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PARTE III – A LEITURA DA LEITURA C APÍTULO IV: E SCREVENDO

4. Leituras e Releituras, Revisões e Correções

Percebi uma resistência, uma “preguiça” quase generalizada em atender à solicitação de leitura do texto ao final da escritura, sobretudo por parte dos meninos. No geral, o faziam – se é que faziam mesmo – sem muito engajamento, lendo as palavras postas no papel como se não fizesse sentido reler-se a si mesmo e corrigiam, quando muito, um erro ortográfico ou outro. Alguns alegaram que relêem à medida que escrevem, para controlar a continuidade e que, portanto, não precisariam reler. Registrei algumas falas nesse sentido, pois exprimem idéias sobre a releitura e a revisão, algumas das quais, retomei na conversa final com o grupo, comentando suas respostas ao questionário.

- “Ah, que preguiça (de reler)! Para que?”

- “Ah, eu não preciso reler, fui eu que escrevi. Eu sei o que tá escrito!”

- “Eu nem preciso reler, pois vou relendo cada parte, toda hora, para me lembrar do que já escrevi, se não, não me lembro”.

Diante do comentário de um colega sobre as rasuras do outro, uma terceira criança disse:

- “Rasura não é só erro não. Rascunho também serve para a gente mudar de opinião”. No que outra já emendou:

- “É, eu mesma mudei o título de minha história no meio, eu achei um melhor”.

Como as respostas ao questionário indicaram, há uma tendência de reler/revisar apenas em situações de avaliação, em contexto de projetos mais amplos nas quais essa prática já está consagrada, como a Feira de Livro e a produção da Apostila, ou por solicitação explícita do professor, quando há sempre um pouco de resistência de algumas crianças. Creio que a professora, orientada pela coordenação, insista na releitura e revisão dos textos em geral (na reescrita de todo o texto, apenas quando é o caso), entretanto, parece faltar, na escola, uma maior sistematização e consistência nesse trabalho. Revisar, aí, aparece como uma conseqüência natural do reler-se, nem sempre recebendo uma atenção específica, um “debruçar-se”, uma sistematização no trabalho com esse procedimento, ficando, muitas vezes, meio a cargo das próprias crianças sobre os aspectos a serem revistos.

A partir do que foi exposto nas entrevistas, pode-se constatar que há uma reflexão na escola sobre reescrever apenas em situações nas quais se justifique a reescrita (no sentido de passar a limpo) e também a respeito de que aspectos priorizar. As consignas de revisão incidem, sobretudo, sobre a ortografia e a pontuação e também sobre a “clareza das idéias”. As crianças são solicitadas a reler e mudar “o que não está bom”, prestando atenção nas partes que podem estar confusas, pouco claras no “texto como um todo” – segundo a fala da professora. A orientação parece ser muito geral e a solicitação meio vaga, faltando, talvez, clareza de objetivos e conhecimentos mais específicos a respeito da construção da textualidade. Após solicitar a leitura das crianças ao final da produção, a professora lê, na hora, na medida do possível, ou em outro momento, ou eles lêem para a professora, que faz indicações.

A revisão do professor, ou correção, é efetivada de várias formas nessa turma A professora pode indicar aspectos ou passagens que precisam ser revistas ou corrigidas colocando um traço em baixo da palavra ou trecho; pode reler junto à criança, questionando-a na hora e pedindo que tente refletir sobre os aspectos que mereceriam ser retomados; pode ainda fazer uma correção mais generalizada, indicando o tipo de erro ou problema que é freqüente no texto solicitando que a criança releia prestando atenção exclusivamente nesse aspecto; pode apontar o erro específico: palavras que escreveu mais de uma vez de duas formas diferentes, por exemplo; pode apenas relembrar à criança aquele seu “erro freqüente”, que aparece sempre em seus textos.

Seguindo a classificação dos tipos de correção sugerida por Serafini (2001) – correções indicativa, classificatória e resolutiva – nota-se que a professora utiliza, sobretudo, a correção indicativa que, segundo a autora, “consiste em marcar junto à margem as palavras, as frases e os períodos inteiros que apresentam erros ou são pouco claros” (2001, p.114). O professor, nesse tipo de correção, geralmente só indica, deixando a alteração para o aluno, mas pode fazer correções ocasionais por conta própria. Note-se que a professora, no caso, faz as indicações seja por escrito, seja oralmente, já que a correção se dá, muitas vezes, logo após a escrita do texto, junto à criança. A correção classificatória, que consiste na identificação precisa dos erros através de uma classificação dos seus tipos através de uma legenda ou símbolos codificados, exige certo domínio da metalinguagem. Esse tipo de correção não é utilizado na escola, porém, quando a professora indica o tipo de problema que é freqüente no texto de seu aluno, pedindo que ele o releia focalizando esse aspecto, de certo modo, promove uma revisão a partir de uma indicação classificatória, embora não pontual e não necessariamente usando uma metalinguagem técnica. A correção resolutiva – que não é

praticada na escola a não ser na edição de alguns textos para a Apostila de estudos – consiste em corrigir todos os erros, reescrever palavras, frases, trechos, tentando interpretar as intenções do autor, mas, de fato, impondo ou sugerindo uma forma, segundo as normas gramaticais e o que é aceitável de acordo com o ponto de vista do próprio professor. É um tipo de intervenção que se dá no próprio corpo do texto do aluno.

