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PARTE II – AS REPRESENTAÇÕES DAS CRIANÇAS

3. Pensando e Repensando

Como complemento do trabalho de levantamento das representações das crianças a respeito das atividades de revisar e escrever e dos usos do rascunho e, sobretudo como fechamento e devolução ao grupo do trabalho desenvolvido, foi proposto, no último encontro com a turma, uma retomada das questões do questionário e uma breve análise de rascunhos de adultos e de escritores, como os tinha prometido no início do processo de investigação. O que se segue são trechos das discussões e algumas considerações em torno dessa atividade. Trata- se de diálogos que vão, inclusive, ajudando a dinamizar coletivamente as representações. A conversa é interessante como complemento do levantamento das representações do questionário, na medida em que escrever sobre “escrever” é já diferente de falar sobre “escrever”, ainda mais falar coletivamente, construindo um discurso que se complementa, que se constrói intersubjetivamente, que avança para além do que “se escreve sobre”, do que se escreve sozinho91.

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As respostas às questões do questionário encontram-se no Anexo B, organizadas a partir de dois critérios – as respostas de cada criança e as respostas a cada questão.

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Uma possibilidade metodológica poderia ter sido também ter feito entrevistas individuais em vez de questionário, ou paralelo a ele.

A idéia dessa conversa final era ter um pouco mais de aprofundamento em algumas questões do questionário e dar um retorno para o grupo sobre o que observei em suas respostas, já trazendo uma contribuição para a discussão sobre a revisão, a reescrita, o rascunho, a escrita como trabalho, como processo permanente de elaboração e reelaboração. Evidentemente, para haver um retorno efetivo, seria necessário um trabalho pedagógico sistemático, assim como, para avançar, seria necessário avaliar o impacto dessas intervenções sobre o “retorno ao próprio texto”.

Começamos lembrando da primeira questão do questionário, sobre os escritores, dizendo- lhes que a maioria das crianças do grupo havia respondido afirmativamente, ou seja, que os escritores também faziam rascunhos de seus textos, que revisavam e reescreviam. E perguntei, querendo aprofundar mais a discussão:

- (Pesquisadora) Eles revisam por que?

- Se não o livro deles vai sair a maior parte errada92. - (Pesq) Mas será que eles erram muito?

- Não.

- Não. Mas a grande parte pode sair errada.

- Mas ele é humano. Errar é humano. Todo mundo erra.

- Se não ninguém vai entender nada. E vai ter confusão na loja de livro.

- Ah, eu acho que sei o que é. Eu acho que ele faz um papel e depois corrige e faz outro. É pra sair o melhor possível para eles e para quem vai ler.

- (Pesq) Melhor como? - Sem erro.

- De erro, de confusão. - Pra mudar.

- (Pesq) Mudar o que?

- Mudar a estória se ele quiser.

- Assim, porque às vezes, pode ter alguma informação que ele esqueceu de colocar, aí ele lê e acha enrolado.

Esse último comentário parece implicar uma idéia de que o pensamento, ou o próprio texto, está pronto na cabeça e que a informação faltante deve-se a mero esquecimento.

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E continuando...

- Ás vezes um personagem aparece de repente e a gente esquece de dizer como foi. - (Pesq) Isso, ou ele some de repente sem explicação, a gente lê e fica sem saber o que

aconteceu.

- É mesmo, isso é comum.

- (Pesq) Isso é muito importante que ele falou. Por que a gente revisa não é só para corrigir erros não, é porque escrever é como se fosse um trabalho, uma luta com as palavras, você faz, refaz, revê e não gosta e...

- ...muda tudo, é, não tem só um jeito de dizer as coisas, se não todo mundo escrevia igual.

A conversa continuou versando sobre diferentes jeitos de dizer uma mesma coisa ou mais ou menos a mesma coisa, a partir de exemplos dados pelas próprias crianças. Mostravam saber que há aspectos da escrita que são passíveis de escolha, que permitem várias opções, não sendo guiados pelo binômio certo/errado.

