma situação de resolução de problemas na qual a escrita aparece como uma seqüência de tomadas de decisões, hierarquizadas, interdependentes, compreensíveis, mas imprevisíveis, devido à complexidade dos parâmetros que as determinam. O sujeito que escreve deve, a todo o momento, avaliar a pertinência de formas e estruturas empregadas ou a empregar, e isso em diferentes níveis que ele deve hierarquizar e combinar uns com os outros: morfossintático, semântico, pragmático. Reafirmamos aí a complexidade inerente à composição de textos. Embora composta de operações automatizadas, o ato de escrever envolve também, segundo Hayes e Flower (1981), muitas operações dificilmente automatizáveis e uma multiplicidade de fatores, exigindo um custo cognitivo alto. A possibilidade de revisar, de (re)ajustar em um segundo momento se constitui justamente em um recurso para evitar a gestão simultânea de todos os fatores implicados, que geraria sobrecarga cognitiva – aspecto que reitera a sua dimensão de atividade constitutiva da escrita.

O modelo de Hayes e Flower (1981) – assim como outros que focalizam os mecanismos mentais do sujeito (BEAUGRANDE, 1981, V. DIJK e KINTSCH, 1983 apud DAVID e PLANE, 1996) – deu origem a várias pesquisas de cunho cognitivista, centradas ora

no planejamento, ora na textualização, ora na revisão, numa tentativa de mapeamento dessas fases. Dentre esses, os estudos de Bartelett (1982) e Scarmadalia e Bereiter (1983), referidos no capítulo I, na parte “A Dimensão Reflexiva da Escrita”, analisam os processos específicos de revisão (ambos apud FAYOL, 1987). No modelo desses autores, o processo de revisão se daria em três etapas: em primeiro lugar, a comparação entre a intenção – o planejamento, o propósito considerando o leitor – e o produto final ou em curso de produção; em seguida, a identificação dos problemas e determinação das operações necessárias para efetivar as mudanças e das alternativas de como fazê-las; por fim, a operação de mudança efetiva de elementos do texto.

Essas “modelizações” tentam reconstituir a atividade cognitiva suposta de um sujeito universalizado, durante o processo de escritura e revisão, no âmbito de um paradigma cognitivista e de uma concepção idealista de linguagem, não considerando sua dimensão histórica e a natureza interativa e dialógica da construção dos textos e dos discursos48. Nesses modelos, o sujeito que escreve é um sujeito essencialmente cognitivo, epistêmico, universal; é o processo individual de resolução de problemas que é analisado, no âmbito de uma visão idealista na qual as estruturas mentais encontram um mundo pré-existente. O processo de participação do outro nos processos de aprendizagem é abordado apenas de modo instrumental, “de fora”.

Cabe ressaltar que na perspectiva cognitivista, a relação da revisão com a reescrita tem como base o princípio da clareza cognitiva e do pensamento como pré-existente à escrita, à linguagem. Nessa perspectiva, a escrita seria decomposta em sub-tarefas e sub-competências e a reescrita seria um desdobramento, uma etapa da revisão, que serviria, por sua vez, para ajustar o produto ao projeto inicial, mental ou esboçado. Reescrever seria modificar o produto visando uma aproximação com o projeto de escritura. Ora, essa perspectiva só teria aplicação se considerasse que o projeto de escrita também se modifica e se renegocia à medida que se escreve, que a escrita contribui para a constituição do projeto e, assim sendo, a revisão incidiria na planificação inicial transformando-a49. Vistas como procedimentos, às vezes até fixos e estanques, essas atividades, na abordagem cognitivista, pouco se relacionam à construção do sentido nas dinâmicas interativas. Essa perspectiva, baseada em uma visão imanente da linguagem e em modelos abstratos de estruturação do conhecimento, mostra-se

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Para uma revisão sucinta destas pesquisas ver Garcez (1998), Fayol (1987), David e Plane (1996).

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O modelo difundido de Hayes e Flowers embora sendo um modelo recursivo, permanece nessa perspectiva de ajuste do produto ao projeto inicial, como se escrever fosse transcrever um pensamento pré-estabelecido e reescrever fosse buscar melhorar a adequação do texto em curso de elaboração ao pensamento preexistente.

limitada no sentido de tomar a questão da produção de textos em termos de constituição da relação do sujeito com a linguagem.