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3. NARRATIVIDADE SOFTWARIZADA NA TECNOCULTURA

3.2 Códigos, softwares e interfaces no contexto da tecnocultura

3.2.1 Dos códigos aos softwares

Partimos da visada tecnocultural para a compreensão de código, softwares e interfaces nesse contexto. Flusser (2013), em “O mundo Codificado”, previu uma relação entre homem e aparelho eletrônico em um estágio irreversível e imerso em um ambiente onde eles passariam a conviver e funcionar conjuntamente: o homem em função do aparelho e o aparelho em função do homem. Para o autor, as estruturas de pensamentos e códigos culturais mudariam completamente com a chegada e evolução da tecnologia. Isso anunciava que as superfícies dos aparelhos técnicos nos fariam enxergar as coisas do mundo e da cultura pelo viés de seu(s) código(s), e o que seria percebido sob o código da mídia se tornaria como vitrais, tornando visível apenas fragmentos do mundo. Com tal perspectiva, o que pode ser visto sempre passa pelos condicionamentos técnicos do aparelho e do programa, pois são partes de um mundo codificado (FLUSSER, 2013).

Diante de uma lógica operacional de imaginação automatizada, a reflexão de Flusser (2013) nos faz avançar em possibilidades de interação entre sujeitos no mundo codificado, mas também nos mobiliza em direção a uma cultura imaterial e memória expansível (como a do computador por exemplo). Destacando o capítulo “A não coisa”, da mesma obra, encontramos uma reflexão sobre a cultura imaterial, onde a memória do computador, hologramas e imagens eletrônicas são tomadas como uma não coisa por não podermos tatear, por não serem apreendidas com as mãos, embora estejam sempre disponíveis. Essa cultura imaterial não palpável já seria uma vivência diária, tornando-se, ao mesmo tempo, efêmera e eterna.

O ser humano, no contexto da cultura imaterial, nos termos de Flusser (2013), participa de um jogo de permutação para acessar informações e, para desfrutar de programas, é preciso pressionar teclas. Por isso o ser humano precisaria das pontas dos dedos, pois são órgãos de uma escolha, representam a possibilidade de colocar em prática decisões. Flusser (2013) chega em uma reflexão sobre como, nesse conjunto, o ser humano participa de uma relação de liberdade prescrita com estas coisas imateriais, através das pontas dos dedos.

Essa liberdade da ponta dos dedos, sem mãos, é, no entanto, inquietante. Se coloco o revolver contra minhas têmporas e aperto o gatilho, é porque decidi pôr termo à minha própria vida. Essa é aparentemente a maior liberdade possível: ao pressionar o gatilho, posso me libertar de todas as situações de opressão. Mas, na realidade ao pressioná-lo, o que faço é desencadear um processo que já estava programado em meu revolver. Minha decisão não foi assim tão livre, já que me decidi dentro

dos limites do programa do revólver. E, igualmente, do programa da máquina de escrever, do programa do piano, do programa da televisão, do programa do telefone, do programa administrativo americano, do programa da máquina fotográfica. A liberdade de decisão de pressionar uma tecla com a ponta do dedo mostra-se como uma liberdade programada, como uma escolha de possibilidade prescritas. O que escolho, o faço de acordo com as prescrições (FLUSSER, 2013, p. 63- 64).

Tais simulações de liberdade que o autor contextualiza na cultura imaterial do que lhe é contemporâneo, são possíveis de serem transpostas para o que hoje o usuário experimenta nos ambientes digitais e nos softwares. Se olharmos o Eu sou Amazônia, junto ao Google Earth, por exemplo, entendemos que o usuário passa a criar possibilidades de explorar o seu conteúdo, que pode decidir ir e vir de acordo com a sua vontade. O que acontece junto a essa suposta escolha é um desencadear de processos fragmentados que são programados para o software e que fazem com que reconheçamos tais operações através das metáforas de acesso em uma sociedade que, antes considerada mediada por códigos eletrônicos (Flusser, 2013), pode ser considerada, agora, como mediada pelo software (Manovich, 2014)

Em Manovich (2014), na obra “El Software toma el mando” (tradução para o espanhol do título original Software Takes Command), temos a perspectiva de um mundo mediado pelo software. Para o autor, os estudos do software devem investigar o papel do mesmo na formação da cultura contemporânea e, ainda, de fatores culturais, sociais e econômicos que influenciam o desenvolvimento do próprio software, assim como sua distribuição na sociedade. “O software tornou-se nossa interface com o mundo, com outras pessoas, com nossa memória e imaginação; uma linguagem universal através da qual o mundo fala, um motor universal através do qual o mundo funciona.” (MANOVICH, 2014, p. 5, tradução nossa)36. Em uma sociedade softwarizada, que tem as práticas midiáticas como valor efetivo, a relação do homem com o computador na vida cotidiana é inevitável e constante. Seja no âmbito da economia, da cultura, da indústria criativa e da política, a sociedade como um todo se molda a partir dos softwares e sua apreensão se mostra às vezes de maneira óbvia, outras de modo quase invisível.

Portanto, pensar a sociedade mediada por softwares é, frequentemente, enxergar o mundo físico sendo simulado dentro do computador. Partindo desse pressuposto, o autor

36 “El software se ha vuelto nuestra interfaz con el mundo, con otras personas, con nuestra memoria e

imaginación; un lenguaje universal mediante el cuál habla el mundo, un motor universal mediante el cuál funciona el mundo.”

faz um apanhado de “softwares de los médios” e tenta desenvolver suas especulações trazendo como exemplos softwares contemporâneos de computadores que representam os novos meios híbridos, pois combinam técnicas que antes eram vistas separadas em ambientes digitais. Para ele, isso se configura como um “novo nível na história dos meios humanos, da semiose humana e da comunicação humana, que só é possível com a softwarização” (MANOVICH, 2014, p. 43, tradução nossa)37.

Diante de um universo híbrido de simulação dos meios físicos dentro do computador, um fator presente é a sobreposição de diferentes linguagens visuais de diferentes meios, por isso Manovich (2014) fala de técnicas remixadas por outras técnicas, em que, ao olharmos os produtos do universo técnico, vemos que eles trazem em si uma trajetória desse objeto, isto é, enxergamos rastros de outros produtos, vestígios de outras técnicas. Intitulado pelo autor como remix profundo, tal característica pode ser encontrada em todas as áreas da cultura onde se entra em contato com o software. Em uma observação rápida encontramos essas características com grande expressão no ESA e GE, principalmente na sobreposição de vídeos, elementos gráficos, mapas e textos em um local que anteriormente teria predominantemente a função de exibir um mapa digital.