Retomamos ainda uma outra questão:

- (Pesq) Alguém me falou mais ou menos assim no dia da revisão: “eu não preciso nem reler tudo no fim porque eu releio toda hora pra saber o que tá escrito e continuar”. - Ah, não fui eu.

- Nem eu.

- (Pesq) Eu queria saber quem mais já fez isso ou faz isso, vai relendo aos pouquinhos e escrevendo, relendo e escrevendo para sempre saber como continuar o texto. Alguém faz? - Eu. - Eu. - Eu faço. - Eu também. - Eu não. - Eu só na prova.

- Só quando sou obrigado. - Eu faço sempre.

- (Pesq) Então você escreve tudo de uma vez só? - É. E eu sei o que estou escrevendo.

- Fui eu que falei aquilo, porque eu paro (de escrever), aí às vezes eu esqueço o que tinha na cabeça e releio uma parte para lembrar e continuar.

- Às vezes eu faço isso também, vou escrevendo e lendo.

- (Pesq) E quando vocês não terminam um texto e vão continuar outra hora, não tem que reler para saber em que pé está para saber como continuar?

- Não. - Não. - Eu leio. - Eu releio.

- Eu também. Se não você faz uma coisa que não tem nada a ver com a outra. - É, no dia que você vai continuar você não lembra mais onde tá a estória. - Nem dos detalhes.

- E às vezes, se eu for escrever outro dia, eu leio tudo do começo.

- No outro dia eu não me lembro mais de nada e se não reler, não dá, fica sem jeito. - Ah, eu só faço ler a última frase.

- Eu também.

- Mas só a última frase pode não relembrar os detalhes, os nomes dos personagens, as coisas que já aconteceram.

- Eu relembro tudo só com a última frase.

- Eu não, eu releio uma parte maior, mas só leio tudo se eu não tiver com preguiça. - Eu releio se esqueci, mas às vezes a estória está na minha cabeça e eu releio só o

pedacinho para lembrar onde eu parei.

- É mesmo, porque confunde a estória que você pensou com o que você já escreveu. Você pode se atrapalhar e pensar que escreveu uma coisa e não escreveu ainda.

- (Pesq) É, relendo dá pra controlar o que tem que escrever, o que tem ainda pra dizer. - Na matemática eu releio toda hora o problema, se não, não consigo continuar fazendo

as contas.

- (Pesq) - Reler ajuda a controlar os passos que tem pra fazer.

Esta conversa se estendeu por mais algum tempo, versando sobre questões suscitadas pelos rascunhos de adultos e de escritores que foram mostrados ao grupo. Primeiro mostrei um rascunho cedido pela diretora da escola:

- Que bonitinho! É seu?

- (Pesquisadora) Não, é de Rô93. - Menos bonitinho que o meu...

- Ah, depende, se for porque é confuso, é feio, mas é bonitinho, cheio de coisinhas. - (Pesq) ...cheio de setinhas, asteriscos, sabem o que é asterisco?

- É essa estrelinha aí.

- (Pesq) E pra que deve servir? - Não sei.

- Não sei.

- Pra dizer que tem coisa pra olhar ali. - Pra lembrar alguma coisa.

Falei do uso do asterisco e lemos um trecho para ver como ele foi usado naquele rascunho: usado para incluir um enunciado escrito fora do corpo do texto ou para deslocar um trecho para outro lugar (nesse caso tinham asteriscos numerados). Fomos analisando a paralinguagem e as crianças foram descobrindo que o que para nós parecia confuso, para o autor do texto era organizador – espécie de guia das modificações. Afinal, o rascunho é um instrumento de comunicação consigo mesmo, um guia para ajudar nas reescritas sucessivas do texto. Analisar rascunhos mais detidamente parece apropriado na tentativa de apresentá-lo como um recurso que faz parte do processo de produção textual, favorecendo assim a apropriação de diferentes estratégias de intervenção sobre eles.

