• Nenhum resultado encontrado

SÉCULO XX: (DES) encantos modernos e luta pela tradição

MAPA 1: Bacia Hidrográfica do Rio Capibaribe e principais ocupações urbanas

3.3. SÉCULO XX: (DES) encantos modernos e luta pela tradição

Segundo Rezende (1997, p. 26) o início do século XX representou para o Recife o momento mais significativo de encontro entre as tensões da modernidade44 e a luta pela tradição. “Tensões que se expressavam nos debates dos seus intelectuais, nas noticias e opiniões registradas na imprensa, no cotidiano invadido por certas invenções e hábitos modernos”.

Com a chegada do século XX a cidade iniciava sua busca por melhorias portuárias e adaptação do traçado urbano para atender as novas necessidades, impostas pela valorização do automóvel. Deste desejo, teve inicio em 1909 a reforma urbana no bairro do Recife em busca de facilitar o acesso de mercadorias e proporcionar um aumento na chegada de navios ao porto (LUBAMBO, 1988).

As ações realizadas compreenderam uma verdadeira destruição do antigo traçado urbano colonial e construção de um novo tecido urbano sob as orientações do plano urbanístico de Haussmann. Segundo Cavalcanti (1977, p. 67 - 68): “um traçado urbano, merecedor de elogios por um lado, tornou-se deveras condenável, por outro. Decretada a destruição das magníficas, históricas e artísticas construções, como a igreja do Corpo Santo, e os Arcos [...]”. Este depoimento demonstra a contradição entre os novos ares da modernidade e a tradição, expressas nas novas paisagens que foram sendo construídas.

Mario Sette (1978, p. 54-55) revela que as ações de modernização da área central afetaram não só as construções históricas ali estabelecidas, mas também os gêneros de vida já estabelecidos, expressos na fisionomia da paisagem:

“Pouco a pouco desaparecia aos olhos não um bairro, mas um cenário de milhares de criaturas no seu presente e no seu passado. [...] Comerciantes gordos de contos de réis, marinheiros de várias gradações, peregrinas do amor caro das pensões da Lingüeta, famílias modestas das habitações baratas em últimos andares de sobrados, quitandas e vendolas, quiosques e barracas, "raparigas" de fáceis leitos e pequenas pagas, arraigados moradores da freguesia por devotos do Senhor dos Passos ou da Conceição do Arco, tudo, tudo se deslocava enquanto as picaretas golpeavam e os tetos se abatiam. Os esqueletos dos prédios meio derrubados equilibravam-se, e devassavam-se interiores impudicamente: paredes com restos de pintura a óleo, outras de simples caiação, salas de visitas, alcovas, corredores, banheiros, cozinhas, mirantes, sotéias... [...] Tudo no chão. Nunca se vira uma loucura assim”.

44 Segundo Rezende (1997, p.117), baseado em diversos autores, “A modernidade [...] é um processo

Apesar das diversas dificuldades enfrentadas pela empresa responsável por executar a reforma do porto, tais como os constantes defeitos nas dragas, dificuldades de pagamento dos empregados, demora no estabelecimento das indenizações a serem pagas aos proprietários dos imóveis, as obras foram vistas como o caminho para o Recife lograr grandes progressos e vir a ser considerada “uma das mais importantes cidades de América do Sul”.45

Problemas relativos à falta de saneamento também estavam presentes no início do século XX, causando alta mortalidade na cidade e sendo também largamente publicada nos jornais de grande circulação.46 Como forma de solucionar os problemas sanitários do Recife, diversas ações foram empreendidas, culminando com a contratação do sanitarista Saturnino de Brito, responsável pela construção da rede de esgoto da cidade.

Após o estabelecimento da República, o Recife já tinha uma fisionomia de cidade moderna. Sua população em 1913 era estimada em 218.300 habitantes e entraria na década de vinte com uma população de 238.843 (REZENDE, 1997, p.32).

A cidade deixou de ter uma configuração urbana tentacular em cinco direções distintas, para apresentar uma verdadeira mancha urbana. Segundo Pontual (2001, p. 424) “o rio permaneceu marcando a fisionomia da cidade, mas os bairros perderam os limites, interligando-se, compondo uma tessitura contínua de quadras, ruas e edificações”.

