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PARTE III – A LEITURA DA LEITURA C APÍTULO IV: E SCREVENDO

3. Situação Imediata de Produção dos Textos

A proposta não sendo a de estabelecer uma situação de pesquisa controlada experimentalmente, mas uma situação o mais próxima possível das reais interações em sala de aula, definiu-se a priori apenas o enquadre geral do processo, mas não o processo em si. Todo o desenrolar da intervenção foi de novo explicitado para as crianças no início da atividade. A minha presença em sala de aula era uma situação nova, mas a proposta não se apresentava como muito distante das situações cotidianas, a não ser pela condução em parceria e os propósitos dessa situação.

Nesse segundo encontro da pesquisadora com o grupo de crianças ocorreu a produção da primeira textualização das histórias de cada um. Cabe ressaltar que foi solicitada a escrita de um texto, não de um rascunho propriamente, mas as crianças sabiam que esse texto seria relido e revisado individualmente imediatamente após a sua produção, que iria ser relido e revisado em duplas, num próximo encontro com a pesquisadora, e que uma versão final seria produzida num momento posterior. Não havendo a prática de solicitar explicitamente a elaboração de rascunhos, não houve consignas nesse sentido. O que ocorre é de eventualmente ter que passar à limpo e, assim, a versão primeira passa a ser considerada como um rascunho, o que é diferente da solicitação ou uso deliberado do rascunho como um instrumento de produção textual.

Como combinado anteriormente, a professora propôs a atividade. Os alunos produziriam individualmente uma história com tema livre. Coloquei-me como parceira da professora e como interlocutora das crianças, que perceberam a situação dessa forma, já que durante todo o período que durou a intervenção, solicitavam a mim ou à professora quando precisavam tirar alguma dúvida sobre o procedimento, sobre a escrita de alguma palavra ou fazer colocações a respeito de algum aspecto da atividade.

Não houve propostas anteriores de leitura de textos narrativos, nem um trabalho para ativar temas, mobilizar conhecimentos nem estabelecimento da situação comunicativa. Na verdade, não se configurou uma produção de texto inserida em situação comunicativa específica que justificasse a produção das histórias e nem que justificasse a revisão e reescrita dos textos – a não ser a solicitação das crianças e a demanda posta pela pesquisa. Por um lado, admitindo que “escrever histórias” seja uma atividade já consolidada no cotidiano da sala de aula, tomada de forma tão natural que não demandaria um trabalho específico associado à proposta de escrevê-las, talvez tal falta de um projeto de escrita mais definido não fosse tão sem propósito. Mas, por outro lado, coloca-se a questão de como encaminhar a proposta de revisão e reescrita, já que esses procedimentos não teriam como justificativa uma situação de produção na qual o retorno ao texto, para melhorá-lo, se justificasse.

Entretanto, no decorrer do estabelecimento da negociação em torno da produção das narrativas, surgiu um aspecto interessante, anedótico até, que foi o fato de a própria pesquisa se tornar, para as crianças, a justificativa legítima para a reescrita final dos textos – como uma espécie de situação interlocutiva transversal, de segunda ordem – e que engajou o grupo na atividade proposta. Esse aspecto pode ser percebido na fala de algumas crianças e no comprometimento da maioria delas com o que estava sendo proposto, desde a primeira conversa apresentando a pesquisa até o momento da reescrita final de todo o texto. As crianças pareciam envolvidas com a perspectiva de terem seus textos no corpo de um trabalho acadêmico. Elas argumentaram que não queriam que os possíveis leitores da Dissertação vissem apenas os seus textos “borrados e cheio de erros” (sic), mas que pudessem saber que eles sabiam escrever. “Todo mundo que for na biblioteca da sua Faculdade pode ler, é?”, perguntou uma criança. “Além dos rascunhos borrados você vai botar os textos bonitinhos pra eles saberem que a gente sabe fazer bem, né?”, perguntou outra. “Pôxa, vou caprichar na minha história”, afirmou outra, no que outros concordaram. Assim, as crianças passaram a conceber a situação como uma escrita para a pesquisa, uma produção de histórias que fariam parte de uma Dissertação de Mestrado (o que já é um pouco diferente de ser apenas para serem corrigidas pelo professor). Evidentemente, seria uma situação diferente se produzissem

textos para um livro do grupo ou para circularem na escola. Essa situação específica tem possivelmente incidência nos textos escritos, assim como na atenção aos “erros”, ao processo de escrita e mesmo ao cuidado com as rasuras (rasurar mais e mais cuidadosamente já que o rascunho é o objeto de estudo e que estará também na Dissertação, ou rasurar sem deixar vestígios do que foi apagado para não mostrar o erro ou a hesitação). Não seria descabido conceber que as crianças pudessem passar a rasurar seus textos de modo particular já que se trata de uma pesquisa que versa justamente sobre essa questão, o que, no entanto, não invalidaria nossas observações e análises.

E as crianças puseram-se a escrever... Folhas grandes de caderno e canetas foram distribuídas para a primeira textualização102. No processo de escritura, algumas crianças, especialmente meninos, pareciam “fazer por fazer”, sem comprometimento ou envolvimento com a atividade, mas a maioria parecia envolvida. Acabados os textos, pedimos que os relessem com atenção, individualmente, podendo modificar, eventualmente, alguma coisa. Analisando os textos, pode-se observar que algumas rasuras e modificações foram efetivadas durante o próprio processo de escrita, intervindo no seu curso. Outras, por resultarem em reescritas locais espacialmente deslocadas da linearidade gráfica das frases (nas margens, entrelinhas, grafado por cima), indicam que se constituem em escritas diferidas, que foram efetivadas em um momento posterior à escritura do enunciado ou somente após releitura do texto como um todo103.

Durante a atividade de produção, houve quem contasse a quantidade de rasuras à medida que ia escrevendo, e essa contagem denotava a quantidade de “erros” cometidos. As crianças tinham uma preocupação com os possíveis leitores da Dissertação, de que eles “não achem que a gente não sabe escrever, na terceira série!” (sic). Duas crianças demoraram de começar a escrever alegando que queriam pensar bem antes de começar para “não borrar muito o rascunho, não manchá-lo” (sic!). No começo me chamavam para justificar, quase se desculpar pelas rasuras, denunciando uma preocupação em produzir uma espécie de “rascunho limpo”.

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Segundo a professora, o grupo tem o costume de escrever com caneta, especialmente para passar a limpo os textos finais de apostilas e livros que serão editados. Escrevem também a caneta diretamente em algumas situações eventuais.

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Seguindo uma distinção feita em crítica genética, utilizaremos a expressão “variante de escrita” para o primeiro caso e “variante de leitura” para o segundo. Ainda que essa distinção, para os fins da presente pesquisa, não seja operacional, a terminologia pode servir para ressaltar alguns aspectos de certos episódios analisados.