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1.3 Diferentes focos para o olhar sobre a mídia e a educação para as mídias – as

1.3.1 Douglas Kellner e sua proposta de estudos da cultura da mídia

Douglas Kellner – pesquisador da “Graduate School of Education and Information Studies” da University of California em Los Angeles, Estados Unidos, e uma das lideranças da reflexão teórica sobre a cultura da mídia e, também, na área da educação para as mídias – apresenta um referencial que, partindo das tradições da teoria crítica derivada da Escola de Frankfurt e dos estudos culturais britânicos, pretende superar oposições históricas entre abordagens que considera improdutivas, “unilaterais e cegas a importantes aspectos” (KELLNER, 2001, p. 12), seja por considerarem os meios de comunicação forças onipotentes de controle social sobre vítimas indefesas, seja, no outro extremo, por ressaltarem a capacidade do público resistir à manipulação da mídia sem necessariamente teorizar sobre os efeitos contraditórios da cultura veiculada pela mídia. Assim, o autor propõe uma abordagem que caracteriza como mais inclusiva, por manter os compromissos políticos, teóricos e metodológicos de tradições anteriores e, ao mesmo tempo, abranger as novas mídias, teorias emergentes e novas lutas e esperanças sociopolíticas (HAMMER; KELLNER, 2009).

Para tanto, parte do conceito de “cultura da mídia” e da compreensão de que ela oferece materiais a partir dos quais os indivíduos nas sociedades contemporâneas de mídia e de consumo forjam as suas identidades, conformam suas visões de mundo e seus valores; histórias que proveem os símbolos, mitos e recursos pelos quais as pessoas se integram a uma cultura comum; bem como espetáculos que demonstram quem são os detentores do poder e quem são os excluídos (KELLNER, 2001, 2009). Assim, é por estarmos imersos em uma sociedade de mídia e de consumo que “é importante aprender a como compreender, interpretar e criticar suas instituições, práticas, discursos, imagens e espetáculos” (KELLNER, 2009, p. 5, tradução nossa), por meio de uma educação para as mídias que objetiva fazer conexões entre “textos e contextos, indústrias e tecnologias midiáticas, política e economia, e textos, práticas e audiências específicas” (KELLNER, 2009, p. 8, tradução nossa).

Porém, diferentemente do que essa introdução ao pensamento de Kellner pode dar a entender, o autor não compactua com as perspectivas protecionistas de educação para as mídias, já que o autor destaca que “a cultura contemporânea da mídia cria formas de dominação ideológica que ajudam a reiterar as relações vigentes de poder, ao mesmo tempo que fornece instrumental para a construção de identidades e fortalecimento, resistência e luta” (KELLNER, 2001, p. 10):

A cultura da mídia e a de consumo atuam de mãos dadas no sentido de gerar pensamentos e comportamentos ajustados aos valores, às instituições, às crenças e às práticas vigentes.

No entanto, o público pode resistir aos significados e mensagens dominantes, criar sua própria leitura e seu próprio modo de apropriar-se da cultura de massa, usando a sua cultura como recurso para fortalecer-se e inventar significados, identidade e forma de vida próprios. (KELLNER, 2001, p. 11).

Em relação à teoria crítica da sociedade originada na Escola de Frankfurt – que Kellner (2001) coloca explicitamente como inspiração primeira de seu projeto de crítica cultural e educação para as mídias –, o autor destaca o que vê como as principais perspectivas sobre a sociedade contemporânea e armas úteis de crítica advindas dessa tradição, relacionadas, fundamentalmente, aos conceitos de “esclarecimento” e de “indústria cultural”, que inauguram o olhar sobre a mídia fundado na compreensão de seu papel enquanto legitimadora ideológica e reprodutora das estruturas de poder nas sociedades capitalistas. Assim, na visão do autor,

[...] é precisamente a focagem crítica da cultura da mídia, a partir das perspectivas de mercadorização, reificação, ideologia e dominação, que constitui um modelo útil para corrigir as abordagens mais populistas e acríticas à cultura da mídia, que tendem a subjugar os pontos de vista críticos. (KELLNER, 2001, p. 45).