Novas configurações urbanas exigiam ações para atender as necessidades de uma população crescente. Segundo Arrais (2004, p.49) o urbanismo moderno foi a solução encontrada pelos gestores da cidade para suprir os problemas sociais do Recife durante este período; urbanismo que levou a um processo de destruição monumental, seguindo de uma penosa reconstrução das áreas centrais do bairro de Santo Antônio, construindo uma paisagem formada por longas e retas avenidas, que atendia os desejos do transporte individual, em detrimento dos meios públicos de locomoção.

45 Diário de Pernambuco, 06/09/1909. Consulta realizada ao Arquivo Público Estadual constatou que as obras

do porto foram, após a inauguração oficial das atividades, noticiadas diariamente em suas páginas entre julho e dezembro de 1909.

46

Em 22 de julho de 1909 foram publicadas no Diário de Pernambuco as taxas de mortalidade da cidade do Recife entre 1 a 15 de julho do mesmo ano. Com dados organizados pelo médico Dr. Octavio de Freitas, 342 pessoas morreram na cidade, dos quais 277 na área urbana. Desse total de mortos, 21 foram causadas por efeitos da disenteria. Em 20 de agosto de 1909, os dados relativos a outra quinzena mostra que 335 pessoas vieram a falecer, sendo 276 na área urbana. Então, somente no mês de julho de 1909, 553 habitantes do Recife faleceram, indicando as péssimas condições de saúde da cidade.

Segundo Antonio Paulo Rezende (op. cit., p.57 – 90), além das reformas urbanas a luz elétrica chegou às ruas da cidade, jogos de futebol tornaram-se frequentes e concorridos aos finais de semana, o cinema invadiu o cotidiano dos recifenses criando novos sonhos, e as antigas pontes deram lugar às novas construções de concreto, sendo retirados os tradicionais arcos de suas entradas, possibilitando o trafegar dos novos carros.

Porém o encanto proporcionado pela inserção de Pernambuco na modernidade introduziu no Recife um paradoxo, que os intelectuais da época expressaram através de seus escritos. Segundo Arrais (op. cit., p.27):

“Nos anos de 1930 e 1940, os intelectuais locais reagiram contra a intervenção urbanística que modificou grandes porções da forma espacial da cidade. O remodelamento que se dirigiu para o centro da cidade foi recebido por eles como perdas irreparáveis, contra os quais eles tenderam a orientar suas ações e sobretudo mobilizar sua escrita”

Tem início o desencanto frente aos aspectos modernos, seguido da valorização do regionalismo. Vários atores utilizaram da escrita para expor suas críticas quanto as mudanças ocorridas na cidade (ARRAIS, op. cit.). Surge assim a ideia nostálgica de um Recife Antigo47 (FIGURA 12), da busca pela tradição e da valorização de uma época passada.

Figura 12: Vista de Santo Antônio, tirada do Recife em 1817.

Fonte: Ferrez, 1988, p.48

Como reflexo das mudanças, a relação entre os moradores da cidade e os recursos hídricos também foi afetada, conforme mostrou Freyre (2004, p. 71):

47

Segundo Arrais (2004, p.59 - 60) foi com a publicação do livro de Fernando Pio “Meu Recife de outrora: Crônicas do Recife Antigo” em 1934, que parece ter surgido pela primeira vez a expressão Recife Antigo para designar uma época da história passada da cidade.

“As casas já não dão a frente para a água dos rios: dão-lhe as costas com nojo. Dão- lhe o traseiro com desdém. As moças e os meninos já não tomam banho de rio: só banho de mar. Só os moleques e os cavalos se lavam hoje na água suja dos rios. O rio não é mais respeitado pelos fabricantes de açúcar, que outrora se serviam dele até para lavar a louça da casa, mas não humilhavam nunca, antes o honravam sempre. [...] Esses rios secaram na paisagem social do Nordeste [...]. Em lugar deles correm uns rios sujos, sem dignidade nenhuma”.

