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O que pensam as crianças sobre os rascunhos, sobre revisar e reescrever?

PARTE II – AS REPRESENTAÇÕES DAS CRIANÇAS

1. O que pensam as crianças sobre os rascunhos, sobre revisar e reescrever?

Rascunho, razão da rasura.

Rebelde, retrata rabiscos, ranhuras Revela, rachando rochedos, recua. Reflete, rimando com o riso, ritua.

ANA AURÉLIA

Propor as atividades de revisão e reescrita na escola supõe pensar sobre como propor o recurso do rascunho aos alunos, em que condições ele se torna produtivo, em que condições recorrer a ele faz sentido. Se escrever é um procedimento que se aprende escrevendo, utilizar procedimentos e estratégias de revisão no processo de produção de textos, recorrendo ao uso do rascunho, também pode ser aprendido, utilizando-o. Entretanto, não podemos esperar que os alunos passem a fazer uso do rascunho apenas orientados pela exigência do professor, por sua vez orientada pelas supostas vantagens da utilização desse recurso. Como, geralmente, é o produto final, o texto passado a limpo, que é avaliado, valorizado ou desqualificado, e não os mecanismos para se obter este, o rascunho escolar é quase sempre visto como um produto “sujo”, descuidado, que deve ser descartado, tão logo se termine a versão final. Seria um texto que tem erros e descuidos, pois é produzido por quem tem um domínio imperfeito da escrita. O rascunho escolar, ou seja, o rascunho adjetivado com essa peculiaridade, que certamente o marca de uma diferença, é também isso, mas trata-se de poder pensar numa ampliação de seus

significados inserindo na escola também o sentido que o rascunho – e a escrita – tem fora desse contexto.

Além desta idéia de que o rascunho é um texto imperfeito, pois escrito “por quem ainda não sabe escrever”, muitas idéias sobre o que seja um rascunho, sobre o que seja escrever, revisar, reescrever, produzir textos, estão aí em jogo. Mas como agir sobre essas concepções, essas representações? Ora, a própria prática de revisão e reescrita, em certas condições, já as pode modificar enormemente. A partir dos próprios textos das crianças, em curso de produção, é possível vislumbrar modificações em suas concepções de escrita, de texto, de texto pronto. Aprender a revisar e a reescrever e tomar a escrita como esse conjunto de procedimentos, em si, já é também rever e transformar essas idéias.

Em pesquisas desenvolvidas na França (PENLOUP, 1994, DAVID e PLANE, 1996), onde o rascunho é um recurso que faz parte da solicitação escolar no processo de produção de textos, observou-se que mesmo quando o professor passa a avaliar as rasuras e as hesitações nos rascunhos de seus alunos como testemunhos de seu trabalho sobre a linguagem, como competência de escrita e não como incapacidade, muitos alunos ainda as vêem como uma confissão de suas deficiências em escrita, cada rasura aparecendo como uma falha. O rascunho é visto como “un objet un peu honteux où chaque rature apparaît comme un raté” (PENLOUP, 1994, p.33)80. A escrita não sendo considerada como um trabalho sobre a linguagem, como um ir-e-vir, um corpo-a-corpo laborioso com as “palavras”, com a linguagem, rasurar é visto como falhar (raturer, c’est rater), enquanto ter êxito estaria associado com não rasurar, entregar sua folha limpa, au premier jet, trabalhar rápido e bem, dispensar o rascunho, o esboço.

Entretanto, planejar no rascunho, rasurar, experimentar diversos recursos expressivos, diversas versões de um mesmo enunciado, de uma mesma frase, buscar a expressão mais apropriada para o que se quer dizer, buscar precisão, nuances nos encadeamentos das orações, buscar efeitos de linguagem, não reflete, de maneira alguma, uma incompetência, mas, ao contrário, um bom domínio das características da escrita, da capacidade de manejá-la, de trabalhá-la. Em um rascunho bem utilizado se revela uma intensa atividade de revisão e reescrita – disso sabemos todos nós que escrevemos. Mas isso não é evidente para as crianças que se iniciam na produção escrita de textos, quando escrever é freqüentemente tomado como

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Com essa frase e a seguinte (“raturer c’est rater”, i.é. “rasurar é falhar”), a autora faz um jogo com a sonoridade das palavras rature e raté que, na tradução, é perdido, ficando apenas o sentido: “um objeto um pouco vergonhoso no qual cada rasura aparece como uma falha”.

uma atividade que se faz de uma só vez e a releitura serviria apenas para “corrigir”, na maioria das vezes, erros ortográficos.