Além disso, os estudos da Escola de Frankfurt

[...] dissecaram a interconexão entre cultura e comunicação nas produções que reproduziam a sociedade existente apresentando de modo positivo as normas e práticas sociais e legitimando a organização capitalista da sociedade. A Escola de Frankfurt fez sua análise no âmbito da teoria crítica da sociedade, integrando assim estudos de comunicação e cultura no contexto do estudo da sociedade capitalista e dos modos como as comunicações e a cultura se davam nessa ordem, bem como os papéis e funções que assumiam. A Escola de Frankfurt também evidenciou a inadequação dos métodos quantitativos para estabelecer relações qualitativas e produziu métodos de análise das complexas relações entre textos, públicos e contextos, bem como do relacionamento entre as indústrias da mídia, o Estado e as economias capitalistas. (KELLNER, 2001, p. 47).

Já como limitações a serem superadas em relação ao programa original da Escola de Frankfurt, Kellner aponta as necessidades de:

[...] análise mais concreta da economia política da mídia e dos processos de produção da cultura; investigação mais empírica e histórica da construção da indústria da mídia e de sua interação com outras instituições sociais; mais estudos de recepção por parte do público e dos efeitos da mídia; e incorporação de novas teorias e métodos culturais numa teoria crítica reconstruída da cultura e da mídia. (KELLNER, 2001, p. 44-45).

Além disso, Kellner aponta como problemática a dicotomia da Escola de Frankfurt entre “cultura superior e inferior”, afirmando que esta deve ser substituída “por um modelo que tome a cultura como um espectro e aplique semelhantes métodos críticos a todas as produções culturais” (KELLNER, 2001, p. 45). E é justamente em relação a essa dicotomia que Kellner situa a contribuição crucial dos estudos culturais britânicos, por subverterem

[...] a distinção entre cultura superior e inferior [...] e, assim, [valorizarem] formas culturais como cinema, televisão e música popular, deixadas de lado pelas abordagens anteriores, que tendiam a utilizar a teoria literária para analisar as formas culturais ou para focalizar sobretudo, ou mesmo apenas, as produções da cultura superior. (KELLNER, 2001, p. 49).

Ainda em relação aos estudos culturais britânicos, Kellner (2001) associa a essa tradição um foco político que “intensificou a ênfase nos efeitos da cultura e no uso que o público fazia das produções culturais, o que possibilitou estudar de maneira extremamente produtiva o público e a recepção” (p. 55). Porém, é nessa força que o autor identifica também uma limitação dessa corrente em suas expressões mais recentes, afirmando que “muitas das configurações atuais dos estudos culturais são unilaterais demais, produzindo novas divisões do campo e, em parte, bloqueando o campo das comunicações propriamente ditas por dar ênfase excessiva aos textos culturais e à recepção pelo público”, gerando o risco de um “fetichismo do público” (KELLNER, 2001, p. 56).

Assim, é a partir dessas relações dialéticas entre contribuições e limitações da Escola de Frankfurt e dos estudos culturais – além do que chama de “indagação minuciosa sobre os vários usos do discurso pós-moderno” (KELLNER, 2001, p. 68) – que o autor propõe sua abordagem de “‘estudos da cultura da mídia’ para descrever o projeto de análise das complexas relações entre textos, públicos, indústrias da mídia, política e contexto sócio- histórico em determinadas conjunturas” (KELLNER, 2001, p. 56). Os fundamentos dessa abordagem são elaborados na obra “A Cultura da mídia – Estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno”, publicada originalmente em 1995 (KELLNER, 2001). Nela, partindo do pressuposto de que “a crítica cultural e a pedagogia da mídia exigem teoria social, e de que a teoria crítica da sociedade, por sua vez, deve basear-se nos estudos de

mídia e cultura e nos métodos da crítica cultural para atingir maior compreensão das qualidades essenciais da vida social contemporânea” (KELLNER, 2001, p. 20), o autor propõe uma abordagem multiperspectivística que “dê atenção à produção da cultura, aos próprios textos e à sua recepção pelo público” (KELLNER, 2001, p. 63).

Em relação especificamente à educação para as mídias – que denomina “pedagogia crítica da mídia” –, a expectativa de Kellner (2001) é que ela possa “conferir o poder de discernir as mensagens, os valores e as ideologias que estão por trás dos textos da cultura da mídia” (p. 83), “ensinando a ser crítico em relação às representações e aos discursos da mídia, mas também ressaltando a importância de aprender a usar a mídia como modalidade de autoexpressão e ativismo social” e “instrumento de transformação social” (p. 425).

