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CAPÍTULO 2 ENTRE PROTEGER E ESQUECER: Os tombamentos aplicados no centro do Recife

2.1 TOMBAMENTOS DO ÂMBITO FEDERAL

O artigo 216 da Constituição Federal estabelece em seu parágrafo 1º que:

“O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” (BRASIL, 1988)

Apesar das diversas formas de proteção instituídas na lei, o tombamento tem sido o principal instrumento utilizado pelo IPHAN para proteger e reconhecer o patrimônio cultural brasileiro.

Este instrumento contém um conjunto de procedimentos administrativos no qual o Poder Público declara o valor cultural de um bem móvel ou imóvel, inscrevendo-os no respectivo Livro do Tombo, com base nos atributos reconhecidos como importantes para a

manutenção de seu valor patrimonial. Existindo desde o decreto lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, a organização da proteção do patrimônio histórico e artístico nacional considera em seu artigo 1º que:

“Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico ou artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei” (grifo nosso).

Observa-se que para um bem ser integrante do patrimônio histórico, ele deve obrigatoriamente estar inserido em algum Livro de Tombo, invalidando outros instrumentos como formas de reconhecimento do patrimônio nacional.

Os quatros Livros de Tombo formalizados no decreto lei são os mesmo válidos até hoje:

“1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular[...];

2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de arte histórica;

3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira;

4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.”

Ribeiro (2007, p.68-100) apresentou como a inscrição nos Livros de Tombo foi realizada pelo IPHAN sob a perspectiva da paisagem cultural, desde a criação da instituição até momentos mais recentes. Apesar de inicialmente valorizar a arte barroca e os monumentos individuais, sendo os bens inseridos em sua maioria no Livro de Belas Artes, a partir da década de 1960 as maiorias dos tombamentos foram aplicados nos conjuntos urbanos, seguindo a orientação internacional com a publicação da Carta de Veneza, inserindo os bens nos Livro Histórico e no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.

A atuação do IPHAN no estado de Pernambuco segue esta tendência. Se de inicio foram protegidas igrejas e antigas fortalezas militares, após 1968 com a proteção do conjunto urbanístico e paisagístico de Olinda houve uma mudança nas ações.

Na cidade do Recife, as ações da instituição federal mantêm a atribuição de valor baseada nos aspectos artísticos e culturais observados nos bens isolados. Com esta perspectiva foi aprovado em 14/03/1938 o tombamento da Capela Dourada, do claustro e

da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, constituindo o primeiro bem localizado na capital pernambucana inscrito em um Livro de Tombo.

No decorrer do ano de 1938 treze outros monumentos foram tombados pelo IPHAN com a inscrição no Livro de Belas Artes, dos quais apenas três foram simultaneamente inscritos no Livro Histórico. Os três bens aos quais foi atribuído um valor histórico simultâneo ao seu valor artístico foram: Os fortes do Brum e das Cinco Pontas; e o Conjunto Religioso do Carmo.

Observa-se que na década de 1930, a atuação do IPHAN na cidade do Recife voltou-se em sua maioria para os monumentos religiosos, representantes do estilo barroco, em busca de valorizar o que seria um “[...] representante de uma arte e cultura autenticamente brasileiras, construídas a partir de um modelo europeu, mas reapropriado e reinventado pelos nacionais” (RIBEIRO, op. cit., p. 73).

O tombamento da Igreja de São Pedro dos Clérigos pode ser destacado como uma das formas de valorização da arte barroca, enquanto bem de expressão tipicamente nacional. A Igreja e seu conjunto arquitetônico, revalorizados a partir dos escritos de Gilberto Freyre (2007, p.104) que considerava a construção ser “[...] uma das igrejas mais românticas do Brasil [...]” com “[...] torres, das mais bonitas que tem a cidade.”, foi inscrita no Livro de Belas Artes em 1938, porém apenas em 1978 seu conjunto foi reconhecido como de valor, indicando a tendência internacional pós Carta de Veneza.

A partir de 1949 a inserção dos bens no Livro Histórico torna-se mais comum. Ao observar o parecer escrito por Lúcio Costa para a proteção do Teatro de Santa Isabel (FIGURA 2), notamos o reconhecimento histórico e social como forma de justificar a proteção para além dos aspectos artísticos. O arquiteto afirma que o bem tem interesse artístico limitado, porém não faltaria “[...] interesse do ponto de vista histórico e social, relacionado como está com a significativa experiência americana do engenheiro Vauthier e com a própria vida e o desenvolvimento urbano da cidade.” justificando a proteção como forma de “[...] impedir as obras de adaptações agora pretendidas.”19

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Figura 2: Fachada do Teatro Santa Isabel, localizado na Praça da República.

Fonte: autor, 2011

Tombar a arquitetura religiosa continuaria a ser a principal ação do IPHAN no município do Recife. Contudo, nota-se um aumento significativo na proteção de palácios, palacetes e prédios que constituem exemplares arquitetônicos notáveis. Dentre estes exemplos, podemos destacar o tombamento do Ginásio Pernambucano, edificação localizada a Rua da Aurora, no Bairro de Santo Amaro.

