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Escavar camadas pela esteira da arqueologia da mídia

4. TRILHAS METODOLÓGICAS

4.2 Escavar camadas pela esteira da arqueologia da mídia

43 A noção de travessias nesta pesquisa surgiu no capítulo de fundamentação teórica e foi se desdobrando

em outros mecanismos de apreensão de narratividade softwarizada. Falaremos com mais detalhes ao tratar do laboratório de travessias a seguir.

O Eu sou Amazônia e o Google Earth demonstram uma multiplicidade de aspectos midiáticos que coalescem. Cada vez que problematizávamos as teorias e os conceitos que poderiam organizar a questão das narratividades softwarizadas diante do empírico, encontrávamos várias possibilidades de tratamento, do ponto de vista metodológico. Por fim, utilizamos a metodologia das molduras atuando nos territórios de análise intrínsecos ao objeto, mas passamos também a considerar o movimento pelas camadas como um aliado para observar a existência de aspectos potentes coexistindo e durando.

O verbete “Camada”, no dicionário Priberam44, aponta, no primeiro item, para o

seguinte significado: 1) Porção de coisas da mesma espécie entendidas à mesma altura sobre uma superfície. O empírico, nesse sentido, dá a ver como aspectos principais para a existência de camadas a Amazônia, a interface e o Google, sendo que estes aspectos estão na mesma altura (ou nível) de importância e com temporalidades coalescendo. E porque vemos temporalidades coalescendo e durando nas camadas, seguimos nossa concepção teórica sobre camadas atrelada à arqueologia da mídia, que nos dá subsídio para escavar o empírico em busca de tais temporalidades. Temos assim a compreensão de que essas temporalidades estão associadas à duração e à memória que vivem nesse objeto. Com tais escavações tentamos retroceder em cada camada e observar o que ainda não tínhamos enxergado nas cartografias. Retrocedemos para, em seguida, dar um salto adiante, rumos às considerações sobre narratividade softwarizada.

Com o objetivo de contextualizar a arqueologia da mídia enquanto processo teórico que nos ajuda na escavação do empírico e camadas, entendemos que ela possui várias frentes de abordagem. Telles (2017) apresenta pelo menos quatro vieses de investigação para seguir com a(s) arqueologia(s) das mídias. Elas são representadas em grande parte pelos eixos em torno da materialidade (com autores como Kittler e Parikka), da variação (com Zeliniski), do imaginário (com Kluitenberg) e do diagrama (com Ernst). Essas quatro representações dos estudos a partir da arqueologia da mídia, relata Telles (2017), envolvem de alguma forma a busca por encontrar os pontos de fissura dentro de narrativas canônicas, enxergar histórias alternativas em tecnologias esquecidas ou improváveis, trazer à tona universos tecnológicos obscurecidos e que transparecem os

44 Busca pelo significado do verbete "camada", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha],

ruídos. Em contribuição a esse pensamento, Agamben (2019), ao tratar de uma arqueologia filosófica, destaca que

A arqueologia repercorre a contrapelo o curso da história, assim como a imaginação repercorre a biografia individual. Ambas representam uma força regressiva, que porém não retrocede, como a neurose traumática, para uma origem que permanece indestrutível, mas ao contrário, para o ponto em que, segundo a temporalidade do futuro anterior, a história (individual ou coletiva) torna-se pela primeira vez acessível (AGAMBEN, 2019, p. 154)

O autor nos autoriza a chamar de arqueologia uma prática de investigação histórica que vá não apenas na origem, mas no lugar de “insurgência do fenômeno”, a ponto de confrontarmos as fontes e a tradição (encarando-a tentando desconstruir paradigmas). Para ele, “O ponto de insurgência é aqui, então, a um só tempo, objetivo e subjetivo, situando-se, aliás, num limiar de indecibilidade entre o objeto e o sujeito” (AGAMBEM, 2019, p. 128), e a ida até a origem das coisas é ir também até o sujeito que age pela arqueologia.

Santaella e Ribeiro (2017) apresentam uma perspectiva da arqueologia da mídia baseada no pensamento de Walter Benjamin. Para ambos, Benjamin em meio a farrapos e resíduos, recupera e organiza fragmentos a fim de estimular novos sentidos interpretativos. Assim, o pensamento arqueológico de Benjamin “trata-se de um procedimento de montagem, em que o autor coleta e agrupa materiais cujos rastros culturais de um tempo anterior de desordem são capazes de iluminar um sentido novo para o leitor” (SANTAELLA e RIBEIRO, 2017, p. 68-69).

