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CAPÍTULO 1 DEFININDO UMA CATEGORIA

1.1. DO MONUMENTO A PAISAGEM

Monumentos, em seu conceito tradicional, representavam obras humanas erguidas em comemoração a grandes feitos, pessoas ou crenças. Eles eram produzidos intencionalmente para que as características das gerações atuais fossem lembradas pelas gerações futuras.

“Por monumento, no sentido mais antigo e verdadeiramente original do termo, entende-se, uma obra criada pela mão do homem e edificada com o propósito preciso de conservar presente e viva, na consciência de gerações futuras, a lembrança de uma ação ou destino” (RIEGL, 2006, p.43)

No mesmo sentido, Choay (2006, p.18) traz uma definição de monumento relacionado a lembrança e emoção de uma determinada geração:

“O sentido original do termo é do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (“advertir”, “lembrar”), aquilo que traz à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva de seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma memória viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se-á monumento tudo o que for edificado por uma comunidade de indivíduos para rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas rememorem acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças [...]”.

A compreensão do termo sofreu várias alterações ao longo do tempo. Com a utilização e apreciação dos bens da antiguidade grega e romana, o monumento adquire na renascença um valor histórico, instituindo o chamado monumento histórico.

Não devemos pensar que as categorias de monumento e monumento histórico são sinônimas. Riegl (2006, p.49) mostra que o monumento é algo desejado para ser lembrando, enquanto que o monumento histórico não é projetado para este fim. Ele assume esta característica a partir do momento em que atribuímos um valor histórico, já que “[...]

não é a destinação original que confere a essas obras a significação de monumentos; somos nós, sujeitos modernos, que lhes atribuímos essa designação”.

Apesar de algumas diferenças, estas duas concepções referem-se aos elementos isolados construídos pelo homem e suas características históricas, artísticas e arqueológicas. Na enorme lista de monumentos existentes não estavam presentes os elementos naturais, as malhas urbanas de cidades antigas ou os aspectos intangíveis dos bens. Outro ponto era que as características artísticas, históricas ou arqueológicas eram observadas, sem qualquer associação entre elas.

Esta maneira de compreender o monumento passou por uma fase de consagração, concluída pela publicação da Carta de Veneza. Com o advento da era industrial e as transformações sociais e ambientais geradas, o monumento histórico passa a ser visto como algo insubstituível, onde suas perdas são irremediáveis. Os processos de industrialização foram tão variados entre os países, quanto a assimilação de seus impactos sobre os monumentos históricos, o que gerou princípios de proteção diferenciados em diversos locais (CHOAY, 2006, p.125-173). Inseridos neste contexto, as técnicas opostas de conservação dos edifícios, estabelecidas por John Ruskin5

e Violet-Le-Duc6

com base em suas realidades nacionais, e a posterior busca por um equilíbrio entre estas duas doutrinas proposta por Camillo Boito7

, contribuíram para a formação da conservação, muito próxima de como a compreendemos atualmente (MUÑOZ VIÑAS, 2005).

Com a publicação da Carta de Veneza, em 1964, há uma ampliação efetiva sobre o entendimento de quais bens devem ser alvos das práticas da conservação. O documento produzido pelos participantes do Segundo Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos procurou rever as orientações apresentadas na Carta de

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Defensor de um anti-intervencionismo radical na proteção patrimonial. Para o Inglês o trabalho das gerações passadas confere a suas edificações um caráter sagrado, onde as marcas impressas pelo tempo fazem parte de sua essência, sendo assim um erro tentar recuperar uma estrutura original. Assim, a restauração significaria a maior destruição que um edifício pode sofrer (CHOAY, 2006, p.153-159)

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O Francês defende um intervencionismo militante na conservação patrimonial, onde um edifício deveria ser restaurado a qualquer custo, em busca de um estado completo, que talvez nem tenha existido, tomando assim uma postura idealista da arquitetura (idem.)

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Um dos primeiros teóricos que tentou encontrar um equilíbrio nas propostas extremas de Ruskin e Viollet-le- Duc. O arquiteto Italiano defendeu a compreensão do monumento como um documento histórico (MUÑOZ VIÑAS, 2005).

Atenas8, de 1931, propondo novas abordagens, frente aos problemas recentes enfrentados pelas cidades.

Na Carta de Veneza, o monumento histórico é definido no artigo 1º da seguinte forma:

“A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Entende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural” (ICOMOS, Carta de Veneza, 1964, p.1)

Neste documento a compreensão a respeito do monumento se expande para um entendimento mais amplo, incluindo obras humanas de menor porte, assim como as malhas urbanas das cidades antigas. A partir desta carta há uma ampliação de três aspectos patrimoniais: tipológica, onde novas formas são consideradas de interesse patrimonial; cronológica, pois as etapas anteriormente desprezadas passam a ser consideradas dignas de preservação; e geográfica, onde a noção de patrimônio se expande para além da Europa (CHOAY, 2006).

Esta mudança de paradigma não acarreta apenas em mudanças de ordem quantitativa, mas gera a adoção de uma perspectiva diferente na abordagem patrimonial, ocasionando em novas formas de se intervir nos bens.

É importante destacar que nesta época a Europa ainda caminhava a passos lentos para recuperar a destruição causada pela Segunda Guerra Mundial. Com a destruição de bairros e até cidades inteiras, a consciência patrimonial ganhou mais força. Como aponta POULOT (2009, p.31): “essa nova consciência de patrimonialização acompanha a promoção de novas relíquias. Com efeito, em numerosos países, o patrimônio tornou-se um dos desafios do desenvolvimento cultural”.

