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SÉCULO XVI A XVIII: Leituras de um território 33 desconhecido e sua

MAPA 1: Bacia Hidrográfica do Rio Capibaribe e principais ocupações urbanas

3.1. SÉCULO XVI A XVIII: Leituras de um território 33 desconhecido e sua

dominação

Os arranjos hidrográficos, bem como a função portuária natural do Recife foram representados no foral de Olinda34, datado de 1537. Com a publicação do Tratado Descriptivo do Brasil em 1587 de autoria de Gabriel Soares de Sousa, outra descrição da então pequena cidade do Recife e sua característica portuária foi dada:

“Neste porto de 0linda se entra pela boca de um arrecife, de pedra ao sudoéste e depois norte sul [...] por esta boca entra o salgado pela terra dentro uma légua, ao pé da Villa; e defronte do surgidouro dos navios faz este rio outra volta deixando no meio uma ponta de areia onde está uma ermida do Corpo Santo. Neste lugar vivem alguns pescadores e oficiais da ribeira, e estão alguns armazéns em que os mercadores agasalham os açúcares e outras mercadorias [...]perto de uma légua da boca deste arrecife está outro boqueirão, que chamam a Barreta, por onde podem entrar barcos pequenos, estando, o mar bonançoso[...]” (SOUSA, 1938, p.21 – 22)

A partir do trecho acima destacado, podemos observar a importância dos recursos hídricos e do porto natural para a vida social e econômica na terceira década do século XVI. O rio era a principal força para moer a cana, ao mesmo tempo em que era utilizado como rota de escoamento da produção de açúcar e extração do Pau-Brasil.

Os primeiros núcleos surgiram desta função portuária, devido as águas dos rios e do mar: verdadeiras rotas e portas para o novo mundo. Se nas várzeas do Capibaribe as ocupações iriam aos poucos sendo ampliadas em função da construção de novos engenhos, na foz conjunta com o rio Beberibe um pequeno agrupamento se espremia ao sul de Olinda, num istmo com apenas 30 a 60 pés de largura (FIGURA 4).

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Território é aqui compreendido como área delimitada pelas relações humanas ocorridas em um espaço material específico (SOUZA, 1995).

34 Cavalcanti (1978, p.226) destaca que no documento onde Olinda é elevada a categoria de Vila, o Rio

Figura 4: Porto e barra de Pernambuco em 1630, circulado em amarelo.

Fonte: Menezes, 1988, p.17

Segundo Cavalcanti (1978, p.227 - 228), o atual bairro do Recife, nasceu sob o signo de área comercial, onde a dinâmica era orientada pelos produtos levados ao porto através dos rios, sendo a ocupação uma das poucas que não surgiu pela fundação de um engenho, mas a partir da função de exportar os produtos produzidos por todos os outros, localizados nas várzeas dos rios Capibaribe e Beberibe.

Gilberto Freyre (2004, p.62 - 72) registrou que apesar da ocupação adquirir uma característica urbana na foz, foi na várzea do Capibaribe onde se consolidou de forma efetiva residências que deram origem a primeira cultura da cana no Nordeste Brasileiro. A conhecida sociedade do açúcar tinha no rio um elemento essencial para a dinâmica do local, atendendo as necessidades pessoais da casa-grande e possibilitando a produção da cana. Melo (2003, p 54) contribui com esta visão ao afirmar que:

“Os rios tiveram um papel fundamental para a produção do açúcar. Isso porque eles eram responsáveis pela fertilidade dos solos de aluvião onde se implantaram os engenhos, forneciam suas águas para moer a cana, abasteciam os engenhos e eram utilizados como via fluvial, para o transporte do açúcar ao porto, onde seria comercializado e exportado. O porto, os rios e os engenhos foram fatores determinantes na formação e estruturação da cidade do Recife, pois representavam o suporte para as atividades econômicas, baseadas na exploração agrícola, assim como contribuíram para a formação da sociedade existente naquele período.”

O período entre o final do século XVI e primeira metade do século XVII foi a época na qual uma grande quantidade de engenhos seriam estabelecidos ao longo do território Pernambucano, contribuindo para a dinâmica do porto localizado ao sul de Olinda. Para Furtado (2007, p.77), este desenvolvimento foi o resultado de diversos investimentos da metrópole portuguesa em busca de superar problemas iniciais enfrentados no processo de ocupação do território.

O reflexo dos investimentos na produção nas várzeas gerou um aumento na dinâmica da área portuária. Soma-se a isto a invasão do território em 1630 pelos holandeses, proporcionando um significativo aumento nas ocupações, conforme pode ser visto na figura 5. Além disto, contribuiu com o aumento da população do Recife a decisão imposta pelos governadores holandeses de manter Olinda destruída35 (MELLO, 2007).

