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3     O RANZINZA: COOPERAÇÃO ENTRE RETÓRICA E DESIGN

3.3     A construção do ethos do protagonista

3.3.5  Um balanço sobre as análises

    3.3.5 Um balanço sobre as análises  Arrematando a elaboração do design de Carl em seus quatro momentos de vida,  é  necessário  reparar  em  alguns  detalhes,  é  preciso  notar  que  algumas  formas  básicas  são  persistentes. Por dois motivos: um evidente e outro mais subjetivo. O primeiro, evidente, é  que  o  personagem  precisa  ser  reconhecido  ao  longo  da  trajetória  de  sua  vida:  algumas  características  são  mantidas  em  seu  design  justamente  para  que  sua  essência  não  seja  perdida.  O  segundo,  e  mais  subjetivo:  é  o  motivo  de  tentar  recuperar  e  reforçar  alguns  significados. A persistência no design de Carl são as formas circulares.    Figura 58 ‐ Persistência de formas circulares    Fonte: Compilação do autor.   

Na  sua  infância,  as  formas  circulares  são  utilizadas  em  toda  sua  extensão.  Os  círculos estão presentes até nos detalhes de suas roupas, além de olhos e nariz. Já a partir da  mocidade  os  quadrados  tomam  lugar,  porém  sempre  influenciados  pelas  formas  circulares         

31 Enquanto Ellie está viva, nossa paleta de cores está muito saturada. Ela traz cor para a vida de Carl. Quando  ela se foi, a paleta está dessaturada em tons de cinza. [...] Geralmente, mostramos o Carl no escuro [...]. Sempre  que temos vida ou movimento de progressão, usamos a saturação de cores. Mas quando há um revés iminente,  nós quase vamos para preto e branco. (HAUSER, 2009, p. 82, tradução nossa) 

em  seus  cantos.  Olhos  e  nariz  ainda  continuam  circulares.  E,  mais  precisamente  em  idade  avançada,  o  design  de  Carl,  que  deixa  bem  estabelecida  a  característica  ranzinza  em  suas  formas quadradas, mantém o nariz circular, que só aumenta em dimensão com o passar dos  anos. Também são acrescentados ao seu design outras formas circulares, as bolinhas de tênis  em sua bengala. Essas formas circulares podem significar o resgate de alguns valores que se  mantém durante toda a vida de Carl, como um lembrete do que um dia foi e que pode ainda  restar  algo  nele,  ou  ainda  uma  “pontinha”  de  esperança  circular  em  meio  a  vários  aborrecimentos pesados e “quadrados”. 

Contudo,  outro  detalhe que  se  pode  perceber, e  que  funciona  de  uma  maneira  contrária ao círculo, são os óculos do personagem que, desde a sua infância, são quadrados.  Por mais que suas estruturas do corpo todo mudem, os óculos quadrados e o nariz circular  permanecem, indiciando a calidez com o círculo e a estagnação do quadrado. 

Mais uma vez, agora com uma perspectiva mais ampla, nota‐se o uso das figuras  retóricas.  A  figura  de  repetição  para  se  conseguir  reforçar  os  argumentos  expressos  nas  formas geométricas básicas empregadas no design do protagonista. As formas são repetidas  em  várias  partes  no  mesmo  personagem  reforçando  a  presença  e  seus  conceitos.  A 

hipérbole que, no design de Carl, se apresenta de forma geral nas dimensões de sua cabeça 

e seu nariz.  

Além disso, outra figura retórica que podemos salientar é a oxímoro, definida por  Reboul (2004, p. 125) com a função de “unir dois termos incompatíveis fazendo de conta que  não  são”.  No  design  de  Carl,  o  emprego  do  círculo  e  do  quadrado  retrata  bem  o  oxímoro.  Enquanto o círculo se mantém pela calidez e continuidade do traço, o quadrado se mantém  pelo peso e pela estagnação. O quadrado com cantos bem definidos, e o círculo sem canto  algum,  mesmo  sendo  incompatíveis  em  primeira  instância,  conseguem,  juntos,  emitir  um  terceiro significado entre os dois já existentes, amenizando‐se. 

Outras análises são importantes e devem ser feitas para que se contextualizem os  sentidos empregados nos designs elaborados para o protagonista.  

