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PARTE III – A LEITURA DA LEITURA C APÍTULO IV: E SCREVENDO

2. Gênero: histórias

Em conversa prévia com a professora sobre a atividade de escrita proposta no contexto da investigação, ficou decidido pela produção de textos narrativos. O grupo da terceira série estava no final do processo de edição da Apostila de estudos, que demandou a produção de muitos textos informativos, e as crianças vinham solicitando, segundo a professora e a coordenadora pedagógica, atividades de escrita mais livres, lúdicas, “de imaginação”, sem relação direta com os conteúdos estudados96. A narrativa, geralmente com tema livre, é freqüentemente proposta ou solicitada pelas as crianças – são as chamadas “histórias” ou “estórias”97.

Nesta escola, a prática de ouvir, contar e escrever histórias é freqüente. Muitas das histórias produzidas pelas crianças são re-trabalhadas visando a inclusão nos tais livros

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Teria sido, certamente, mais interessante e produtivo acompanhar a produção de textos no contexto de uma atividade menos aleatória, como a escrita em gêneros diversos para a construção de livros para a Feira de Livros ou dos textos para a Apostila. O processo de produção da Apostila estando, no entanto, bastante adiantado, não foi possível acompanhá-lo para a pesquisa.

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A grafia com a letra e deixa claro o sentido de narrativa de ficção, ao contrário da grafia com h que também é usada para se reportar à narrativa de fatos, referentes à História. Os dois termos estão dicionarizados, apesar de recomendar-se a grafia com h nos dois sentidos.

coletivos ou individuais. Mas, histórias... o que são histórias? Gênero escolar vago, que só existe mesmo nesse contexto? Designação genérica para narrativas de tipos diversos? Gênero vago, mas consolidado, que engloba os contos em suas várias facetas, o fantástico, o maravilhoso, a ficção científica, o policial, as modernas histórias com tramas cotidianas e/ou realista, uma mistura de tudo? Por um lado, poderíamos argumentar “que consiste em uma acepção muito ampla, pouco específica, que não define necessariamente o gênero narrativo em questão, mas por outro, podemos conceber que, sendo tão comuns, na escola e fora da escola, tão familiares para as crianças, parecem constituir um gênero específico e particularmente presente na assim chamada “literatura infantil”.

Em geral, desde que haja interações que o favoreçam, crianças ouvem e contam histórias desde cedo e, através delas, aprendem quase naturalmente a narrar, construindo o discurso narrativo que, baseado em modelos orais de relatar, narrar, beneficiará, inclusive a aprendizagem do discurso escrito98. Assim, mesmo para quem possa alegar que se trata de um gênero vago, por que não seria legítimo partir delas, das histórias, para chegar a uma maior definição dos diferentes gêneros narrativos? Até porque, para desenvolver melhor as tramas narrativas escritas, a criança precisa de muito repertório, de conhecimentos enciclopédicos, conhecimentos de diferentes gêneros, e familiaridade com muitas ocorrências desses gêneros, muitos textos em particular, para que suas produções não terminem por se revelar meras paráfrases de narrativas modelares. E isso só se faz com muita leitura e com a possibilidade da autoria, na recepção e na produção de textos, com a familiaridade com textos diversos, representantes de diferentes gêneros da ordem do narrar.

Muitos estudos existem sobre histórias e sobre o percurso da criança para se apropriar do discurso narrativo99. Não nos cabe aqui aprofundar esses estudos, mas cabe algumas considerações. Histórias dizem respeito a um mundo inventado, criado ficcionalmente e tendo uma estrutura bem característica (no mínimo, uma introdução, um conflito, a resolução e o desfecho; com personagens, tempo, ações, eventos e narrador). São geralmente diferenciadas do relato, narrativa que envolveria experiências vividas ou por outros relatadas, tendo compromisso com uma “verdade”, podendo tomar a forma de relatos interativos, com a participação dos interlocutores. Evidentemente podemos conceber, entre esses dois gêneros de narrativa, outras possibilidades, como o relato de casos imaginados, as histórias com estruturas menos fixas. Perroni (1992), num estudo sobre o desenvolvimento do discurso

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Isso, evidentemente, em contextos familiares e escolares nos quais essa prática é comum, favorecendo o letramento.

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Alguns desses estudos sobre as histórias podem ser encontrados em: Bastos (1985), Rego (1986), Perroni (1992), Fayol (1994), Cardoso (2000), Spinillo (2001), Goulart (2001).

narrativo oral, fala em “casos” que, sem o compromisso com uma estrutura fixa, nem com a verdade, cria uma realidade fictícia inspirada em experiências vividas ou possíveis de serem vividas.

Histórias, relatos e casos, no entanto, não esgotam as possibilidades de gêneros de estrutura narrativa (teríamos ainda os vários tipos de conto, fábula, lenda, crônica, romance, sem contar as histórias em quadrinhos que são narrativas gráfico-visuais). Nem todos esses gêneros são tão codificados a ponto de não se misturarem eventualmente, seja no processo de apropriação da linguagem, seja no uso e na experimentação de diferentes possibilidades de contar. Construindo mundos ficcionados, “mundos possíveis” (e impossíveis), o tempo, o espaço, as ações, reconstituindo o passado, crianças escrevem histórias misturando formas de dizer, misturando fantasia e realidade, para contar coisas que viram, ouviram, viveram, imaginaram. Olhar as histórias das crianças de uma perspectiva positiva, para, a partir delas, afinar a capacidade de distanciar-se, de criar mundos inventados, mas verossímeis, internamente coerentes100, de construí-los através da forma, da linguagem, parece constituir-se em um caminho para aprender a produzir textos narrativos em vários gêneros, aprender sobre suas estruturas, suas características, tipo de linguagem e temática específicas, suas possibilidades expressivas.