Em artigo de Kellner publicado no Brasil em 2008, em coautoria com Jeff Share (KELLNER; SHARE, 2008), temos uma classificação das diferentes abordagens da educação para as mídias em quatro grupos que nos ajuda a compreender a relação entre o referencial teórico proposto por Kellner e sua perspectiva em relação aos elementos de tensão e conflito elencados no início desta seção, bem como sua proposta para a educação para as mídias.

A primeira das abordagens gerais elencadas é aquela relacionada às perspectivas protecionistas, de “medo da mídia”, em relação à qual os autores afirmam que:

Se, por um lado, reconhecemos que a mídia contribui para a existência de muitos problemas sociais e às vezes até os causam, por outro lado, questionamos uma abordagem protecionista, pela sua tendência antimídia, que é demasiadamente simplista em relação à complexidade de nossas relações com a mídia e não leva em consideração o potencial que a pedagogia crítica e a produção de mídia alternativa oferecem para se dar poder às pessoas. (KELLNER; SHARE, 2008, p. 699).

Porém, os autores também recomendam cautela no tratamento da produção de mídia alternativa, a partir da caracterização de uma segunda abordagem de educação para as mídias que denominam “educação em arte midiática, na qual os alunos são ensinados a valorizar as qualidades estéticas da mídia e das artes, enquanto usam sua criatividade para se expressar através da arte criativa e da mídia” (KELLNER; SHARE, 2008, p. 699), expressando preocupação com essa abordagem “quando favorece a autoexpressão individualista em detrimento da análise socialmente consciente e da produção de mídia alternativa. Muitos desses programas tendem a ensinar aos alunos habilidades técnicas para simplesmente reproduzir representações hegemônicas [...]” (KELLNER; SHARE, 2008, p. 700).

O terceiro grupo identificado é associado ao movimento de alfabetização midiática radicado nos Estados Unidos, “que busca ampliar a noção de alfabetização, incluindo a cultura popular e múltiplas formas de mídia [...] e, ao mesmo tempo, ainda trabalhar dentre de uma tradição de alfabetização na forma impressa” (KELLNER; SHARE, 2008, p. 701). Em relação a essas abordagens, Kellner identifica que é comum entre os envolvidos a expressão da crença de que a educação deve ser politicamente neutra e que a educação para as mídias deve expor os estudantes objetivamente aos conteúdos de mídia, sem relacioná-los a questões de ideologia e poder.

Frente a essa abordagem, Kellner destaca que: “A rejeição da ideia de que a educação ou a informação podem ser neutras e livres de valores é essencial para o questionamento crítico que aborda a injustiça social e a desigualdade através da pedagogia transformadora baseada na práxis (reflexão e ação)” (KELLNER; SHARE, 2008, p. 701). E propõe, como um quarto modelo de educação para as mídias – que denomina “alfabetização crítica da mídia” – uma abordagem que “inclui aspectos dos três modelos expostos, porém, enfocando a crítica ideológica e analisando a política de representação das dimensões cruciais de gênero, raça, classe e sexualidade na economia política e nas relações sociais das importantes empresas de mídia” (KELLNER; SHARE, 2008, p. 702).

Para a concretização dessa abordagem, como vimos anteriormente, Kellner apresenta como indissociáveis as dimensões da economia política da mídia, de análise textual e de teoria da audiência, a serem exploradas considerando cinco elementos básicos:

1) o reconhecimento da construção da mídia e da comunicação como um processo social, em oposição a aceitar textos como transmissores isolados de informações, neutros ou transparentes; 2) algum tipo de análise textual que explore as linguagens, gêneros, códigos e convenções do texto; 3) uma exploração do papel das audiências na negociação de significados; 4) a problematização do processo de representação para revelar e colocar em discussão questões de ideologia, poder e prazer; 5) a análise da produção, das instituições e da economia política que motivam e estruturam as indústrias de mídia como negócios corporativos em busca de lucro. (KELLNER; SHARE, 2008, p. 690-691).

Em relação especificamente à produção de mídia alternativa pelos estudantes, Kellner contrapõe-se à abordagem identificada com a educação para as artes midiáticas destacando como ter voz ativa sem a análise crítica não é suficiente, uma vez que:

A análise crítica que explora e expõe as estruturas de opressão é essencial, porque simplesmente ter voz ativa é algo que qualquer grupo racista ou sexista também pode reivindicar. Devem-se abrir espaços e criar oportunidades para que as pessoas de posições marginalizadas tenham a oportunidade de lutar coletivamente contra a opressão, externar suas inquietações e criar suas próprias representações. (KELLNER; SHARE, 2008, p. 700).