Outro autor que também mostrou indignação ao considerar a degradação das águas dos rios do Recife foi Vamireh Chacon (1959, p. 58 - 59):

“Constitui, pois, uma aberração que a capital de Pernambuco trate hoje tão mal seus rios. Não se satisfaz em dar as costas ao Capibaribe, pois antigamente as patriarcais casas da Madalena, Torre ou Monteiro tinham entradas pelo rio. [...] Hoje se inverteu o processo. [...] é o cúmulo suceder tal coisa”

No mesmo texto o autor vai mais além ao considerar que “Quando se fala do Recife, fala-se necessariamente do Capibaribe. Não tem sentido, portanto, o desprezo por ele. Dando as costas aos seus rios o Recife dá as costas a si mesmo” (CHACON, op. cit., p.101).

Mesmo com o contexto da degradação ambiental e das transformações modernas, a relação da cidade com as águas continuou a encantar e inspirar a população. Um reflexo disto são os diversos poemas escritos sobre a cidade e as águas, com críticas as novas características e nostalgias em relação aos tempos passados.

Manuel Bandeira, um dos autores que teceu críticas as reformas urbanas, apresentou em sua EVOCAÇÃO DO RECIFE (BANDEIRA, 1983, p.31) a cidade e a relação entre homem e água:

[...] Capibaribe - Capibaribe

Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas Com o xale vistoso de pano da Costa

[...]

Foi há muito tempo...

Ao sentimento de nostalgia se misturava o da tristeza de ver as modificações da cidade. Joaquim Cardozo (1983, p. 53-54) expressou em seu poema RECIFE MORTO este sentimento:

[...] Recife

ao clamor desta hora noturna e mágica, vejo-te morto, mutilado, grande,

pregado à cruz das novas avenidas [...]

Porém, a paisagem da cidade cuja fisionomia tinha como principal característica a mistura com as águas ainda fascinava o poeta. Em TARDE NO RECIFE (op.cit, p.55) ele mostrou como, apesar do novo estilo de vida moderno, ainda é possível admirar a beleza romântica das águas integradas à cidade:

Tarde no Recife.

Da ponte Maurício o céu e a cidade. Fachada verde no Café Maxime, cais do abacaxi,

gameleiras.

Da torre do Telégrafo Ótico

a voz colorida das bandeiras anuncia que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita; a tagarelice dos bondes e dos automóveis. Um camelô gritando – alerta!

Algazarra. Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes,

Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos

[holandeses, que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas,

que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas do [Pacífico; Recife romântico dos crepúsculos das pontes e da beleza católica do

[rio.

Carlos Pena Filho (1983, p.179-188) ao produzir um GUIA PRÁTICO DA CIDADE

DO RECIFE apresentou uma cidade que se levanta das águas, formada por holandeses,

portugueses, igrejas e boemia:

No ponto onde o mar se extingue e as areias se levantam

cavaram seus alicerces na surda sombra da terra e levantaram seus muros do frio sono das pedras [...]

Ali é que o Recife é

mais propriamente chamado com seu pecado diurno e seu noturno pecado, mas tudo muito tranqüilo, sereno e equilibrado. [...]

Alguns autores, talvez os mais envolvidos com a paisagem da cidade (ROCHA, 1967), extrapolam a associação da cidade com as águas, para mesclar sua própria vida a vida

do Capibaribe. Austro Costa (1983, p.58) chamou o rio de “meu” e atentou para a solidão de ambos em seu poema CAPIBARIBE, MEU RIO:

Capibaribe, meu rio, espelho do meu olhar, quero fazer-te o elogio mas penso: se te elogio é a mim que estou a elogiar... [...]

Capibaribe, meu rio. que vida levamos nós! Tu corres, eu rodopio... E há quarenta anos a fio: sempre juntos e tão sós! [...]

Esquecido e degradado, o rio Capibaribe fica, a partir de 1930, relegado as ocupações de baixa renda. Mucambos e mucambeiros ocupam as margens, habitando em condições subnormais, em contraste com as classes de maior poder aquisitivo da sociedade. O fragmento do POEMA (ESCRITO PARA TETOS PALAFITAS PLANTADOS NA LAMA DO

CAPIBARIBE), de Edmir Domingues da Silva (1983, p.69-70), expressa essa situação, além de

indicar a poluição das águas, antes límpidas e transparentes, agora noturnas, como uma eterna noite:

[...]

