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Economia e cultura material na Campina Grande oitocentista

Ao longo do século XIX, foi se constituindo em Campina Grande uma sociedade com um perfil bastante peculiar, em termos de relações sociais e de poder entre os seus diferentes grupos formadores, estabelecidas nas práticas cotidianas, tanto no aspecto material como imaterial. Tentaremos aqui recuperar traços dessa dupla dimensão da vida social do município, tendo como material empírico básico os inventários pesquisados, fontes essas que podem nos possibilitar uma privilegiada porta de acesso a um rico e complexo universo histórico.

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Ver ROHAN, Henrique de Beaurepaire. “Chorographia da Província da Parahyba do Norte”. RIHGP. Nº 3, 1911, pp. 328/330; VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Op.cit. p.191; Pinto, Irenêo Ferreira. Op.cit. p. 230; Câmara, Epaminondas. Municípios e Freguesias da Paraíba. Campina Grande: Caravela, 1997.

Com base nos dados extraídos dos inventários, montamos um quadro que nos permite vislumbrar a forma como se distribuía os bens entre aqueles que tinham algo a declarar no momento em que morreram no intervalo de pouco mais de um século, ou seja, 1785 e 1899.79 Os mais de 900 inventários que formam a base da nossa pesquisa acusaram ao final um montante total de 3.024:245$246:

Quadro 1 – A RIQUEZA E SUA DISTRIBUIÇÃO EM CAMPINA GRANDE – SÉCULO XIX CLASSE NÚMERO DE INVENTÁRIOS PERCENTUAL EM RELAÇÃO AO Nº TOTAL DE INVENTÁRIOS SOMA DA RIQUEZA INVENTARIADA PERCENTUAL EM RELAÇÃO A RIQUEZA GERAL Até 100$000 8 0,876 644$860 0,021 101$000 a 200$000 34 3,724 5.326$991 0,176 201$000 a 500$000 155 16,977 54.905$421 1,815 501$000 a 1.000$000 190 20,811 141.504$883 4,678 1.001$000 a 5.000$000 395 43,264 890.510$532 24,441 5.001$000 a 10.000$000 83 9,091 593.632$766 19,625 10.001$000 a 20.000$000 28 3,067 407.717$711 13,479 20.001$000 a 50.000$000 13 1,424 371.779,308 12,291 50.001$000 a 185.000$000 5 0,548 558.222,774 18.455 TOTAL 911 100% 3.024.245$246 100%

FONTE: Inventários post-mortem: 1785/1899.

Estes números apresentam semelhanças e diferenças com outros municípios do Império na mesma época, permitindo-nos assim estabelecer interessantes comparações. Esses valores, por exemplo, estão muito distantes dos encontrados na opulenta Salvador, estudada por Kátia Mattoso, com seus 27.713:989$000. Por outro lado, se aproximam dos encontrados

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Lembramos que, por uma questão metodológica, os dados referentes aos escravos serão analisados detidamente no segundo capítulo da tese. Por outro lado, preferimos utilizar alguns inventários que, a rigor, fogem do nosso recorte temporal, para fazermos determinadas comparações, recuando em relação a 1800 e avançando em relação a 1888.

para o município paulista de Socorro, cujo montante foi calculado pela historiadora Lucília Siqueira em 2.521: 423$000. 80

