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SÉCULO XIX: Tristeza e deleite nas leituras dos estrangeiros

MAPA 1: Bacia Hidrográfica do Rio Capibaribe e principais ocupações urbanas

3.2. SÉCULO XIX: Tristeza e deleite nas leituras dos estrangeiros

O nascer do século XIX vem acompanhado de inúmeras mudanças na economia, política e vida social Brasileira. A partir da abertura dos portos em 1808, o mercado brasileiro se liberta da exclusividade com Portugal e passa a negociar seus produtos com o resto do Mundo. A chegada da corte de D. João VI ao país, associada às influências de revoluções ocorridas na Europa, gerou um intenso debate sobre manutenção da monarquia nacional, ocasionando várias revoltas que dariam inicio ao processo de independência.

Em decorrência desta mudança, os estrangeiros vindos para o território nacional observaram as paisagens e as representaram de diferentes maneiras a partir de suas referências culturais. Entre as representações, diversos foram os escritos produzidos, ao longo do século XIX, por viajantes em busca de fortuna, realização pessoal ou pesquisadores com o intuito de conhecer as características do “novo mundo”, ainda tão repleto de surpresas.

Gilberto Freyre (2007, p.122-138) confere a presença estrangeira uma importante influência na formação do Recife, a partir de marcas deixadas na arquitetura, costumes, vida social, no vocabulário e na religiosidade. Assim, estes relatos constituem verdadeiras fontes de análise e indicam de forma bastante expressiva, os modos como a população construiu seu dialogo com a natureza.

Um dos relatos mais significativos foi o produzido por Henri Koster40, viajante que veio a Pernambuco em 1809 com o objetivo de solucionar problemas de saúde. Em seu relato, ele destaca os três núcleos centrais da cidade, apontando suas principais instituições, comércio, arquitetura e características urbanísticas. A sua época, Santo Antônio já ocupava a posição de núcleo mais importante da cidade devido a presença de instituições públicas, religiosas e vasto comércio, dando inclusive nome ao Estado.41

Koster (1992, p. 83) aponta a importância histórica do rio Capibaribe, ao considerar que ele foi “[...] tão famoso na história pernambucana [...]” e destaca como as

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A justificativa dada por Koster de sua escolha por Pernambuco já é um indicador da forte inserção inglesa no Brasil do século XIX; local conhecido e destino de vários conterrâneos. Segundo ele: “Escolhi Pernambuco porque um velho amigo de família estava prestes a embarcar para essa província, e várias pessoas me haviam dado informações mais favoráveis sobre os habitantes e o clima” (KOSTER, 1992, p. 79).

41 “A vila de S. Antônio do Recife, comumente chamada Pernambuco, embora este seja propriamente o nome

vistas das construções “[...] olham as águas”. A relação entre cidade e águas também era exercida pelo abastecimento para a população, já que a “A cidade é suprida d’água transportada em canoas, de Olinda ou do rio Capibaribe [...]”.

Apesar de o Capibaribe proporcionar uma vista “[...] excessivamente encantadora, casas, árvores, jardins de cada banda. O rio faz a curva adiante e parece perder-se no meio da mata. As canoas indo docemente descem com a maré, [...] e tudo reunido forma um espetáculo delicioso” (KOSTER, 1978, p.38), havia também a ocorrência das enchentes que traziam medo a população:

“O rio transborda para suas margens na estação das chuvas e, às vezes, com grande violência. As terras, através das quais ele passa, são extremamente baixas nessa região, e a inundação é muito temida por estender-se longe e largamente. As choupanas de palha, situadas nas bordas, são sempre carregadas e todos os arredores ficam debaixo d’água” (KOSTER, op. cit., p. 39).

As cheias do Capibaribe eram constantes ao longo dos séculos. Chacon (1959, p.84-85) mostra que enchentes ocorridas em 1633, 1641 e 1650 já colocavam em risco as intervenções humanas e prejudicavam a qualidade de vida na cidade. Já Melo (2003, p.75) destacou a periodicidade das cheias do século XIX, ocorridas em 1854, 1869 e 1894, as quais seriam causadas em função dos diversos aterros realizados.

Este relato é um indicativo da relação conflitante estabelecida entre os moradores da cidade do Recife com os recursos hídricos. A necessidade de ocupar novas terras para suprir o déficit de área para construção modificou o curso dos rios, assim como a remoção da vegetação ciliar e a impermeabilização das margens favoreceram o assoreamento do leito, contribuindo para as corriqueiras cheias na cidade.