“Rio, contém as águas na vazante

que entre o rumor das sombras que se empurram estranhas residências se levantam

do teu leito de lama e agonia. Rio, contém as águas na vazante,

que homens, mulheres, velhos e crianças, compartilham da lama do teu leito enquanto ao lado os príncipes sorriem. Águas noturnas, rio, eterna noite, sobretudo as crianças, quando sofrem na completa ignorância do conforto. [...]

Nada comove as pontes. E no entanto a agonia se esconde ao lado delas, sob os tetos de zinco, na fumaça negra dos lampiões de querozene, se êles são agonia ao pé da lama, madeira pôdre, som de desespero, ai, que as cores do trópico se casam freqüentemente às cores da miséria. [...]

Ah, serpente bicéfala, cidade de esplendor e miséria inenarráveis, o seu poeta soffre ao magro chôro das crianças de lama que cultivas”.

Um dos poetas que mais se reportou ao rio Capibaribe foi João Cabral de Melo Neto que descreve a relação entre o rio Capibaribe e suas margens. Em diversos dos seus poemas, ele aponta a degradação das águas, decorrentes da forma de utilização pelo homem, como um corpo indissociável que formam paisagens diversas ao longo do Estado de Pernambuco.

Para João Cabral, em CÃO SEM PLUMAS (1983, p.134-144), o rio é “um cão sem plumas”, que flui “como uma espada de líquido espesso” através das diversas paisagens formadas por “homens plantados na lama; de casas de lama plantadas em ilhas”, que igual ao rio, eram como “cão sem plumas”, habitando as margens em mucambos, onde:

[...]

difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; [...]

No poema O RIO (op. cit. 145-153) ele lê os diversos territórios por onde o rio flui, indo do sertão até a foz no porto do Recife. Neste texto, o leitor é convidado a navegar pelas águas do Capibaribe, enquanto o autor se coloca na posição do próprio rio, apontando suas contradições expressas nas suas belezas e problemas ambientais, como pode ser constatado neste trecho do poema:

[...]

até o mar oceano para formar o Recife

os rios vão sempre atulhando. Com água densa de terra onde muitas usinas urinaram, água densa de terra

e de muitas ilhas engravidada. Com substância de vida é que os rios a vão aterrando, com esses lixos de vida que os rios viemos carreando. [...]

um menino bastante guenzo de tarde olhava o rio como se filme de cinema; via-me, rio, passar com meu variado cortejo de coisas vivas, mortas,

coisas de lixo e de despejo; [...]

Rio lento de várzea, vou agora ainda mais lento, que agora minhas águas de tanta lama me pesam. Vou agora tão lento,

porque é pesado o que carrego: vou carregado de ilhas

recolhidas enquanto desço; [...]

Mas antes de ir ao mar, onde minha fala se perde, vou contar da cidade habitada por aquela gente que veio meu caminho e de quem fui o confidente. Lá pelo Beberibe

aquela cidade também se estende pois sempre junto aos rios

prefere se fixar aquela gente; sempre perto dos rios,

companheiros de antigamente, como se não pudessem por um minuto somente dispensar a presença

de seus conhecidos de sempre [...]

A leitura da paisagem construída por João Cabral de Melo Neto apresenta o excluído, o morador do Mucambo, ao mesmo tempo em que interpreta as águas do Capibaribe em algo vivo, o rio é visto como algo lírico, mas também de dor, conforme também considerado por Freyre (2000, p. 75):

“Não é um rio apenas lírico, de serenatas melifluamente românticas nas noites de lua. Nem apenas de banhos alegres de estudantes com atrizes como outrora o Beberibe. Também dramático. Rio de afogamentos, de suicídios, de crimes. Rio de doenças que roem fígados, devastam intestinos, rasgam entranhas [...]”

