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PARTE III – A LEITURA DA LEITURA C APÍTULO IV: E SCREVENDO

4. Escrever “para”

O rascunho que foi pedido a essas crianças, não se constitui – como um rascunho geralmente o é – em um instrumento de comunicação consigo mesmo. E isso não é sem conseqüência. Trata-se de um rascunho que será objeto de análise, rascunho para outro, para o professor, para o pesquisador – o que estabelece um outro estatuto, um outro conjunto de valores, para o rascunho, e, portanto, uma outra relação do sujeito com o ele. O estatuto do rascunho é diferente, sem dúvida, segundo a sua função – rascunho para comunicar consigo mesmo, indicando as modificações do texto; rascunho para o professor revisar, corrigir ou para analisar os aspectos a serem trabalhados; rascunho que será analisado pelo pesquisador no âmbito de uma pesquisa que terá como objeto esses textos provisórios; rascunho que, por fazer parte dessa pesquisa, será incluído em um texto acadêmico, podendo ter leitores que julgarão (segundo as crianças) suas produções. As crianças sabem disso e saber disso é saber que se escreve para alguém, para algum uso, algum propósito.

Muitos problemas de escrita advêm justamente do fato de não se pressupor a interlocução, a relação eu-outro aí presente. Como já foi dito, escrever é “escrever para”, escrever para um destinatário, para um leitor, para um professor, para um pesquisador, para uma audiência, para informar, para divertir, para emocionar, para aprender a escrever. Escrever é sempre para alguma coisa, para alguém. Nem que seja para si mesmo, em outro momento, um eu-outro ou outro-eu, nem que seja para um “alguém” indefinido. É certo que aprender a escrever supõe incluir esse “para” na tessitura que vai se construindo ao escrever.

Tornaria, entretanto, relativo essa pressuposto, pois diante da folha de papel, nem sempre se lembra de tudo isso e, ao menos ilusoriamente, também escrevemos por escrever. Também devemos poder escrever por escrever. Escrever apenas, sem pensar para que, escrever-se, deitar os ditos que se enfrasam sem amarras de gêneros, sem a égide da norma, sem a vigilância da absoluta coerência, sem a medrosa prisão do julgamento, sem exigências predeterminadas. Escrever é escrever para, mas também escrever por, com, apesar e contra o que é estabelecido, é possibilidade de criar com e contra, de tomar a palavra, tomar palavras e esticá-la, “torcê-las”, “cortá-las” e reavivá-las, se fazer sujeito da linguagem, sujeito, escrevinhador. Aprender a escrever, a produzir textos que vão-e-vêm, que se transformam, não pode se dar ao preço de “matar” meninos escrevinhadores que escrevem sem porquê.

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As considerações que se seguem fazem eco e dialogam com o terceiro capítulo da Dissertação, quando a questão a situação de interação comunicativa é abordada.

A ênfase na necessidade de uma situação interlocutiva que justifique a produção e reformulação dos textos, não implica em um enquadramento rígido e a priori das produções escritas. Orientar-se pelos princípios de uma perspectiva interativa de linguagem não significa passar a enquadrar toda produção textual na escola em situações de comunicação forjadas para justificá-la. São as diversas situações de interação que se criam no contexto social, escolar e da sala de aula, em particular, que estabelecem a necessidade da produção de determinado texto, em determinado gênero; não é a produção de um texto pretendido (pelo professor, por exemplo) que configuraria uma determinada situação de produção. Há que se ter o cuidado de não pré-determinar e forjar demais as propostas de produção textual, sob o risco, de, de novo ao avesso, artificializá-las. Afinal, escrever pode partir de uma idéia, uma imagem, um impulso, uma leitura, uma vontade de dialogar com outros textos, um desejo de dizer, uma palavra que puxa outras, uma experiência que se quer registrar, uma vontade de organizar e registrar pensamentos, um motivo difícil de explicitar...

Às vezes, os esforços em corrigir os equívocos de certas práticas criticadas podem terminar por estabelecer novos equívocos, de mesma natureza ou não. Como expresso na epígrafe desse capítulo, poderíamos dizer que há que se preservar certa naturalidade e despojamento das motivações da atividade escritural, afinal, os objetivos e destinatários de uma produção de linguagem não podem ser controlados de modo absoluto e há sempre a possibilidade de um projeto pessoal de escritura re-significar, desviar, deslocar, permear, imiscuir-se, somar-se ao o projeto coletivo configurado pela classe, mantendo relações de contigüidade mais ou menos marcadas com este, ou suplantando-o. Por que escrevemos? Nem sempre é tão fácil responder a tal questão, principalmente quando se trata de escritos mais subjetivos ou “poéticos”. Insistir categoricamente no uso da linguagem para comunicar, em sua função e utilidade, afasta usos outros, usos que se instauram na não-utilidade, na inutilidade (pelo menos do ponto de vista de uma racionalidade comunicativa), na gratuidade, no “falar ou escrever para nada”, no uso puramente fático, lúdico, poético, rizível, saboroso da linguagem. Usa-se a linguagem também para durar na linguagem, para estar na linguagem, para brincar com ela e com o outro, para durar na relação com um outro, estender-se na linguagem, surpreender-se com significantes e com seus significados inusitados, deleitar-se com ela, criar belezas a partir de outras belezas lidas ou escutadas. Preservar certa dimensão de “finalidade sem fim”, segundo a expressão kantiana relativa à arte; preservar certa dimensão de “inutilidade poética” da produção de linguagem, no geral, parece prudente, desde que não se tome essa dimensão a partir de uma visão idealista, como se não houvesse função social das produções humanas. E afinal, por que privilegiaríamos na escola apenas os usos

públicos da escrita? Usos particulares são também usos sociais da escrita e, assim, podemos conceber que escrevemos para lembrar, desabafar, desejar, controlar, ferir, se desculpar, ser aceito, sonhar, riscar o papel, durar na folha, desenhar palavras, brincar com o significante gráfico, durar na escrita, no gesto, inventar o que dizer quando se tem para quem dizer mas não o que dizer ou quando se tem o que dizer mas não exatamente a quem – usos legítimos da escrita, que não combinam muito com uma “escolarização” mas que também não ficam “do lado de fora do portão”105.

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E por falar em escolarização, digno de nota que, na escola, evidentemente, escreve-se também para aprender a escrever. E isso, embora incontornável, é, por vezes, fonte de muitas artificializações. Essa questão é bastante importante, particularmente no que diz respeito ao aprendizado dos gêneros textuais, já que pode implicar numa desconsideração das situações comunicativas e práticas de linguagem associadas aos gêneros, tomados, na escola, apenas em sua dimensão estrutural, lingüística, objetiva.