Estudando a reescrita de redações solicitadas explicitamente por um leitor específico – o professor – Ruiz (2001) analisa os efeitos de diversas modalidades de correção/revisão, constatando e propondo uma outra modalidade, não prevista na tipologia de Serafini (2001), que chamou de correção textual-interativa. Trata-se de comentários mais longos incidindo sobre aspectos menos pontuais, e que, por essas duas razões – por serem longos e não pontuais – são dispostos na seqüência do texto do aluno, em forma de “bilhetes”, e não nas margens ou no corpo do texto. Esses bilhetes, segundo a autora, tratam de aspectos mais gerais, dando indicações, falando explicitamente de algum problema a ser revisto, elogiando o empenho do aluno, incentivando-o à reescrita de trechos, ou falam, metadiscursivamente, da própria correção do professor. A revisão de aspectos macro-estruturais é favorecida pela correção textual-interativa que, muitas vezes, funciona apenas como comentário para incentivar a retomada do texto pelo aluno – e nesse sentido mais próxima da revisão que da correção propriamente dita. Segundo a autora, essa modalidade permite que se comente não apenas o modo de dizer do aluno, mas seu próprio dizer, o professor podendo se colocar no lugar de leitor do texto, até mesmo de co-autor, para além de sua função de avaliar e aferir normas. Esse tipo de “correção” seria mais produtiva para tratar a textualidade e os aspectos discursivos do texto e condizente com a perspectiva de linguagem como interlocução.

Embora a professora da turma não utilize essa forma de revisão a partir da leitura dos textos das crianças, ela faz algo semelhante ao tecer comentários orais, individualizados, durante ou imediatamente após a produção dos textos. Pra corresponder a essa modalidade, no entanto, seria necessário desenvolver um “olhar” que, além de considerar a relação singular da criança com a produção de linguagem, focalizasse a textualidade e os aspectos discursivos e não apenas tratasse de aspectos formais e/ou a vaga “clareza de idéias”. De qualquer modo, cabe ressaltar que há uma preocupação em proceder a uma intervenção que seja produtiva e cuidadosa com a autoria da criança; cada escrito é tomado como único, sendo as consignas de revisão e reescrita feitas “sob medida”, considerando cada criança e o grupo.

Para que certos elementos da textualidade se tornem observáveis para as crianças, é necessário um trabalho mais preciso do professor, no qual se explicite mais, em suas intervenções – nas revisões coletivas e individuais ou duplas – os tipos de aspectos que

podem ser revisados em micro-estrutura e macro-estrutura. A idéia da escrita como algo da ordem da inspiração e como ato monológico pode levar os professores a interferirem apenas no final e não no processo de feitura dos textos dos alunos – indagando, provocando, levantando hipóteses sobre o que escrevem, colocando-se como leitor, indicando rumos, fazendo sugestões, enfim, participando do processo de escritura como co-autores, comentadores. Ora, pensar, aprender, implica também em processos irredutivelmente singulares, mas aquele que pensa e aprende não recomeça do zero, não cria ex nihilo. Singular não significa solipsista e, nesse sentido, a classe pode ser um lugar de uma produção coletiva que é incessantemente recuperada, redita, reapropriada, utilizada como repertório na produção discursiva dos sujeitos. Ou não. Aprender a escrever, a produzir textos é também aprender que a escrita não é silenciosa, que não é monológica como se poderia pensar já que autor e leitor estão distanciados no espaço e no tempo. A retomada dos textos se daria nesse espaço de “barulho”, trocas e alimentação constante de vozes.

Embora os aspectos ortográficos não sejam o foco da pesquisa, são abordados aqui na medida em que estão no horizonte de preocupação das crianças. Numa análise preliminar dos textos, constatou-se que as crianças ainda hesitam em muitos pontos e que poderiam se beneficiar de um trabalho reflexivo envolvendo as diferentes relações fonográficas e regularidades ortográficas (MORAIS, 2002, FARACO, 2000). Cito como exemplo a dificuldade em grafar regularidades morfossintáticas, como o “r” no final do infinitivo dos verbos ou o uso de “ão” em vez de “am” para as formas verbais; dificuldade com as regularidades contextuais, que envolvem correspondências fonográficas mais ou menos previsíveis; dificuldade com as relações arbitrárias. Como é o trabalho com a ortografia na escola? Apenas correção incidindo sobre palavras isoladas, sem esforço de reflexão sobre sua grafia? Observação de regularidades? Procura-se tornar observáveis certos aspectos das relações fonográficas mais regulares? Não deixa de ser relevante refletir sobre como o trabalho com a ortografia se articularia com e incidiria sobre os modos de revisar das crianças, já que constitui um dos aspectos integrantes da produção e revisão de textos escolares e envolvido na discussão sobre as características peculiares do rascunho escolar.