José Antonio Gonsalves de Mello (op. cit., p.78) mostrou que as intensas taxas de ocupação no istmo do Recife, próxima dos 5 mil moradores, foi um dos grandes problemas enfrentados pelos holandeses ao ocupar a área. Cavalcanti (1978, p.231) também considera a ausência de terras propicias a construção de novas moradias como fator para uma alta densidade demográfica e má distribuição dos habitantes. Segundo o autor, “Naquela área estava alojada uma população nunca inferior a 2.700 habitantes, o que equivale a dizer, uma média de 27 mil pessoas por quilometro quadrado”, distribuídos em torno de 130 casas e alguns armazéns.

A ausência de solo propício a construção resultou numa iminente verticalização das edificações localizadas neste território. Em uma área pequena, repleta de residentes e população flutuante devido as atividades portuárias, surge a figura do sobrado alto e magro, característico da cidade do Recife36, como alternativa para suprir a necessidade de moradia.

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Segundo Mello (2007, p.73 – 74) “A mudança da sede da Câmera representou um terrível golpe para Olinda, que, pouco a pouco, ia sendo reconstruída. Não abandonaram, porém, os da terra [...]”. A reconstrução da cidade foi desencorajada pelos holandeses, para evitar prejuízos a Recife e Maurícia, além da necessidade de aproveitar as pedras das ruínas de Olinda para as novas construções.

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“A solução para tal problema de habitação parece ter sido desde o início o sobrado. Sobrado de um e dois andares. Muitos com sótão. De 290 prédios recenseados no Recife pelo almoxarife do rei, quando da capitulação dos holandeses, cerca de 200 são de dois andares (i.é, térreo e primeiro andar) e cerca de 50 de três andares” (MELLO, op.cit., p.80).

Figura 5: Planta do Recife em 1631, produzida por de A. Drewisch.

Fonte: Mello, 1976, p.37

Ocupar de forma efetiva a ilha situada em frente ao istmo foi a alternativa encontrada para suprir a falta de espaço. O local, formado por terra firme, mangues e alagados, contava apenas com o convento de Santo Antonio e algumas poucas casas e armazéns. Apesar de sua ocupação inicial preceder os anos de 1630, seria a partir do domínio holandês que na ilha de Antônio Vaz37 se formaria um novo núcleo de habitações, composto de casas, igrejas, edifícios institucionais, construídos sobre aterros, compondo uma “[...] cidade moderna, de feitio a fugir dos moldes lusitanos. Ruas mais amplas, parques, palácios bebidos em influência renascentistas” (SETTE, 1978, p.31), conforme representado na figura 6.

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Figura 6: Mapa de Golitjha de 1648. Observasse a ocupação da ilha de Antônio Vaz.

Fonte: Menezes, 1988, p.22

As diferentes formas de ocupação dos núcleos podem ser vistas no detalhe de outro mapa de Golithija de 1648 (FIGURA 7), onde o traçado do atual bairro do Recife apresenta uma característica mais irregular, enquanto que a cidade Mauricia conta com largas ruas e algumas praças (MENEZES, 1978, p.258). Mello (2007, p. 89) contribui com esta observação ao notar que “[...] a futura capital foi iniciada com as características de cidade segundo a concepção norte-europeia”.

A verdade é que nos dois núcleos iniciais do Recife podemos ver, através das representações da época, a convivência de duas orientações urbanas distintas: “[...] a velha e tradicional diretriz lusitana, resto de uma visão medieval da cidade, e outra moderna, fruto da concepção da cidade renascentista” (MENEZES, idem.).

Pode-se observar que outra forma de relação entre sociedade e natureza foi estabelecida a partir da chegada dos Holandeses em Pernambuco. Com o incêndio de Olinda e a transferência da administração colonial para a planície do Recife, tiveram início uma série

de aterros e construções de diques, em busca de dinamizar o porto e oferecer novos locais de construção, alterando efetivamente a foz do rio Capibaribe.

Figura 7: Detalhe do mapa de Golitjha, de 1648.

Fonte: Mello, 1976, p.57

Os palácios reforçavam a relação existente entre a cidade e os rios, ao mesmo tempo em que indicavam as preferências culturais dos dominadores flamengos. Segundo Melo (2003, p. 62 – 63), as referências culturais foram determinantes na escolha da localização dos palácios, ambos voltados para o rio Capibaribe. Mello (2007, p.104) indica que há significativas diferenças entre os palácios, para além de sua função. Enquanto o palácio Vrijburg era “[...] verdadeiramente dominador, parecendo querer imprimir no espírito dos da terra a convicção da solidez com que os conquistadores se firmaram na colônia [...]”, sendo a moradia oficial e sede administrativa do governo, o da Boa Vista tem um caráter mais acolhedor e parecia “[...] receber holandeses e brasileiros em espírito de igualdade”, mantendo inclusive o nome português da construção e da ponte a sua frente38

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“E deve ser acentuado que o nome holandês que lhe é atribuído, Schoonzicht, é de pura invenção dos autores. Surge sempre nos documentos por nós examinados, de origem holandesa, com o nome de Boa Vista” (MELLO, 2007, p.111).