Um outro aspecto que é importante salientar, no entanto, é que o discurso narrativo oral, configurado como um relato interativo, produzido numa situação imediata tem suas particularidades, diferentes das do discurso narrativo escrito. Na narrativa há uma relação de disjunção entre o mundo de referência da situação de produção imediata e o mundo de referência do texto, mas no caso do relato interativo, há uma relação de implicação em relação ao ato de produção e, na narração propriamente dita, há uma autonomia em relação ao ato de produção (BRONCKART, 1999), o que cria um tipo de linguagem diferente da do relato interativo. Aprender sobre essas particularidades é fundamental, mas não de modo rígido, estanque, pré-fixado, pondo em risco o querer dizer, o desejo de escrever, de contar, de relatar. Poder refletir sobre esses aspectos – as particularidades da escrita, dos gêneros escritos e orais, dos diferentes gêneros da ordem do narrar, a heterogeneidade constitutiva do oral e da escrita – à medida que se lê e produz histórias, relatos, escritas, parece mais razoável do que apresentar os gêneros modelares como únicas formas de contar. Os modelos, entretanto, são importantes para consolidar os conhecimentos a respeito das características genéricas, que permitem que reconheçamos um gênero textual como tal, como “formas relativamente

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A verossimilhança interna diz respeito à conformidade com os postulados hipotéticos construídos pelo mundo narrado, ou seja, à coerência dos elementos estruturais da narrativa.

estáveis” (BAKHTIN, 1994) que tomam os enunciados. Os gêneros são mutáveis, flexíveis, mas têm um grau de estabilidade. O gênero define e é definido pelo objetivo do texto, pelo que é possível ser dito, pela composição e estrutura e pelo estilo.

Por outro lado, entretanto, por que não pensar a produção de histórias sem a fixidez da classificação genérica mais específica, em que se possa não só reproduzir, mas produzir formas, a criança podendo exercer suas possibilidades narrativas, ainda que inicialmente misturando a realidade dos relatos com a fantasia dos contos de fada, o tempo passado com a linguagem moderna, o tempo verbal presente com universo ficcional de outro tempo, a ordem do narrar com a ordem do expor, do comentar, o “era uma vez” – que nos joga normalmente para o espaço da fantasia – nos levando para relatos realistas, modernos? Sem descartar o papel da aprendizagem gradual da linguagem própria a cada gênero de tipo narrativo, porque produzir histórias com temas livres e sem consignas restritas não pode ser tomado como um modo de ir se constituindo como autor, de ir integrando aos poucos elementos necessários para organizar o discurso escrito, mas também de ir aprendendo a garantir – a criança, não o professor – os efeitos de sentido que pretende que seu leitor produza na leitura? Por que não pensar na produção de histórias como sendo potencialmente o espaço do experimentar a partir das referências e do repertório de cada um para então ir gradativamente consolidando formas mais estáveis de narrar? Por que não pensar essa prática, justamente, como uma prática na qual as crianças podem escrever no formato que querem, utilizando os recursos que querem e dispõem em seu repertório, experimentando os conhecimentos da língua, dos textos, da própria superestrutura narrativa, de que vão se apropriando, como um momento em que podem usar conhecimentos gerais, enciclopédicos, conhecimento lingüístico-discursivo, conhecimentos dos textos e conhecimento intertextual para produzir suas narrativas?101 Uma pedagogia da escrita que possa ao menos partir dessa possibilidade rumo a apropriações cada vez mais amplas parece favorecer a ampliação dos repertórios e não uma fixidez em formas can^nicas, estruturas prévias, que por vezes podem enrijecer os textos, homogeneizar os discursos.

Como não se trata de desprezar o trabalho com os modelos – nem poderia – essa digressão certamente dialoga com práticas de ensino que tomam os textos modelares de modo muito rígido, cuja objetivação e naturalização termina por transformá-lo em pura forma lingüística e estrutural, desaparecendo as práticas de linguagem, a comunicação de fato, a

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A produção de textos em geral, de histórias, com tema livre ou não, depende desses conhecimentos que devem ser mobilizados seja a cada produção, seja no contexto mais amplo das experiências de leitura das crianças.

situação comunicativa, o querer dizer algo. Muitas vezes, por trás da intenção de promover que seus alunos escrevam, o professor está, na verdade, exercendo, ou tentando exercer um forte controle sobre sua atividade de escrita – se não através do conteúdo, através da avaliação formal impositiva e do controle da textualização em esquemas pré-formados – conduzindo o texto para um sentido fechado, previsível, uma organização codificada. Não sendo tratado como autor, como sujeito se constituindo pela linguagem, como sujeito aprendendo a enunciar, a dizer, a constituir-se como locutor e a relacionar-se com seus interlocutores, o aluno tem sua produção tomada apenas como tarefa, como produto a ser avaliado por um professor que tenta controlar os efeitos de sentido do dizer de seus alunos.

Sem pretender fechar definitivamente essa questão do gênero “histórias”, considerou- se, nesta pesquisa, a escrita de histórias como fazendo parte das práticas narrativas dos alunos, presentes desde cedo em seus repertórios de produção e recepção. Inclusive, no geral, apresenta-se como uma prática apreciada e muito solicitada por eles.