O montante total foi agrupado e distribuído em 9 diferentes categorias de fortunas, entre pequenas, médias e grandes, com suas respectivas gradações internas. Desse modo, podemos avaliar melhor a distribuição dos bens entre os grupos sócio-econômicos e assim discutir os padrões de riqueza e pobreza que informavam a sociedade local. Para efeito de análise, consideramos aqueles com montante até 1.000$000 de pequenos; de 1.001$000 até 10.000$000 médios, e grandes acima de 10.001$000. O maior número de inventários se encontra na faixa das riquezas médias. São 478 inventariados (52,355% do total dos inventários), com um montante de 1.484:183$298, o que significa pouco menos do que a metade da riqueza total. Porém, o que mais chama a atenção nos números globais é a profunda desigualdade na distribuição da riqueza entre as maiores e as menores fortunas, ou seja, entre a base e o topo da escala social. Nesse sentido, os dados confirmam as tendências observadas para várias regiões do Brasil Império, onde havia uma alta taxa de concentração de riqueza nas mãos de uns poucos.81 Para se ter uma idéia do que isto representa, basta dizer que enquanto as 5 maiores fortunas representam menos de 1% (0,548 %) dos inventariados, a riqueza aí acumulada chega a “bagatela” de 558.222$774. Traduzindo em percentuais: são 18,455 % da riqueza acumulado no período. Em contrapartida, os 387 inventariados com fortuna até 1.000$000 (42,388%) respondem por 202.382$155, ou 6,690 % dos já referidos 3.024:245$246. Em outras palavras, os cinco homens mais ricos da Campina Grande do século XIX detinham quase que o triplo da fortuna acumulada pelos 387 mais “pobres”, tendência essa que só fez se acentuar com a passagem do tempo. Acompanhar, através de olhar microscópico, a trajetória de alguns desses indivíduos que encarnaram os padrões extremos de riqueza e pobreza então vigentes pode acentuar ainda mais o contraste que os números inicialmente revelaram, acrescentando assim um componente fundamental no trabalho do historiador, qual seja, a textura histórica e humana.

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Kátia Matoso trabalhou com 1.115 inventários para o período de 1801 e 1889, enquanto Lucília Siqueira pesquisou 380 inventários para o intervalo de tempo de 1840 e 1895. Ver MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, pp. 602/648; SIQUEIRA, Lucília. Bens e costumes na Mantiqueira: o município de Socorro no prelúdio da cafeicultura paulista (1840- 1895). São Paulo: CLA, 2005, pp. 39/76.

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Além dos trabalhos citados na nota anterior, ver FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; GRAÇA FILHO, Afonso de Alencar. A princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002; OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiências da urbanização em São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda, 2005.

Ao morrer, em 1893, o tenente-coronel Honorato da Costa Agra deixou um monte avaliado em 184.015$600, o que o transformou no detentor da maior riqueza de Campina Grande no século XIX. Só a propriedade em que morava, a Fazenda Sossego, foi avaliada em 21.600$000. Esta contava, além das terras, com açudes, cercados, casas de morada, móveis, ferramentas, estabelecimentos para beneficiar e armazenar a produção agrícola, tais como máquinas a vapor. Nessa e nas demais propriedades (uma parte localizada em outros municípios da Paraíba e outra no Rio Grande do Norte) ele criava animais vacum e cavalar e plantava diversas culturas, em especial o algodão, uma das principais fontes de riqueza da economia local. É de se destacar também os dez imóveis que possuía no núcleo urbano do município, avaliados por 11.800$000; ao que parece, a aquisição de imóveis se tornou uma das fontes preferidas de investimento das elites locais com o fim da escravidão. Deixou também 30.000$000 em dinheiro, sinal de tempos de aumento da monetarização da vida econômica, já que era raro os que deixavam papel moeda em inventário. A segunda maior fortuna localizada foi a do Coronel Alexandrino Cavalcante de Albuquerque, membro de um das principais famílias de Pernambuco, que migrou para a Paraíba em meados do século, tendo se instalado em Campina Grande por volta de 1858. O perfil de sua fortuna é muito parecido com a de Honorato da Costa Agra. Quando da abertura de seu inventário, em 1895, o monte total chegou a 170.000$000, entre dinheiro, imóveis urbanos, animais vacum e cavalar, e propriedades agrícolas, dentre as quais se destacava o Engenho Conceição, avaliado em 20.000$000. Estes dois homens se destacavam não só pela riqueza material que possuíam, mas também pela influência que conseguiram exercer em vida e mesmo depois de mortos, como representantes típicos que foram das elites dominantes. Ambos constituíram clãs poderosos, em que as estratégias matrimoniais e clientelistas desempenhavam um papel fundamental para a concentração de capital real e simbólico, expresso na influência que tiveram na vida social e política. Embora com o tempo esse fausto tenha se esvaído, devido à emergência de novas forças sociais, nem por isso tais clãs deixaram de influenciar o imaginário da cidade.82

Em contraste com os dois homens mais ricos do município no século XIX, temos em seguida os dois mais “pobres dos mais pobres”, que faziam parte dos 8 inventariados cujos bens somados chegavam a 644$860 da amostra, ou seja, 0,021% da riqueza que ajudaram a construir, mas que dela pouco usufruíram. Era gente como Antonio Gomes de Matos, morto em dias de agosto de 1830. Quando da abertura de seu inventário, naquele mesmo ano, deixou