Dentro da dimensão das etapas do discurso, o exórdio – prólogo do filme – tem  por  funções  básicas  preparar  o  auditório  à  tese  a  ser  apresentada:  tentando  produzir  a  docilidade,  obter  benevolência  ou  ainda  capturar  a  atenção.  No  recorte  do  corpus  nesta 

pesquisa, o orador‐diretor usa esse recurso. De acordo com Reboul (2004, p. 62)32, o orador  adquire um estilo ameno – medium – com o objetivo de agradar – delectare – o auditório  usando o ethos – de Carl Fredricksen – como prova de seus argumentos.  

Inicialmente  no  exórdio  –  abordaremos  como  exórdio  o  prólogo  do  filme  daqui  por  diante,  por  se  tratar  do  contexto  da  teoria  retórica  –  o  orador‐diretor  já  apresenta  a  paixão do amor ou da amizade, como declarado por Aristóteles. Carl criança, ao brincar por  uma rua, descobre uma garota, Ellie.  Juntos eles fundam o “Clube de exploradores”! A partir  de  então,  aventuram‐se  e  divertem‐se  juntos.  Existe  uma  sequência  que  demonstra  essa  amizade,  na  qual  Carl  quebra  seu  braço  e  fica  de  repouso  em  casa.  Então,  Ellie  vai  a  seu  encontro durante a noite, de surpresa, para devolver seu balão e animá‐lo. Eles montam uma  cabana de cobertor, acendem uma luz e dividem sonhos.    Figura 59 ‐ Sequência que demonstra a paixão da amizade    Fonte: Compilação do autor.   

Na  Figura  59,  momentos  1  e  2,  temos  os  dois  personagens  dialogando.  No  momento 3, vemos uma ilustração e uma frase “Paraíso das cachoeiras, um lugar perdido no  tempo”. No momento 4, Ellie aponta para a figura das cachoeiras com um desenho de uma  casa no topo. É nos momentos 3 e 4 que Ellie revela seu sonho: levar seu clubinho e morar  no alto do Paraíso das cachoeiras, situado na América do Sul. Logo após essa sequência em          32 Originalmente Reboul, em seu texto, provavelmente deve ter se referido ao ethos do orador, porém, como já  visto em capítulo específico, temos na atualidade uma expansão desse conceito.   

que Ellie visita e mostra seus sonhos, existe uma outra cena que deixa evidente a paixão por  parte de Carl.    Figura 60 ‐ Carl maravilhado com as exposições de Ellie    Fonte: Compilação do autor.    Na Figura 60, temos, no momento 1, Carl maravilhado com as exposições de Ellie,  que, desamparada, diz não saber como iria chegar até o Paraíso das cachoeiras. O momento  2 mostra Carl com a ideia de um dirigível para realizar a proeza. No momento 3, Ellie o faz  jurar  que  os  levará  lá  quando  ficarem  “bem  grandes”  (palavras  dos  personagens).  E,  no  momento  4,  Carl  observa  Ellie  ir  embora  após  ter  pulado  a  janela,  com  uma  expressão  de  admiração. A cena é finalizada com um suspiro profundo de Carl. De acordo com Figueiredo  (2008,  p.  146),  “Amor:  é  desejar  para  alguém  aquelas  coisas  que  você  considera  boas  (desejando‐as para o outro e não para si) e tentar, ao máximo, fazer com que elas ocorram.  É, então, o laço de identidade com o outro”. Tal definição se associa, quase que literalmente,  ao  caso  de  Carl  e  Ellie.  O  protagonista,  admirando  Ellie,  coloca‐se  à  disposição  e  promete  que, ao chegar à idade adulta, vai levá‐los ao Paraíso das cachoeiras em um dirigível.  

Tomando  a  apresentação  dos  sentimentos  entre  Carl  e  Ellie  como  argumentos,  podemos perceber como são classificados, são dos lugares de qualidade. Uma amizade nos  moldes apresentados entre Carl e Ellie, tão sincera desde criança, revela‐se única! Os lugares 