Sendo assim, uma discussão sobre a utilização do rascunho na escola (seja tomando-o como objeto de considerações por outros alunos, seja para servir de base para a intervenção do professor, para ser corrigido ou para ser usado apenas pelo produtor do texto como ferramenta de autocontrole de sua produção) deve passar por uma reflexão sobre a rasura, o erro, a correção, sobre as crenças a respeito de um texto imaculado, enfim, sobre as possíveis representações – do professor e dos alunos – relacionadas ao rascunho e à revisão. Essa reflexão repercutiria inclusive na redefinição do que seja um bom texto e dos critérios para avaliá-lo. Assim reafirma-se que o trabalho com a produção textual, nesse sentido, é também um trabalho de transformação de representações.

Quando nos dispusermos a ouvir uma criança dizer, por exemplo, que faz um rascunho, mas não sabe pra que serve ou que não faz, pois sabe escrever bem, ou que não precisa reler seus textos pois sabe o que está escrito, e quando pudermos incluir essas concepções, essas idéias, nas nossas intervenções didáticas, uma aprendizagem mais efetiva pode ter realmente lugar. Nesse sentido, a questão das representações se torna fundamental não apenas para a pesquisa como para a o trabalho em sala de aula, ou seja, a emergência e a transformação das representações seria parte integrante da aprendizagem.

A idéia que atribui ao escritor “expert” uma escrita fluente e sem rasuras e de que o rascunho é o lugar do domínio imperfeito da escrita, pode instalar no aprendiz a convicção de que, se ele sabe escrever, não precisa revisar, não precisa dos “tateamentos” do rascunho – a não ser, no máximo, para pequenos ajustes, como a ortografia e a caligrafia, devidos à escrita rápida. Ou ainda que se ele precisa do recurso do rascunho, é por que não sabe escrever. Aprender que o texto é geralmente resultado de um trabalho que comporta variações, supressões, insatisfações, precisões, ampliações81, é aprender que a linguagem não é transparente e oferece inúmeras possibilidades de escolha àquele que produz um discurso. E isso é, definitivamente, aprender a escrever!

Convém sublinhar que as atividades de revisão e reescrita implicam não apenas o saber lingüístico e textual do aluno, a ampliação de seu repertório de recursos expressivos, mas também o saber-fazer, a ampliação de seus procedimentos de composição de textos. Assim, faz parte de aprender a produzir textos, modificar, ou pelo menos tornar mais

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O “geralmente” nessa frase diz respeito ao cuidado que se deve ter de, por outro lado, não mitificar a rasura, tornando-a passagem obrigatória à escrita.

complexas e ampliadas essas representações sobre o saber-fazer, os procedimentos ligados a essas atividades.

Assim sendo, é preciso ressaltar a importância de que tais idéias, concepções, representações sejam consideradas na prática educativa, sendo o ponto de partida para o planejamento de intervenções nesse sentido. Se por um lado as idéias sobre a revisão textual podem ser tomadas como elemento que dificulta, de algum modo, as revisões, por outro, é preciso lembrar que, longe de constituírem em obstáculos à aprendizagem – no sentido de serem tomadas como saberes ingênuos, falsos, errados – as representações das crianças são saberes que se articulam de modo complexo com os saberes e representações escolares e sociais e ponto de partida para novas aprendizagens.

Para melhor abordar a problemática das representações infantis sobre os rascunhos e as atividades de revisão e reescrita, faz-se necessário discutir sobre o termo “representação” e como ele tem sido utilizado no campo científico. Embora se refira a conhecimentos de objetos ou eventos que dirigem ou orientam o comportamento e as ações dos sujeitos, a noção de representação é complexa e é usada tanto em sua acepção comum quanto articulada aos estudos oriundos de diferentes áreas do conhecimento como a sociologia, a psicologia, a psicologia social, a educação. Para abordar as representações é necessário deixar claro a que espécie de fenômeno se está referindo, pois, trata-se de um termo que tem assumido significados diversos em diferentes campos do saber e mesmo no âmbito de uma mesma área de conhecimento. Por vezes, a noção de representação é usada como sinônimo de concepções, conhecimentos, referindo-se geralmente a construções internas do sujeito em suas interações com o real, o meio, os objetos de conhecimento. Outras vezes, é tomada como formas externas de registro simbólico, materializado em algum suporte82. Mesmo considerando apenas essa primeira perspectiva, muitas vezes, a noção de representação pode estar sendo usada ora como sinônimo de percepção, ora de concepções que têm os sujeitos, seus conhecimentos prévios, ora de representações sociais, coletivas, tal qual delineada pelos estudos em psicologia social – especialmente a partir da perspectiva de Moscovici (1978) – e, nesse caso, adquirindo um caráter diferente do de construção interna do sujeito.