No contexto estabelecido após a Carta de Veneza, a preservação de conjuntos urbanos torna-se possível, principalmente a partir da década de 1970 com a publicação da Declaração de Amsterdã. Neste documento, se parte de uma compreensão ampla do patrimônio construído, o qual procura abarcar os conjuntos como uma entidade cultural,

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A Carta de Atenas recomenda: ”respeitar, na construção dos edifícios, o caráter e a fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança dos monumentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de cuidados especiais” (ICOMOS, Carta de Atenas). Disponível em: http://www.icomos.org.br/cartas/Carta_de_Atenas_1931.pdf

não somente pela coerência de seu estilo, mas também pela marca da história dos grupos humanos que ali viveram durante gerações.

O reconhecimento do patrimônio cultural insere-se nas políticas de gestão dos conjuntos urbanos como algo fundamental para a manutenção da história e passa a incluir não só os edifícios isolados de excepcional qualidade e o seu entorno, mas também todas as áreas das cidades ou das vilas com interesse histórico ou cultural.

A Declaração de Amsterdã constitui um ponto central paras as políticas patrimoniais Europeias e mundiais, tendo sido grande parte de suas propostas reconhecidas no ano seguinte pela UNESCO, através da Declaração de Nairobi. As recomendações inseridas nesta Declaração se voltam para a preservação dos conjuntos históricos, numa época em que a expansão global das técnicas de construção ameaçava as características de identidade local e regional. Para evitar uma possível homogeneização dos espaços, as áreas antigas deveriam se integrar à vida cotidiana, assim como as novas criações, sem que sua visibilidade e harmonia fossem alteradas.

Contudo, apesar destes documentos possibilitarem a compreensão do bem patrimonial urbano, indissociável de seu contexto histórico e do ambiente em seu entorno, ainda persistia nas políticas patrimoniais uma forte separação entre natureza e cultura. Em 1972, com a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural, um pequeno salto em direção a resolução desta dicotomia foi dado ao se considerar como patrimônio cultural os lugares notáveis resultantes de obras humanas ou obras conjugadas do homem com a natureza. Apesar deste esforço, as questões sobre paisagem, ambiente e recurso natural ainda aguardariam para serem solucionadas (MENESES, 2002).

No texto da Convenção o patrimônio cultural está separado do natural, e a paisagem é citada apenas como algo coadjuvante, que contribui para o valor universal excepcional9. Como pode ser visto no 1º artigo, a paisagem é tratada como moldura de um bem maior:

“[...] os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência” (UNESCO, 1972)

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A compreensão do que é Valor Universal Excepcional (OUV) na própria UNESCO tem se alterado ao longo do tempo. Jokilehto (2006) mostra que os valores aceitos pela instituição na construção das significâncias dependem da tipologia do bem e da intenção das propostas.

Esta concepção dicotômica do patrimônio era o reflexo de dois movimentos que faziam parte da UNESCO: um grupo preocupado com os bens culturais que expressariam o gênio criativo humano; outro buscava a preservação dos elementos da natureza sem a intervenção do homem (RIBEIRO, 2007).

Contudo, este panorama já estava a caminho de ser superado com os debates sobre sustentabilidade iniciados em 1970 e que culminaram com a publicação do Relatório de Brundtland, onde o desenvolvimento deveria atender as necessidades das gerações futuras no âmbito social, econômico e cultural, sem comprometer as necessidades das gerações atuais e futuras10. A valorização do pensamento ambiental sustentável estimulou debates em várias áreas do conhecimento, alterando diversos paradigmas anteriores e resultando, na superação da tradicional dicotomia entre homem e natureza (ROHDE, 1994).

Em resposta a estes debates da sociedade e da observação que alguns bens poderiam ser inscritos tanto como bens naturais ou culturais, a UNESCO estabeleceu em 1992 a categoria da paisagem cultural, a qual teria como função primordial a proteção de forma integrada da relação estabelecida entre homem e natureza.

Para esta instituição, a paisagem cultural é definida como representativa do trabalho conjunto entre homem e natureza, ilustrando a evolução das sociedades e ocupações humanas através do tempo, sob a influência de oportunidades e/ou restrições presentes no ambiente natural, bem como pelas sucessivas forças social, econômica e cultural que nela interferem (UNESCO, 2008).

O diferencial desta proposta foi “[...] adotar a própria paisagem como um bem, valorizando todas as inter-relações que ali coexistem” (RIBEIRO, 2007, p.40). Desta forma, há um grande avanço no reconhecimento de que bens de interesse patrimoniais são constituídos de forma única a partir do contexto cultural e integram os elementos naturais, culturais e imateriais.

O desenvolvimento das concepções de patrimônio não termina com a categoria da paisagem cultural, frente às possibilidades de utilizar novos conceitos para a proteção dos

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O Relatório Nosso Futuro Comum é o resultado de debates acerca dos limites da produção humana e os impactos gerados sobre os bens naturais. Vários foram os momentos que contribuíram para esta discussão, entre os quais são destacados por Brüseke (1994) como anteriores ao documento de Brundtland: O Clube de Roma (1972), a Declaração de Cocoyok (1974), o Relatório Dag-Hammarskjöld (1975),

bens (RIBEIRO, 2011). O próprio conceito proposto pela UNESCO não é definitivo, gerando inúmeros debates sobre sua utilização pelos gestores do patrimônio.

Neste primeiro momento, foi apresentado como o conceito de patrimônio foi ampliado do culto ao bem isolado que separava homem e natureza, até ao estabelecimento da paisagem cultural, enquanto bem que integra vários aspectos em um só. Em seguida, veremos como o conceito de paisagem, sobretudo o elaborado pela geografia cultural, foi apropriado por algumas instituições do patrimônio e como ele pode auxiliar na conservação integrada.