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3. NARRATIVIDADE SOFTWARIZADA NA TECNOCULTURA

3.2 Códigos, softwares e interfaces no contexto da tecnocultura

3.2.2 Softwares, interfaces e imagem-interface

A presença de máquinas e das mídias faz com que percebamos o mundo com outros atravessamentos, tornando os hábitos de busca no ambiente digital cada vez mais urgentes e fragmentados. Na busca por diversidade, é comum se deparar com conteúdos compartimentalizados, atualizações de softwares e aplicativos, assim como a facilidade de acesso a diversos sites através de interfaces simples. Uma possível movimentação do usuário pode acontecer de forma intuitiva, uma vez que, as interfaces gráficas são construídas através de metáforas, mas mesmo com a intuição, ele precisa de algum conhecimento prático para acessar e explorar as possibilidades do software.

Assim, vemos uma cultura, passada e presente, sendo filtrada pelo maquínico (ou computador), onde o homem se comunica por meio das interfaces: “já não nos comunicamos com um computador e sim com a cultura codificada em forma digital” (MANOVICH, 2001, p. 69-70, tradução nossa)38. Entendendo que essa relação é mediada por um reconhecimento do mundo pela interface, mas também por funcionalidades pré-

37 “Un nuevo nivel en la historia de los medios humanos, de las semiosis humana y de la comunicación

humana, sólo posible con la softwareización.”

programadas que a interface, o software e o computador possuem. Assim desenvolvemos um processo cognitivo que recai na mudança de percepção de interface pelo sujeito, em que “as técnicas de mídia estariam mais carregadas e amplificadas, seu alcance e aplicação estendidos e seus controles foram tornados explícitos, formalizados, quantificados e programáveis” (FISCHER, 2012, p. 144).

Manovich (2014) nos indaga como interfaces e ferramentas de software de criação de mídia estão moldando a estética contemporânea e as linguagens visuais das diferentes formas de mídia. Em um caminho que se constrói observando também o campo da estética e arte, Arantes (2005) diz que a interface explicita o conteúdo do trabalho artístico em mídias digitais e, ainda, que “ampliar a noção de interface para outros domínios além dos aparatos estritamente informáticos, permite-nos, assim, repensar as relações sujeito/obra da produção estética na era digital” (ARANTES, 2005, p. 170). Nesse sentido, entendemos que a estética das mídias e suas interfaces podem transformar a percepção do sujeito interfaceado, pois o modo de percepção do mundo, através da estética das mídias, desenvolve diferentes perspectivas para o trajeto de quem acessa as interfaces.

Pensar o conceito de interface requer se abrir teoricamente para noções diversas, que algumas vezes se complementam e outras divergem. Emerson (2014) após mapear diferentes tipos de interfaces - interfaces de hardware para hardware (como Joysticks), interfaces de software para hardware (como o sistema operacional), interfaces homem- hardware (como teclados, telas, e mouse) e interfaces de humano-software (como interface gráfica do usuário [GUI]) – dedicou-se a tratar dos chamados dispositivos sem interface, em seu trabalho chamado “Interfaces de escrita e leitura: Do digital ao bookbound” ( Reading Writing Interfaces: From the Digital to the Bookbound ). No livro, ela percebe que a interface, de modo geral, é o limiar que dá acesso a várias camadas (midiáticas, de informações, entre outras), mas ao mesmo que ela revela algumas camadas, pode ocultar outras.

Todavia, para Johnson (2001, p. 17), a palavra interface “se refere a softwares que dão forma à interação entre usuário e computador” e pode atuar em uma condição de tradutor, mediando uma relação entre campos, tornando uma parte sensível para a outra. Na maioria das vezes, para o autor, o “computador digital” necessita de uma auto representação, que se dá em forma de metáforas.

Essas metáforas são o idioma essencial da interface gráfica contemporânea. Como idiomas, são relativamente simples, razão por quê, para a maioria dos usuários de computadores pessoais, a ideia de

design de interface como arte legítima soará provavelmente um tanto hiperbólica. A própria palavra interface evoca imagens de desenho animado de ícones coloridos e lixeiras que se mexem, bem como os inevitáveis clichês da acessibilidade ao usuário (JOHNSON, 2001, p 18).

As metáforas ou representações mentais acompanham os produtos tecnológicos por muito tempo. Para o autor, a interface seguiria modificando diferentes domínios de experiências contemporâneas e as formas de relacionamento com o mundo em vários âmbitos, as narrativas (em livros, em TV etc.) seriam construídas com base no novo meio de comunicação do design de interface. O que se segue é então uma tentativa de desenvolvimento de uma outra forma cultural que “paira em algum lugar entre meio e mensagem, uma metaforma que vive no submundo entre o produtor e o consumidor de informação” (JOHNSON, 2001, p. 33). Assim, a interface seria uma forma de mapear tal território em perspectiva, que é novo e estranho, seria um meio de nos orientarmos num ambiente até então desnorteante.