Entre 1819 e 1821 foi James Henderson que descreveu suas impressões sobre o Recife. Diplomata e estudioso das paisagens brasileiras, o inglês viu uma cidade ativa e populosa, repleta de comércio, organizações religiosas, e com um porto que estava entre “[...] as maravilhas da natureza” (HENDERSON, 1992, p. 109).

A narrativa construída por Henderson foi feita através de um percurso pela cidade, iniciado no atual bairro do Recife e indo até os antigos arrabaldes de Casa-Forte e Ponte D’Uchôa. Sua descrição destaca os diversos usos do local e a importância do rio como via de acesso aos pontos mais afastados e de recreação para todos. Essa relação também foi

representada no Álbum de Luís Schlappriz42 (FIGURA 8), onde os aspectos de Pernambuco do século XIX foram retratados, constituindo assim mais uma fonte a ser analisada.

Na figura podemos ver o transporte de pessoas, o acesso às casas localizadas nas margens, feita através de pequenas escadas, bem como a presença de canoas, descritas por Henderson (1992, p.116):

“Vêem-se inúmeras canoas deslizando ao longo do rio Capibaribe, impulsionadas com mais velocidade do que com o remo, por dois homens negros com varas [...] Uma família inteira, com mobília e todos os etecéteras, são carregados pelo rio para sua residência de verão dessa maneira [...]”

Em 1821, numa época de rebeldia e revoluções pró-independência do Brasil, chegaria ao Recife Maria Graham para realizar, segundo Mario Sette (1978, p. 40-41), um turismo a seu tempo, produzindo com base em seu olhar de nobre inglesa do século XIX uma leitura de extrema importância para a compreensão do Recife e do Brasil daquela época. Seus relatos são reveladores de uma cidade adequada para o comércio e que “[...] jamais se submeterá pacificamente a Portugal” (idem.), devido as inúmeras revoluções ocorridas.

Além das observações quanto a resistência pernambucana frente à dominação monarquista, as leituras do território feita por Graham destacaram a beleza dos aspectos naturais, a formação urbana da cidade e o seu encantamento com uma paisagem já conhecida através da leitura de relatos, mas que mesmo assim a surpreendia:

“Tudo isso eu sabia antes de desembarcar e pensava estar bem preparada para ver Pernambuco. Mas não há preparação que evite o encantamento de que se é tomado ao entrar neste porto extraordinário” (GRAHAM, 1992, p. 126).

Este relato é um indicador da importância do porto do Recife no século XIX. A nobre inglesa, apesar de acostumada a frequentar locais diversos da América do Sul, se encantou com as belezas e movimento do Recife, inclusive com seus aspectos naturais:

“[...] nada mais belo no gênero do que o vivo panorama verde, com o largo rio sinuoso através dele, que se avista de cada lado da ponte, e as construções brancas do Tesouro e da Casa da Moeda, os conventos e as casas particulares, a maioria das quais com seu jardim. A vegetação é deliciosa para os olhos ingleses. Não tenho dúvidas que os prados planos e os rios que fluem vagarosamente atraíram particularmente os holandeses, fundadores do Recife” (idem.).

42 Artista suíço que chegou ao Recife em março de 1858, acompanhado de seu irmão cônsul suíço em

Figura 8: Vista dos Caes da Ponte D’Uchôa no século XIX

Fonte: Ferrez, 1981. p.71

Novamente o álbum de Schlappriz ilustra bem o descrito na figura 9, onde podemos observar o centro do Recife cortado pelo rio Capibaribe, com pessoas caminhando por suas margens ou atravessando a ponte. Ao fundo pode ser visto uma enorme quantidade de mastros de navio, indicadores da importância do porto, uma vegetação ainda reminiscente, no início da ponte, assim como o prédio da Alfândega e a atual Igreja da Madre de Deus.

Outro viajante que representou a cidade em seus relatos foi o comerciante de algodão Louis-François Tollenare, que registrou os acontecimentos durante os anos de 1816 e 1817. O Francês era um astuto observador, interessado em botânica, e escreveu suas notas dominicais sobre a paisagem da cidade (SILVA; SOUTO MAIOR, 1992, p. 90).

Tollenare descreve os aspectos que observa com um misto de surpresa e desapontamento. Se por um lado ele encontra em Santo Antonio “[...] várias bonitas igrejas e conventos [...]” (TOLLENARE, 1978 p.22), por outro, relata o Recife como o local “[...] mais mal edificado e o menos asseado” (idem., p.20).