Fui passando as páginas e os comentários eram muitos. - Olhe quanto rabisco aí!

- Nossa, Rô faz tanta modificação!

- (Pesquisadora) Isso quer dizer que Rô não sabe escrever? - Não.

- Não! - Nãããão!

- Ela erra demais.

- (Pesq) Será que é porque ela erra demais?

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- Não, é porque ela quer escrever o melhor que ela pode.

- Porque ela fica treinando pra ver o mais claro pra quando a pessoa for ler, entender. - Ela erra, mas ela muda pra melhor.

- Nem precisa errar pra mudar, porque Lica mesmo disse que tem várias formas de dizer a mesma coisa, então, ela muda porque acha melhor, mas não porque está errado. - Porque está feio ou confuso, talvez.

- Porque ela quer colocar outras coisas que ficaram faltando. - É.

- É. Mas pode não faltar, só ser pra ficar melhor mesmo.

- Ela fica buscando o melhor jeito, consertando, lutando com as palavras!

- (Pesq) É isso aí, buscando precisar o que ela quer dizer, buscando o jeito mais legal, enfim, trabalhando a linguagem escrita.

É preciso ressaltar que essas idéias são bem mais interessantes que muitas das que apareceram no questionário, mais presas – talvez pela própria formalidade do instrumento, seu modo escrito – aos valores cultivados na cultura escolar, que valorizam a correção. Sem contar que, naquela situação, é mais provável que busquem responder adequadamente às expectativas de quem pergunta, considerando o atribuem ser o ponto de vista da escola.

Em seguida, mostrei um rascunho meu, ressaltando a paralinguagem. Eles viram algumas diferenças na forma de anotar acréscimos de enunciados ou blocos maiores de texto. Mostrei também um rascunho que não era manuscrito, mas uma folha digitada, impressa e revisada, apresentando rasuras, anotações de margem, deslocamentos de trechos e uma série de signos. Não aprofundamos a discussão sobre isso nesse momento. Entretanto, creio que a discussão a partir desses materiais pode ser produtiva no trabalho de modificação das representações infantis sobre o rascunho, a revisão e a reescrita de textos, afinal, se analisarmos mais detidamente as operações efetuadas sobre esses textos provisórios, veremos que se trata da organização do pensamento e da forma de dizê-lo, não essencialmente de correções superficiais.

Depois de sondar a respeito do que sabiam de Cecília Meireles (“Ela é uma grande poeta”! disse uma das crianças) e mostrei também alguns manuscritos da autora (Cânticos), também com setinhas, apagamentos, substituições e asteriscos. A partir dessa conversa, as crianças pareciam mostrar mais firmeza quanto à idéia de que aqueles que sabem escrever utilizam o recurso do rascunho e da revisão. Entretanto, muito ainda seria necessário avançar para transformar de fato as representações que têm, ainda muito ligadas à questão do erro, apesar de tantas idéias interessantes sobre o uso do rascunho e a revisão.

Para finalizar, cabe ressaltar que a construção das representações sobre a produção, revisão e reescrita de textos começam, ou podem começar, muito cedo na aprendizagem da linguagem escrita. Muito antes de poderem escrever de próprio punho, ainda na Educação Infantil, em propostas de produção coletiva de textos, via oralidade, tendo o professor como escriba do grupo, é possível encaminhar situações de revisão e reescrita, com a participação das crianças, que para tal, vão usar seus conhecimentos sobre o discurso escrito, a linguagem que se usa para escrever. Nessas situações, aprende-se sobre o modo de compor textos, indo e vindo, revendo e modificando, além de afinar o olhar para ver os vários aspectos que podem ser considerados numa revisão textual, deslocando-se o foco da ortografia. O mesmo acontece em atividades desse tipo, ainda que as crianças saibam escrever de próprio punho. Assim, se vêm de uma prática que inclui tais procedimentos, certamente essas experiências serão consideradas quando da revisão e reescrita de seus textos produzidos de próprio punho.

PARTE III – A LEITURA DA LEITURA