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PARTE III – A LEITURA DA LEITURA C APÍTULO IV: E SCREVENDO

1. A Produção e Revisão Textual na Escola

Na concepção de linguagem que sustenta a discussão deste estudo, escrever, produzir textos, ainda que em contexto escolar, supõe uma situação de interlocução em que essa produção se justifique e faça sentido. É certo que, nesse contexto, a linguagem e seus usos são tomados também como objeto de conhecimento e não apenas “usadas” com fins interativos – na escola, escrevem-se textos também para aprender a escrever. Porém, resumindo-se a produção de texto a essa finalidade, teremos situações artificiais de escrita e gêneros textuais escolarizados, que não ensinam sobre os usos da escrita e sobre sua dimensão dialógica. Tomando-se a escrita como prática social e discursiva, a sala de aula deixa, de qualquer

modo, de ser mero espaço no qual os sujeitos cognoscentes interagem com o objeto de conhecimento e passa a ser o lugar onde interlocutores interagem, negociam sentidos e interpretam suas leituras e escritas. É a questão do contexto de produção, da situação de interação comunicativa – como já explicitado anteriormente – que diferencia a escrita de redações para a escola e a produção de textos na escola (GERALDI, 2000). A “produção de textos” para se constituir como tal é, segundo Geraldi (1997), orientada pelos parâmetros da situação: o que se tem a dizer; para que, com que função; para quem, qual o destinatário; em que situação (qual as relações entre locutor e interlocutor? Quais são as expectativas sociais e escolares daquela produção?). Enquanto a “redação escolar” aparece como um exercício de mostrar ao professor o que se sabe e não se sabe sobre a escrita, a “produção de textos” supõe uma dimensão de projeto que configura esses parâmetros da situação, supõe a interlocução com um leitor presumido e, de certo modo, presente, na produção mesma do texto. Toda e qualquer produção de discursos, além de visar um interlocutor, tem sempre uma função social e um objetivo, uma motivação: informar, emocionar, convencer, argumentar, divertir, etc. Se assim o é fora do contexto escolar, assim deveria igualmente ser na escola, embora, na escola, se produzam textos também para aprender a produzi-los, se escreva para aprender a escrever.

Diante dessa perspectiva interlocutiva aqui reafirmada, faz-se necessário delinear o caráter da situação imediata de produção e de revisão propostas no âmbito desta pesquisa, o contexto de produção dos textos que fazem parte do corpus e conhecer um pouco as circunstâncias de produção e revisão de textos na escola onde se estabeleceu esta investigação. As informações aqui relatadas são frutos de entrevistas com a Diretora, com a Coordenadora Pedagógica responsável pela área de Língua Portuguesa e com a professora do grupo, assim como das observações da própria pesquisadora. Esses dados fornecem uma idéia geral do trabalho desenvolvido na escola em termos de produção textual, revisão e reescrita94.

Ao menos dois projetos permanentes garantem, de modo inequívoco, nesta escola, a produção e circulação de textos produzidos pelas crianças. Um dos projetos é ligado ao estudo de diversos gêneros textuais, especialmente os literários, para a produção de livros individuais e coletivos que culmina com a Feira de Livros da escola. A Feira é um evento anual que acontece geralmente no primeiro semestre no qual as crianças expõem seus livros para os colegas e professores da escola, pais e convidados. A leitura, estudo e produção de textos em diferentes gêneros literários permitem que as crianças escolham, dentre as produções, o que

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Não nos referiremos aqui a “condições de produção” dos textos na escola visto que esse conceito tem um uso bastante definido, particularmente no âmbito da Análise do Discurso, necessitando uma abordagem mais ampla do que o proposto nessa pesquisa, que se resumiu a um breve levantamento das circunstâncias de produção de textos na escola estudada.

querem transformar em livros ou o que produzir especificamente para a Feira. A leitura e o estudo de textos diversos têm dado origem também, recentemente, a um sarau literário, com a leitura de textos literários de autores diversos e de textos das próprias crianças. A mobilização em torno da Feira é grande e os textos produzidos circulam bastante na sala de aula antes da circulação mais ampliada. Muitos desses livros constituem acervo da escola e são utilizados por outros grupos, por outras crianças, nos anos subseqüentes95.