Figura 9: Vista da Ponte Nova do Recife

Fonte: Ferrez, 1981, p.49

Sobre os momentos de repouso, suas leituras sobre as paisagens observadas no Recife, se realizam a partir da ponte da Boa Vista, sobre o Capibaribe, ele considera o panorama como:

“[...] encantador; ao norte vê-se a cidade e os pitorescos oiteiros de Olinda; ao sul o rio Capibaribe, o aterro dos Afogados e também o oceano. Canoas indígenas, escavadas num só tronco de árvores, conduzidas por negros nus e munidos de compridas varas, cruzam-se em todos os sentidos sobre as águas mansas do rio; [...]. O golpe de vista da ponte é sempre animado; é a passagem de tudo o que vem dos sertões ou florestas onde se cultiva o algodão; à tarde é o ponto de reunião dos homens que vão ali respirar o ar fresco; as jovens e bonitas mulatas, ricamente adornadas (...), vêm ali atirar as redes da sedução; [...]”Tollenare (op. cit., p. 23).

Outra importante observação feita pelo francês foi o uso da água como único meio de prazer da sociedade, já que “[...] a cidade do Recife não oferece a nenhum estrangeiro os prazeres de sociabilidade” (idem, p. 99):

“Mas, é nas margens do Capibaribe que cumpre ver famílias inteiras mergulhando no rio e nele passando parte do dia, abrigadas do sol sob pequenos telheiros de folhas de palmeira[...]”.

Indivíduos de outras nacionalidades e expressões culturais estiveram presentes no Recife, ao longo dos séculos, lendo a paisagem e a representando através de variadas

formas43. Porém, os franceses tiveram uma das maiores participações na constituição da cidade do Recife. Na metade de século XIX, a presença deste grupo cultural passa a ter maior influência com a gestão de Francisco do Rego Barros, conhecido como o Conde da Boa Vista, político que modernizou o Recife através de ações estruturadoras realizadas por engenheiros franceses, com base em sua formação intelectual e seu contexto cultural.

Talvez o mais importante Francês que por aqui esteve no século XIX tenha sido Louis-Léger Vauthier, considerado por Gilberto Freyre (2007, p. 132) como o “[...] verdadeiro modernizador dos serviços públicos de engenharia nesta parte do Brasil”, e, conforme aponta Vamireh Chacon (1959, p. 80) “[...] um dos primeiros a ocupar-se mais seriamente do Capibaribe”.

A vinda do jovem engenheiro foi possibilitada pelo contexto estabelecido a partir da decisão do Conde da Boa Vista de solucionar os problemas de infraestrutura da cidade. “A abertura do país ao comércio exterior e o consequente contato com a cultura europeia fez com que essas elites vissem as cidades brasileiras como "antiquadas" e "impróprias”” (ZANCHETI, 1989, p. 77) e por isso diversas tentativas de construir um novo Recife foram empreendidas.

Nesse contexto, as propostas de urbanização foram estabelecidas segundo um modelo europeu, mudando os hábitos e costumes da cidade. Assim, foram construídos às margens do rio Capibaribe, na área central, o palácio do Governo, a penitenciária, o teatro Santa Isabel, assim como foram criados passeios públicos, praças e jardins ribeirinhos, incluindo alguns trechos da Rua da Aurora e da Rua do Sol (MELO, 2003, p.81).

Ao desembarcar no Recife, em 8 de setembro de 1840 as impressões de Vauthier indicavam surpresa frente a paisagem, ao mesmo tempo em que demonstrou um sentimento de estranheza frente as características do porto, como podemos constatar no seguinte relato:

“Aspecto pitoresco de Pernambuco: casas brancas, com telhados emergindo da verde vegetação. Estava longe de imaginar esse cenário gracioso. O sol, ao levantar-se, tingiu de âmbar a paisagem, de modo muito pitoresco. [...] Aspecto bastante estranho do porto. De um lado, o recife onde se quebram as ondas; do

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Gilberto Freyre (2007) destaca também a presença de Israelitas, Germânicos e Norte-Americanos como importantes grupos para a constituição Recifense. Para mais representações das paisagens do Recife através dos séculos por outros grupos culturais ver Silva e Souto Maior (1992).

outro, em quase toda a sua extensão, praias de areia ou casas construídas de modo desordenado.” (VAUTHIER, 2010, p. 83)

As relações estabelecidas entre o engenheiro francês e os aspectos naturais da cidade do Recife foram fundamentais para o desenvolvimento de propostas de organização urbana, sobretudo considerando a importância do rio Capibaribe:

“Vegetação luxuriante, mangueiras (árvore soberba), laranjeiras em profusão. Fragrâncias deliciosas pairam no ar. As margens do Capibaribe frondosas e belas. Tudo me agradava” (VAUTHIER, op.cit., p. 85).