Neste ponto podemos observar como a paisagem é construída com base em suas referências culturais. Assim, ela “[...] não seria apenas o resultado material das interações entre ambiente e sociedade, mas também a consequência de uma maneira específica de olhar” (MCDOWELL, 1996, p. 176), que no caso holandês pode ser expressa pela proximidade com os recursos hídricos.

A descrição de Sebastião da Rocha Pita (1950, p.103) sobre a paisagem construída pelos holandeses é valiosa por apresentar como este grupo cultural se relacionou com a natureza unindo duas áreas antes separadas pelo rio, ao mesmo tempo em que construíram um local de extrema importância econômica, cultural, social e religiosa:

“A natureza as dividiu por um lagamar, que faz o rio Capibaribe, e outros mais, que ali se juntam; porém a arte as uniu com uma dilatada e espaçosa ponte, principiada pelos Holandeses, e acabada pelos Pernambucanos”

Esta dilatada e espaçosa ponte, conforme mostra o relato foi construída por Mauricio de Nassau para interligar o antigo núcleo do Recife, à cidade Mauricia, hoje bairro de Santo Antônio, facilitando não somente o deslocamento da população, mas o envio de água potável. Outro objetivo foi efetivar o desenvolvimento da Ilha de Antonio Vaz, ocupada de forma irregular até então (MELLO, 2007, p.92 - 97).

Os avanços urbanos de Nassau também levaram o Recife a vencer a península e chegar à terra firme, através de novas pontes e aterros, estimulando as ocupações no atual bairro da Boa Vista. Mario Sette (1978, p.31-32) considerou que:

“Não se precisava mais recorrer às canoas e balsas: Nassau mandara lançar as pontes de contacto entre a península e a ilha, e entre esta e o continente, a Boa Vista admirada na verdura de seus sítios, de suas estâncias, de seus caminhos [...]”

A estes dois meios de ligação, posteriormente melhorados e reconstruídos, seriam levantadas outras pontes na área central, constituindo nos tempos recentes elementos que se destacam no centro do Recife, repletos de significados diversos, formando a paisagem que representa a identidade cultural da cidade, conforme apresentado na introdução39.

Após o retorno de Nassau à Holanda em 1644, os conflitos entre portugueses e holandeses se acirraram. A instabilidade política, associada a crise do açúcar, juntamente com a perda do poder político dos senhores de engenho culminou com a Insurreição

39 O trabalho de Jorge (2007) apresentou algumas interpretações sobre as relações estabelecidas entre os

Pernambucana, em 1645, que além de construir um sentimento nacional gerou reflexos diretos na fisionomia do Recife. As construções na ilha de Antonio Vaz foram postas abaixo e reconstruídas ao estilo português, mantendo o traçado urbano regular de estilo renascentista de influência holandesa.

No final do século XVIII, a cidade possuía quase 20.000 habitantes, que ocupavam tanto as partes mais elevadas do núcleo do Recife e da ilha de Santo Antônio, evitando as inundações, como o continente, cujas áreas de manguezais, ao longo do rio Capibaribe, foram sendo gradativamente aterradas para dar lugar a habitações (GOMES, 2007, p. 100 - 101).

Apesar da relação de dominação, a natureza representada pelos rios, mangues e mar, ainda mantinha sua importância para a cidade ao servir de fonte de alimentos para alguns estratos da população. Segundo relato de Manuel dos Santos (1992, p.62), no século XVIII, “[...] era grande a quantidade de mariscos, caranguejos e camarões que os pobres e os escravos de algumas famílias abastadas retiravam dos mangues ou coroas de areia nas marés vazias”.

Nesta época coube a Domingos Loreto Couto, na sua obra Desagravo do Brasil e Glorias de Pernambuco (apud CHACHON, 1959, p.78) representar o local onde o Recife estava inserido da seguinte maneira:

“O caudaloso rio Capibaribe dilatando por este valle suas cristalinas correntes, parece que compassivo de sua sede quer sair a regalo. Occupa o centro deste ameno valle, em que se achão já fundadas mil cento e trese moradas de casa de pedra e cal, e muitas dellas de dous sobrados, feitas ao estilo moderno”.

Conforme narrado nas diversas leituras realizadas entre os séculos XVI e XVIII, os aspectos aquáticos tiveram papel fundamental na formação fisionômica da cidade do Recife. Os relatos, produzidos por colonizadores portugueses e holandeses, além de brasileiros, mostram através da leitura das paisagens segundo suas referências culturais, a busca de compreender e colonizar o território desconhecido.

No século XIX, com a abertura dos portos a outras nações e o crescimento do pensamento de independência, as paisagens do Recife passaram por transformações, se inserindo em outro contexto e constituindo um novo período das relações entre homem e natureza.