O outro projeto permanente é a produção da Apostila de estudos – que pode ser uma ou duas durante o ano. Como a escola não adota livro didático, os alunos estudam os conteúdos de Ciências e Estudos Sociais a partir de pesquisas em fontes diversas, leituras de textos, artigos de revistas, de aulas expositivas, material videográfico, enfim, uma série de recursos que desencadeiam produções escritas. Cada turma produz seus textos a partir dos estudos desenvolvidos os quais farão parte da Apostila do grupo. Trata-se de produções individuais, coletivas, em duplas ou produções individuais que o professor edita, juntando partes de textos das diversas crianças. Nesse processo, ocorrem retomadas, seja do conteúdo – para precisar um conceito, esclarecer uma noção que não ficou clara, rever uma discussão – seja da forma. De qualquer modo, o trabalho de retomada dos textos, muito rico nesse contexto, pode ser ampliado para que as crianças tenham uma maior participação na composição das versões definitivas, a partir de releituras, reescritas, compilações. Muito trabalho de compilação e edição que resulta no produto final fica, ainda, da forma como é encaminhada a produção da Apostila, a cargo do professor. A produção textual para esses eventos, por sua dimensão de projeto de escritura, justifica as atividades de revisão e reescrita, bem acolhidas pelas crianças, nesse sentido. O comprometimento muito maior com esses procedimentos nessas situações é atestado pela professora e confirmado pelas crianças nos seus questionários. A situação comunicativa que enquadra a produção escrita, nesse caso, é extremamente marcada, sendo a retomada dos textos justificável nesse contexto de produção.

A prática de revisão e reescrita acontece também fora do contexto da Feira do Livro e da Apostila, como a revisão de textos do colega, a reescrita de um texto próprio, escrito há algum tempo, com possibilidades de modificação em diversos níveis (desfecho, título, circunstâncias, partes maiores etc). São propostas atividades individuais, em duplas, em pequenos grupos e coletivas, com a professora conduzindo, “orquestrando as vozes” do grupo. Mas parece que a freqüência não é grande – pelo menos uma ou duas vezes por mês, segundo informação da professora – e as circunstâncias de produção são pouco definidas, sem critérios

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Não foi possível investigar qual o estatuto dado a esses textos, no sentido de que, embora se inserindo em gêneros literários, são textos de crianças-aprendizes e não de escritores de literatura.

que justifiquem necessariamente a retomada dos textos. Como se as crianças revisassem e reescrevessem apenas para aprender a escrever, a revisar, a reescrever – o que, embora tendo o mérito de tomar a produção de texto como um processo de construção, de retomadas, ainda não situa essas práticas no contexto de uma situação que as justifique, dando sentido real à sua retomada. A produção de diferentes gêneros textuais e a circulação dos textos, no entanto, é uma preocupação constante e, embora ainda incipientes em alguns aspectos, têm sido objeto de discussões, buscado-se uma maior consistência e clareza de objetivos.

O trabalho em parceria, por sua vez, é proposto na escola em todas as áreas. Freqüente é a criação de enunciados matemáticos pelos alunos assim como sua revisão e reescritura conjunta, considerando as relações matemáticas e a organização textual. Aliás, a escrita de textos é um dos aspectos que garante a interdisciplinaridade, pois em todas as áreas, o texto é trabalhado, na medida do possível, enquanto textos. Entretanto, as atividades de revisão e reescrita textual em diversas modalidades podem ser ampliadas na escola a partir de uma maior compreensão de seus objetivos, funções, alcances e da consideração mais sistemática de aspectos que dizem respeito ao funcionamento dos textos e à produção situada dos discursos.