Já Montaño (2015) propõe pensar a interface como fluxo audiovisual, pois ela representa um ambiente onde diversos fluxos se encontram e as imagens anteriores tornam-se dados. A autora faz um diálogo com Arantes (2015), que aborda a noção de imagem-interface; essa noção coloca a interface e sua relação com a imagem mais próxima em rede e conexão com o público. Na imagem-interface temos um ambiente que se modifica com a intervenção do usuário, em uma inter-relação com o interator/observador, “apontando para uma visão de narrativa que se desenvolve, muitas vezes, na relação com o outro (público)” (ARANTES, 2015, p. 45). Ainda para a autora, Se a imagem-tempo coloca em jogo o processo de temporalização da imagem, a imagem interface não somente coloca em debate o movimento da imagem, mas também a participação do sujeito e do observador no seu “comportamento”. [..] o sujeito participa do desenvolvimento temporal da imagem-interface (ARANTES, 2015, p. 46-47).

Para esta pesquisa, a interface e imagem-interface é o lugar onde a narratividade e o software se encontram, onde as narratividades transparecem uma qualidade da memória, do arquivo e das audiovisualidades, e o software como um devir da nossa cultura. Nesse ambiente, as imagens técnicas de interface participam de um ambiente tecnocultural, que é, ao mesmo tempo, um lugar de travessias, convergências e divergências. A interface e imagem-interface se tornam parte do procedimento do empírico, tendo em vista que foi a partir da observação do Eu sou Amazônia e do Google Earth, objeto desta pesquisa, que percebemos as possibilidades de discutir o lugar da

interface. Portanto, irmos à campo pode se tornar também ir às interfaces, ou, de forma mais objetiva, ir aos audiovisuais de interface.

Os paradigmas de relações são outros para quem permite olhar o mundo interior para enxergar o exterior dos objetos. Isso porque outro processo cognitivo se constrói com a mudança de percepção da interface, diante do que Fischer (2013) fala de uma visada tecnocultural, que implica também em como estamos consumindo, pensando a estética da interface como algo novo, que pode ser tomado enquanto um movimento que se difere de seu estágio inicial. Nesse ambiente da tecnocultura a narratividade softwarizada surge com força na projeção de telas múltiplas que, não somente, o próprio software incita, criando a possibilidade, ainda, de se associar a uma memória expandida pelo hipertexto e banco de dados.

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O escopo teórico que se aprofunda aqui, se consolidou a partir de todo o processo da pesquisa, isto é, cada capítulo nos fazia voltar para o que estávamos construindo de proposição empírica, para assim retornar para os outros processos: problema, metodologia, análise, teoria. No capítulo 2, por exemplo, quando resgatamos a Amazônia no audiovisual brasileiro juntamos “cacos” da história da Amazônia, narradas em diferentes formatos e temporalidades. Estas produções, inclusive foram lançadas antes e depois do Eu sou Amazônia, do Google Earth. Na metodologia, assumimos a arqueologia da mídia como parte do procedimento de análise, a fim de tratar do objeto em camadas. Neste capítulo, também iremos investir em observar a narratividade softwarizada em produtos com temáticas e formatos distintos, que são as escavações de materiais afins. Desse modo, começamos a pensar em como a noção de narratividade foi sendo modelada mantendo o diálogo entre teorias e o empírico e que esse diálogo nos fazia enxergar a narratividade softwarizada enquanto uma memória que dura e está em devir. Nesse processo, criamos uma compreensão de que a narratividade que estamos pensando nesta pesquisa é aquela que vive em uma softwarização da (tecno) cultura que recai no campo das audiovisualidades, uma narratividade que é, em si, memória e arquivo, nos fazendo acessar uma espécie banco de dados sobre o mundo, ou no nosso caso, sobre a Amazônia.

Refletimos, neste capítulo então, que da oralidade à leitura de uma história, o que se tem é uma construção narrativa permeada de memória. Memória de um tempo, de um personagem, de um lugar, memória de um meio. E diante de tantos modos de ativar a memória e narrar coisas do mundo, vemos essa narratividade ganhar diferentes formatos,

dimensões, sensações, interfaces. A narratividade softwarizada se alia a proposta contemporânea de colocar o meio no mesmo nível de evidência da própria coisa narrada. No ESA, do Google Earth, vemos a memória da Amazônia sendo atualizada, mas vemos também a memória do próprio GE e Google durando, perene.

Após esse percurso teórico, se confirmou pertinente observar a nossa proposição de narratividade softwarizada em outros materiais afins, que escavamos ao longo da pesquisa e que mostraremos no tópico seguinte.