Trabalhar com a arqueologia da mídia diante desse conjunto teórico requer pensar a natureza heterogênea dentro do empírico e entender que ele traz temporalidades particulares nas camadas escavadas. Por esse viés, a arqueologia da mídia chama atenção para a via de acesso às histórias alternativas das mídias suprimidas e negligenciadas, a qual vasculha tanto arquivos textuais, quanto visuais e sonoros, assim como artefatos, priorizando manifestações discursivas e materiais da cultura (FISCHER, 2015, p. 185). Nesse sentido, dentro de cada camada, podemos vasculhar aspectos que não estão na superfície das camadas, não estão em evidência no tema Amazônia, na interface e nos mecanismos do software, mas que nos direcionam para a compreensão de narratividade softwarizada.

A arqueologia usa a metáfora da escavação como aquela que ajuda a aprofundar esse pensamento sobre a busca de devires, de durações do objeto. As nossas cenas de superfície são escavadas, e são escavações de ordem de temporalidades que estamos

buscando no empírico (temporalidades coalescentes). Cabe a nós, assim, avançar de um estrato “superficial’, que seriam essas camadas que estamos vendo e colocando aqui, para estratos mais profundos presentes em cada camada. Vamos escavar em busca do que cada uma delas tem a nos dizer e o que elas, em conjunto, podem exibir. O esquema a seguir representa visualmente a composição das camadas:

Figura 17: Esquema em níveis das camadas

Fonte: Elaborado pela autora

Demonstramos na figura acima as três camadas como se estivessem dispostas em uma mesa e pudéssemos escolher como manipular e seguir para a próxima camada, tomando ora o caminho pela Amazônia Audiovisualizada, ora a interface e ora a falsa opacidade do software. No entanto, o que precisamos tensionar é ideia das três camadas agindo juntas e ao mesmo tempo, ainda que no percurso do usuário o que tenha agido primeiro, como ponto de interesse, seja a Amazônia ou o site de geolocalização. Enquanto pesquisadores, para este trabalho, saímos de um estrato que tende a aparecer mais e vamos para um que está presente, mediando nossas idas e vindas, e seguimos para o lugar de problematização do software, percebendo sua presença. Seguimos assim, da superfície à profundidade. É nesse jogo em que as três camadas coalescem que a narratividade softwarizada emerge.

As três camadas, de antemão, nos fazem enxergar aspectos de uma Amazônia audiovisualizada que, nas molduras (vídeo, interfaces, mapas e hipertexto, por exemplo), insurgem características estéticas das imagens da Amazônia, de outros produtos audiovisuais e outros contextos discursivos. Na camada “Amazônia Audiovisualizada” mergulhamos nos vídeos e nos links e observamos como esse tema é imagicizado, tanto em planos cinematográficos quanto em conteúdo (o que é pautado e as personas colocadas

ali para audiovisualizar a Amazônia). A segunda camada que coalesce junto a da audiovisualização da Amazônia é responsável por mostrar a multiplicidade do ambiente que podemos adentrar em um software: Soft reader na interface. Nela nós também percebemos molduras e aspectos visuais e estéticos que duram nas outras camadas. A terceira camada presente, e talvez uma das mais ubíquas, que convive no tempo das outras duas camadas, ora se exibindo mais e ora se escondendo da superfície, é a camada “Falsa opacidade do software”. Essa camada nos faz percorrer, desde a entrada até uma possível saída desse conjunto de dados, arquivos, formatos audiovisuais e memórias, pelo território Google, o qual parece mediar cada experiência tida durante o processo até a chegada no ESA.

A pertinência em inscrever, na pesquisa, essas três camadas, é refletir sobre como, após idas e vindas, produzindo travessias, cartografias, análise pelas molduras, agindo na investida como softtellers e montando cenas de superfície, percebemos que o Eu sou Amazônia e Google Earth (Google) nos levam para experiências que amplificam sua forma, mas que também escondem aspectos (ou camadas) estéticos, políticos, de estrutura, etc. Escavando essas três camadas vemos durar uma colagem de diferentes tempos, capazes de atualizar memórias, audiovisualidades, interfaces, montagens na narratividade softwarizada.

Agora, apresentados os procedimentos teórico-metodológicos e a formulação analítica das camadas, descreveremos outros artifícios da ordem do maquínico e das ferramentas dispostas para pesquisadores. Esse processo se tornou cada vez mais presente no desenrolar da pesquisa e precisão da análise, por isso necessitavam de evidência nesta etapa.