mesmo  à  multidão.  É  a  valorização  do  único,  ou  pelo  menos  do  que  parece  como  tal.  (PERELMAN; OLBRECHTS‐TYTECA, 2004, p. 102)  Ainda no que se refere às etapas do discurso e também ao despertar de paixões,  ao fim do exórdio, o diretor‐orador tenta estabelecer a benevolência do auditório – uma das  funções do exórdio – ao conseguir despertar a paixão da compaixão. É no fim do exórdio que  é exposto ao auditório que Ellie adoece e morre.    Figura 61 ‐ Carl perde Ellie    Fonte: Compilação do autor.    É nessa sequência final do exórdio que o orador‐diretor mostra uma pessoa que  perdeu  o  amor  de  uma  vida.  Um  relacionamento  que  é  verossímil,  tido  como  forte,  em  termos emocionais, por ser cultivado em um longo período de tempo, desde a infância dos  dois  personagens.  A  paixão  da  compaixão  é  comprovada  a  partir  do  momento  em  que  o  auditório  reconhece  a  dor  do  protagonista  como  permissão  para  que  ele  seja  ranzinza  e  rabugento no futuro. Daí podemos inferir que o orador‐diretor de UP empregou o prólogo‐ exórdio para despertar no auditório o pathos da compaixão. Como descrito por Figueiredo  (2018):    Compaixão (piedade): sentimento de dor, considerado como sendo um mal  destrutivo ou doloroso, que recai sobre quem não o merece. É despertada  quando  pensamos  que  nós  mesmos  ou  alguém  próximo  a  nós  poderia 

sofrer  tal  mal,  sobretudo,  quando  essa  possibilidade  parece  real  e  alardeadora. (FIGUEIREDO, 2018, p. 147) 

 

Um amor que foi vivido por toda uma vida. Uma pessoa que só soube viver em  comunhão com outra. É um temor que, muito provável, ninguém gostaria de passar, o mal  com  possibilidade  real  é  a  morte.  Todos  vamos  morrer  um  dia.  Para  o  casal,  esse  mal  inevitável chegou. Carl não queria que isso acontecesse a Ellie. Por mais que saibamos que é  uma  certeza,  nunca  queremos  a  morte  a  quem  nos  é  caro  e  querido.  Mais  uma  vez,  os  argumentos  apresentados  na  situação  de  Carl  se  classificam  nos  lugares  de  qualidade.  Percebe‐se uma extensão do que antes foi analisado. Agora, nessa parte do exórdio‐prólogo,  Carl  também  é  único.  Todos  perdemos  alguém  em  vida,  porém  as  vivências  entre  o  casal  eram  únicas.  Daí  a  extensão  da  qualificação  do  argumento.  Carl,  por  ter  a  sorte de  ter  um  amor único e especial, continua sendo único ao perdê‐lo. Outro argumento que se aloja nos  lugares de qualidade seria a própria Ellie, uma pessoa tão importante e especial, a ponto de  se dirigir olhares apaixonados e completar a vida de Carl, isso a torna única!  Os argumentos apresentados que tentam a adesão do auditório‐espectador para  permitir e entender os motivos de Carl ser ranzinza também podem ser alocados nos lugares  de unidade. Carl enfrenta tudo sozinho: ele perdeu sua companheira com quem dividia tudo.  Agora, na falta de Ellie, não há com quem dividir. Uma passagem de Reboul (2004, p. 166)  que explica os lugares de unidade: “o que é um, ou efeito de um único, é por isso mesmo  superior”. No caso de Carl, perder a amada e sofrer sozinho torna a dor ainda pior.   Voltando a analisar o pathos, outra paixão que podemos cogitar ser despertada  no auditório, é a paixão da emulação. Muito bem definida por Figueiredo (2018):    Emulação: relaciona‐se ao movimento de imitação ao outro. Sentimento em  relação aos bens ou conquistas de outrem, que consideramos desejáveis e  que  estão  ao  nosso  alcance.  É  uma  dor  sentida,  não  porque  as  outras  pessoas  tenham  tais  bens,  mas  porque  não  os  temos  também,  o  que  nos  impele a querer possuí‐los. (FIGUEIREDO, 2018, p. 147) 

 

Reparando  na  história  apresentada,  percebemos  um  quase  conto  de  fadas.  Um  caso em que a amizade e o amor vividos pelo casal podem ser desejados.  Não há nenhum  elemento  fantástico  ou  realmente  do  universo  das  fadas,  mas  o  sentimento  puro  que  se  constrói  durante  uma  vida  pode  ser  o  desejo  de  muitas  pessoas,  o  que  contribui  para 

construir  a  empatia  direcionada  ao  protagonista,  que  nos  leva  novamente  à  paixão  da  compaixão. 