Vauthier reconheceu a importância dos rios para a província, ao escrever em um de seus relatórios técnicos enquanto engenheiro-chefe de Pernambuco, em 1845:

“Esta província é cortada por numerosos rios, que se estendem até uma considerável distância no interior, dar-lhe-ão certamente, no futuro, um magnífico sistema de navegação fluvial, que com alguns canais de junção, estabelecerá meios de comunicação entre as diversas partes, e as províncias vizinhas” (CHACON, 1959, p. 46).

A navegação pelo rio Capibaribe por meio de embarcações modernas é um desejo antigo dos gestores urbanos do Recife. Chacon (op.cit, p. 46 - 51) apresenta uma série de leis, normas e estudos que emitiam opiniões favoráveis a esta utilização, como forma de dinamizar a economia e facilitar o transporte dos habitantes.

Os serviços de infraestrutura planejados no período da administração do Conde da Boa Vista apontavam para melhorias significativas ao abastecimento de água e locomoção da população. Foi planejado o abastecimento de água potável, além de serem construídas as pontes da Madalena, de Afogados, de Jaboatão, a ponte pênsil da Caxangá, e reformadas a do Recife e a da Boa Vista.

Como legado arquitetônico, Vauthier deixou sua principal marca na paisagem do Recife expressa no Teatro de Santa Isabel, projetado às margens do rio Capibaribe, tornando-se um dos principais pontos de lazer da alta sociedade da época. As figuras 10 e 11, retiradas do álbum de Luís Schlappriz, representam o teatro e seus arredores, indicando sua importância para cidade.

Os projetos e ideias expressas por Vauthier são reveladores de sua formação cultural. Suas experiências tiveram um papel decisivo na sua forma de interpretar e construir as paisagens brasileiras. Tendo realizado seus estudos em Paris, seu legado indica que ele considerou a importância do Capibaribe para cidade, a partir de suas experiências em uma cidade que tem como referência natural o rio Sena.

A partir dos investimentos realizados, o Recife iniciou um novo estágio em seu desenvolvimento. A cidade cresceu em número de habitantes, contando, em 1859, com aproximadamente 100.000 moradores e se “modernizou” conforme relata o francês Robert Avê-Lallemant (1967, p. 280-281):

“Pernambuco é uma cidade inteiramente comercial, embora conte com apenas 100.000 habitantes, e seja inferior em população às cidades do Rio de Janeiro e Bahia [...] Com todos esses elementos, é Pernambuco a verdadeira cidade do futuro do Brasil”

Figura 10: Campo das Princezas (Largo do Palácio) no século XIX

Fonte: Ferrez, 1981, p.47

Com o adensamento populacional, ocorreu a deterioração das condições higiênicas e sanitárias, já que não havia um sistema de eliminação dos dejetos, resultando em epidemias de cólera nos anos de 1856 e 1859, dizimando até cem pessoas por dia. O agravamento da situação gerou o estabelecimento de uma concessão para a construção de canais que levariam as águas servidas ao rio (SETTE, 1978, p.263).

Segundo Melo (2003, p.90) as relações entre o homem e as águas começaram a modificar-se drasticamente no final do século XIX, pois, até então, mesmo que não houvesse o devido respeito a esses recursos hídricos pelos senhores de engenhos, eles não o poluíam na mesma proporção que passou a fazer com o advento das usinas.

Figura 11: Vista do Recife (tomada do Teatro S. Izabel). Ao fundo Rio Capibaribe.

Fonte: Ferrez, 1981, p.55

Outra importante mudança, no contexto político nacional, com influência direta na constituição da fisionomia do Recife, se deu com o fim da escravidão. O reflexo dessa enorme massa de trabalhadores agrícolas na cidade se materializou no aumento dos mucambos as margens do Capibaribe, áreas desocupadas onde algumas residências passaram a ser construídas.

Com as reformas realizadas na área portuária, a cidade entra no século XX com outro aspecto fisionômico e econômico, alterando assim a relação com as águas, sobretudo com os rios, que passam praticamente a não ser mais utilizado, sendo, assim, esquecido pela população, com exceção de alguns poetas e cronistas.

Como apontou Menezes (1978, p.260), o século XIX pode ser considerado:

“[...] o grande século do Recife. Veremos o seu crescimento, mas também assistiremos o seu caminhar lento para a destruição que se processará nos seus últimos anos[...]”.

A partir das narrativas apresentadas, podemos ver como a relação estabelecida entre sociedade e natureza ao longo dos séculos teve um caráter conflitante, constituindo uma mistura de deleite e degradação. Estas leituras do século XIX mostram um Recife encantador que mira na modernidade, mas que começa a apresentar graves problemas socioambientais.