Josué de Castro (1957, p.208 – 209) foi outro importante autor do século XX a considerar os aspectos fisiográficos como fundamentais na formação da fisionomia do Recife. Em grande parte de sua obra ele mostra através de uma análise crítica, por vezes poética, como a cidade foi se configurando:

“[...] ainda incerta de terra e de água – que nasceu e cresceu a cidade do Recife, chamada de cidade anfíbia, como Amsterdã e Veneza, porque assenta as massas de sua construção quase dentro d’água, aparecendo numa perspectiva aérea, com seus diferentes bairros, flutuando esquecido à flor das águas”

Segundo o autor (op.cit, p.263) “Sempre a presença da água, sempre o mar ou os rios – principalmente os rios – dirigindo a sua localização, a sua evolução e a sua direção, enfim, a sua colonização urbana da paisagem”.

Para Josué de Castro as águas em si não apresentam importância, mas sim a forma como a população se relaciona com elas ao longo do tempo construindo as paisagens. Desta forma, ele observa o desenvolvimento social do Recife a partir das maneiras como a sociedade sobrevive do rio. Com este olhar, Josué de Castro lê a paisagem do Recife a partir do contraste estabelecido entre o excluído e as classes da sociedade de alto poder aquisitivo.

Seus trabalhos enfocam os problemas de alimentação e habitação no Recife nas áreas localizadas às margens dos rios e estabelecem a “sociedade dos caranguejos”, constituída no contexto que se configura entre uma estrutura agrária feudal e uma estrutura capitalista, geradora de enormes diferenças sociais. “Estruturas que persistem no Nordeste do Brasil, lado a lado, sem se fundirem, sem se integrarem até hoje num mesmo tipo de civilização” (CASTRO, 2001, p.14).

Em suas análises, o problema das ocupações a margem do rio é vista como resultante de uma “[...] urbanização excludente, mas que deita suas raízes em um processo de espoliação rural ligado ao latifúndio da cana-de-açúcar. [...] sem esconder um certo encantamento pelo cenário grotesco dos mocambos” (LIRA, 1994, p. 52).

Para Castro (2008) o cenário dos mocambos localizados nas margens dos rios expressa o relacionamento dos moradores com os recursos hídricos, sendo fundamental para a sobrevivência desta classe social, que tiram das águas sua alimentação e moradia, como é visto no seu romance “Homens e Caranguejos”:

“Para a chuva com a saída do sol e, à luz do dia, surge nítida esta estranha paisagem do charco, mistura incerta de terra e de água, povoada de estranhos seres anfíbios – os homens e os caranguejos que habitam os mangues do rio Capibaribe. [...] Tudo ai é, foi, ou está para ser, caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela.[...] Quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela, cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, [...]. Por outro lado, o povo vive de pegar caranguejo [...] Nesta aparente placidez do charco desenrola-se, trágico e silencioso, o ciclo do caranguejo” (CASTRO, op.cit, p. 26-27).

Essa estética do caranguejo, levantada por Castro, juntamente com outros autores como João Cabral de Melo Neto, tem influencia em épocas recentes. Em uma (re)

leitura da paisagem atual, diversas movimentações culturais estabeleceram o Recife como a “Manguetown”, fundido as diversas expressões culturais tradicionais da música e folclore a críticas sobre a situação socioambiental da cidade expressas em suas leituras da paisagem através de músicas e manifestos, como os trechos abaixo:

[...]

Ô Josué eu nunca vi Tamanha desgraça Quanto mais miséria tem Mais urubu ameaça [...]48

“Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.” 49

A partir dos documentos culturais apresentados, podemos observar como a leitura da paisagem produzida no século XX valorizou a busca por uma tradição, em contraposição aos problemas gerados pelos avanços da modernidade na cidade do Recife.

A leitura da paisagem aqui construída enfocou apenas um dos eixos de interpretação possíveis. Porém, na proposta estabelecida para o trabalho, ficou claro como os recursos hídricos exercem fundamental papel na constituição fisionômica da paisagem cultural da área central, estabelecendo uma relação que vai além da fisionomia física das formas construídas, mas vincula-se estreitamente com os aspectos sentimentais e simbólicos do Recife. Esse relacionamento é tão marcante na cidade, que foi ao pouco sendo incorporada a identidade da população, já fazendo parte da memória coletiva, como foi apresentado na introdução a partir dos trabalhos de Melo (2003) e Maciel (2008).