Considerado pouco expressivo individualmente, o prédio do Ginásio Pernambucano foi protegido em função de seus valores “[...] ambientais, históricos, culturais e utilitários [...]” para o desenvolvimento histórico do Brasil. O parecer conclusivo, produzido pelo arquiteto Antonio Pedro de Alcântara, indicou os atributos que expressariam os respectivos valores, havendo uma longa descrição sobre a característica arquitetônica do bem20.

Dentre os atributos, é destacada pelo arquiteto a localização da edificação às margens do rio Capibaribe, a biblioteca com grande número de livros raros, o museu de

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história natural; bem como a construção em estilo neoclássico. Apesar do tombamento do edifício ser representativo da mudança de visão dentro do IPHAN ao conferir importância aos valores históricos e sociais, os possíveis valores ambientais parecem ter sido deixados de lado frente as características artísticas.

A ausência dos valores ambientais na proposta do tombamento do Ginásio Pernambuco pode ser considerada um reflexo do pensamento vigente a época da década de 1980, quando as reflexões sobre sustentabilidade e a compreensão de que homem e natureza compõem um grupo único davam os passos iniciais. Contudo, o mesmo não poderia ser admitido no que tange a proposta de tombamento do bairro do Recife, realizada em 1998.

Inscrito em 15/12/1998 nos livros de Belas Artes e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, o bairro foi considerado um exemplar único da “Paris no Brasil”, em função das reformas portuárias realizadas em 1910 que conferiram um aspecto eclético, inspirado na cidade europeia construída pelo Barão de Haussmann. Outra característica considerada foi a importância histórica dado ao conjunto, já que ele seria o primeiro ponto de ocupação da cidade, sendo um testemunho da evolução urbana e, assim, significativo para todo o País.

Apesar de desde 1987, com a publicação do Relatório de Brundtland, os discursos internacionais pregarem uma integração entre homem e natureza, compreendendo que natureza e cultura faziam parte de um mesmo âmbito e da já existência da categoria da paisagem cultural no âmbito internacional no momento do tombamento da área, esses aspectos foram deixados de lado como critério na proteção do bairro do Recife.

Mesmo que a caracterização da área de tombamento indicasse que o local cresceu “[...] à sombra do porto”, na justificativa encontram-se somente questões relativas aos valores arquitetônicos e históricos do bairro21, como pode ser constatado:

 Pela importância histórica do sítio como referencial básico de uma das cidades mais importantes dentro da estrutura urbana do país (demonstrativo do processo de evolução e transformação do sítio);

21 Urb-Recife/IPHAN (1998). Revitalização do Bairro do Recife - Proposta de Tombamento a Nível Federal. Recife: Urb-Recife.

 Pela singularidade do acervo eclético arquitetônico e urbano, único remanescente íntegro completo no Brasil do pensamento urbano e arquitetônico da “belle epoque” no Brasil (principalmente diante das perdas dos exemplares da Avenida Central no Rio e da constatação de que pouco além de alguns prédios em Salvador constituem a memória urbana das cidades brasileiras dessa tendência);

 Pela diversidade dos estilos arquitetônicos e padrões urbanos resultantes da reforma e seu impacto sobre as formações urbanas remanescentes;

 Pela importância da memória individual e coletiva inscrita nesses exemplares ao longo do tempo, notadamente aqueles gerados pelo capital comercial e financeiro que definiram e definem “a cara” do Bairro do Recife como território eminente de troca, desde a fundação da Cidade do Recife;

 Pela urgência de uma preservação que se antecipe às questões levantadas pelo recente sucesso da renovação do Bairro do Recife e pelas perdas nas quais possa-se incorrer.

Segundo Leite (2002, p.120):

“[...] a justificativa para o tombamento destaca, ante a inexistência de uma tradição colonial, aspectos que seriam constitutivos da formação “pluricultural” brasileira. O bairro, tido como um “exemplar íntegro da Paris de Haussmann” foi considerado [...] arquivo vivo e único da superposição das várias temporalidades que dominaram a história e a produção artística no Recife e no Brasil”.

Em um momento onde a proteção patrimonial ocorre pela valorização do singular e do específico, o tombamento federal estabelecido em 1998 no bairro valorizou o ecletismo, representando, na verdade, um ato político para atender as exigências do BID na inserção da cidade no programa Monumenta.

Na proposta de tombamento, apesar das referências a importância do local na memória e identidade coletiva, não houve uma consulta junto aos grupos envolvidos com o bem em busca de definir quais elementos deveriam ser protegidos com base nos significados que eles apresentam para esses grupos, deixando a definição restrita ao corpo de especialistas. Desta forma, “A dimensão da cidadania está completamente ausente na proposta de tombamento, cujo principal enfoque é a dimensão de mercado” (LEITE 2007, p.90).

Os aspectos naturais, fundamentais para a construção da fisionomia do local, não foram considerados para a proteção, apesar da existência na constituição federal de um instrumento e da referência ao porto e as águas na própria proposta de tombamento, fatores determinantes na formação do tecido urbano e expressos na paisagem. Assim, o que vemos no bairro do Recife é um “mercado de relíquias”22, resultando de um tombamento pautado em opiniões de técnicos e especialistas que colocaram em dois pontos distintos homem e natureza.