O sentido e valor das representações – fenômeno de dimensão social, imposto aos sujeitos, ou fenômeno interno, privado, ou ainda articulação dos pólos interno e externo – variam de acordo com as perspectivas de estudo consideradas. Sem aprofundar essa discussão, cabe aqui, no âmbito desta pesquisa, esclarecer que a utilização do termo refere-se

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às representações construídas em e por esse grupo social específico que é a sala de aula, tomada como uma comunidade discursiva que tem suas peculiaridades, sem desconsiderar, no entanto, a articulação com as concepções singularmente construídas por cada um. Tomar as representações desse modo se torna possível em uma perspectiva sociointeracionista e dialógica, na qual a relação entre a dimensão intersubjetiva e subjetiva, sendo constitutivamente relacionadas, permite conceber as dimensões sociais e individuais das representações como necessariamente entrelaçadas. Ou seja, aquilo que o indivíduo pensa sobre determinada questão relaciona-se com o que o grupo social está engajado em pensar e as representações desse grupo social são reelaboradas pelos sujeitos a partir de suas vivências, reagindo a elas, se apropriando delas, “lutando” com elas, aprendendo com elas, avançando e recuando a partir delas e transformando-as. Afinal de contas, aprender é constantemente também “desaprender” e re-aprender.

Sendo as representações infantis concebidas dessa forma, pode-se dizer que as atividades de revisar e reescrever são atividades sobre as quais as representações a respeito do processo de produção escrita incidem muito fortemente, tendo efeitos positivos e negativos sobre esse processo, mas sempre efeitos que podem ser abordados no contexto do aprendizado da escrita.

Trabalhar a reescrita é trabalhar sobre, contra, com um substrato de representação do aluno sobre o processo de escrita, mas é, sobretudo, trabalhar com ele sobre a imagem que tem de suas competências. Pedir que guardem seus rascunhos é levá-los a se encantar diante do caminho percorrido, abrir-lhes o horizonte do ‘possível’, mostrar-lhes que aprender a escrever é, antes de tudo e, sobretudo, escrever muito e regularmente (BUCHETON, 1992, p.87).

Só modificando as idéias sobre o rascunho e a revisão textual, pode-se levar a perceber o rascunhar fora do fardo da reescrita final, do esforço pouco significativo do “passar a limpo”. Se reescrever passa a ser visto como jogar com as possibilidades da linguagem, brincar com as possibilidades de dizer, como modo de criar efeitos para, finalmente, emocionar, argumentar fervorosamente, contra-argumentar, convencer, encantar, então se justifica trabalhar e re-trabalhar os textos. Evidentemente, em contexto escolar, a língua e os textos são também tomados como objetos de conhecimento e não apenas em seu uso nas interações sociais. Mas quem disse que aprender a usar os textos e a língua não é também tomá-los como objeto de conhecimento? Trata-se de conhecer os textos e a língua tal qual eles se apresentam – na vida, nas interações entre as pessoas, ainda que em situações em que eles são particularmente objetos de atenção e reflexão enquanto tais.

Rascunhar é organizar o pensamento, pegar as rédeas do dizer, preencher ou criar ranhuras no texto, aprender a escolher entre as formas de dizer que são muitas e flexíveis, testar novos recursos aprendidos, usar seu repertório próprio, ampliá-lo, recuar, avançar, enfim, aqui e ali na luta própria com as palavras, no intuito de relacionar-se com o mundo, consigo mesmo, com os outros. Rascunhar não deve se constituir, assim, em demanda artificial apenas para aprender a escrever, pois é ato de escrita, rito de escrever, rimando com o riso do ato de criar, de ser autor, de construir construindo, destruindo, re-construindo.