Ao  terminarmos  a  análise,  observamos  que,  no  que  tange  à  estrutura  visual,  percebe‐se que os argumentos visuais – elaborados pelo character design ‐ foram criados e  aglomerados  para  agir  retoricamente.  Os  textos  visuais  empregados  no  design  do  protagonista,  em  todas  as  etapas  de  sua  vida,  foram  escolhidos  e  organizados  para  que  se  entendesse não só que o personagem é ranzinza e triste, mas que existe um motivo por trás  dessa tristeza e desse mau humor. Suas formas básicas, suas expressões, sua indumentária e  até as cores que ele usava e que o rodeavam foram utilizadas para que produzisse o sentido  objetivado  pelo  orador‐diretor.  Portanto,  para  tentar  obter  a  simpatia  do  auditório,  a  aproximação dos espíritos, o orador‐diretor lançou mão dos recursos de que o design dispõe.  Valendo‐se, para tanto, das atividades do design para intensificar os sentidos no prólogo, e  esse trâmite pôde servir como exemplo de como o design pode atuar nas etapas da invenção  (inventio) e da elocução (elocutio).  

Observamos,  ainda,  que  os  textos  visuais  empregados  com  as  figuras  retóricas  reforçaram  os  argumentos  apresentados  pelo  diretor‐orador  e  auxiliaram  no  despertar  do 

pathos no auditório‐espectador. 

Conclui‐se,  portanto,  que  as  atividades  do  character  design  agiram  de  forma  retórica,  produzindo  textos  visuais.  E  também  que  as  práticas  do  design  podem  atuar  de  forma  contundente  nas  etapas  de  invenção  e  elocução,  reunindo  argumentos  visuais  e  apresentando‐os de maneira coerente. 

4    CONSIDERAÇÕES FINAIS: A AVENTURA ESTÁ LÁ FORA!   

Analisado  o  corpus,  UP  ‐  altas  aventuras  (2009),  pudemos  averiguar  que,  ao  construir  o  ethos  de  um  ranzinza,  Carl  Fredricksen,  os  recursos  de  character  design  foram  muito  importantes  para  que  se  visualizasse  todo  o  reflexo  de  ocorridos  na  vida  do  personagem. Um personagem que cresceu ao lado do amor de sua vida e o perde, depois de  muitos anos vivendo casados.  

Com  78  anos  de  idade,  rabugento  e  de  mal  com  a  vida,  era  necessário  que,  quando  o  auditório  olhasse  para  esse  personagem,  reconhecesse  essas  características.  Ademais,  para  que  não  houvesse  qualquer  tipo  de  aversão  ao  perfil  do  protagonista,  o  diretor ainda consegue despertar a paixão da compaixão no auditório, contanto a história de  como Carl ficou rabugento e triste. A narração de como o personagem ficou assim compõe o  prólogo  do  filme,  examinado  aqui  como  o  exórdio  do  discurso.  Por  meio  desse  recorte,  a  pesquisa  conseguiu  mostrar  que  as  atividades  do  character  design,  fundamentadas  pela  percepção  visual,  atuam  mais  especificamente  nas  etapas  da  invenção  e  da  elocução.  Da  invenção,  por  reunir,  estudar  e  escolher  as  formas  visuais  congruentes  aos  objetivos  do  orador;  e  da  elocução,  por  escolher  a  estilística  e  a  maneira  de  apresentação  dos  textos  visuais diretamente no filme. É importante ressaltar, porém, que o design também atua nas  outras etapas da produção do discurso, mas se mostra mais objetivamente nessas duas. E,  para  comprovar  a  intencionalidade  por  parte  do  diretor  ao  utilizar  os  textos  visuais  como  argumentos,  usamos  o  livro  The  art  of  UP  (2009),  obra  que  é  composta  por  estudos  e  depoimentos da equipe artística do filme, que revela o processo de produção da animação.  

Buscou‐se,  por  meio  desta  pesquisa,  contribuir  para  a  expansão  dos  conhecimentos e aplicações das teorias da retórica da imagem, assim como para as áreas do 

design.  Este  trabalho  só  se  tornou  possível  devido  ao  fato  de  as  duas  áreas  possuírem 

afinidades, por trabalharem com a comunicação, usando linguagens. São áreas de potencial  trans e multidisciplinares.  

Buscou‐se também focar apenas na produção dos textos visuais que compõem  o design dos personagens. Textos que se relacionam diretamente com a construção do ethos.  Sendo  inerente  que  alguns  outros  aspectos  fossem  abordados  para  que  a  ação  retórica  do 

design fosse averiguada; por isso, a comunhão entre o tripé retórico se fez presente. Sendo