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Ver Inventários de Honorato da Costa Agra-1893 e Alexandrino Cavalcante de Albuquerque-1895. ADJFACCG.

uma ínfima herança de 51$960 a ser dividida entre a viúva Izabel Maria da Conceição e dois órfãos, um de dois anos de idade e o outro com apenas vinte e dois dias de vida. Vejamos em que consistiram seus bens:

Cavalar:

Duas bestas... 32$000 Uma poldra... 14$000

Uma sela com freio em bom uso... 3$000 Um jogo de malas de couro... 0$640 Uma cangalha... 0$400

Divida ativa:

Domingos Pereira Chaves... 1$280 Meação: 25$980

Herdeiros: 12$990 Custas: 11$413.83

O que teria acontecido à viúva depois da morte do marido? Quais estratégias buscou para sobreviver com tão pouco? Será que casou novamente, como era relativamente comum à época? E seus filhinhos, sobreviveram por quanto tempo? Talvez ainda nos encontremos com esses personagens nesta tese. Contudo, ela não estava só, pois havia uma legião de pessoas mais ou menos na mesma situação de penúria, isso para não falar naqueles (que não eram poucos, diga-se de passagem; aliás, era a grande maioria) que sequer tinham bens a descrever e legar para os seus. Quando morreu, em 1858, José Antonio de Carvalho, morador no Cardoso, até que deixou um pouco mais de bens que o marido de Izabel, entre dinheiro, móveis e dívidas ativas, avaliados em 76$000. O problema é que esse ínfimo montante teria que ser dividido entre os doze herdeiros!84

Em um quadro anexo a um dos relatórios da presidência da província nos é informado que Campina Grande se destaca pela “agricultura e criação”, em termos de potencial econômico da Paraíba.85 Uma boa maneira de averiguar essa informação é confrontá-la com as evidências dos inventários. A conclusão a que podemos chegar num primeiro momento é que, de fato, estes confirmam em linhas gerais o que o relatório presidencial aponta, ou seja: o município tinha nas atividades agrárias e na pecuária algumas de suas mais importantes fontes de riqueza, secundada pelo comércio. Comecemos pela terra e seus usos.

Foi em torno da propriedade agrária que, em grande medida, se deu o processo de desenvolvimento histórico de Campina Grande, sendo por isso mesmo fonte de poder, exclusão e conflito. Não é por acaso que os pedidos de sesmarias e datas de terras abundam

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Ver Inventário de Antonio Gomes de Matos-1830. ADJFACCG.

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Ver Inventário de José Antonio de Carvalho-1858. ADJFACCG.

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Ver Exposição feita pelo presidente da Província da Paraíba do Norte no ato de passar a administração da Província ao Exm° 2º vice-presidente Dr. Flávio Clementino da Silva Freire em 16 de abril de 1855. <www.crl.edu/content/brazil/pari.htm> Acessado em março de 2006.

nos primeiros tempos da ocupação da região, adentrando o século XIX. É o que se depreende do documento citado adiante:

Antonio de Oliveira Ledo, João Pereira de Oliveira, Francisco Pereira de Oliveira, Manoel Pereira de Oliveira, João Pereira de Oliveira, Joaquim Francisco de Oliveira, João Baptista de Oliveira e Antonio Fernandes Bastos da Cunha, dizem que possuem três léguas de terras no rio Bodocongó, termo da Vila Nova da Rainha por sesmaria que tirou o pai dos suplicantes e terras da do Boqueirão e serra do Cocorito e a serra das vargens de S. Pedro e a nova data da Volta há sobras devolutas das referidas datas, pedem por data três léguas de comprido e uma de largo ou como melhor for, pegando a medir pelo poente com terras do Boqueirão, pelo sul com terras do Cocorito e também com a serra do Cocorito, pelo nascente com a data hoje dos suplicantes e pelo norte com a Volta fazendo peão onde melhor conta. Foi feita a concessão, no governo de Luiz da Motta Fêo. 86

Feito o pedido e legalizada a posse, através de escritura oficial registrada, restava a estes proprietários se apropriar efetivamente das mesmas. Apesar da precariedade dos instrumentos de medição, os contemplados providenciavam logo a confecção de um cercado, geralmente feito de vara ou pedra, para fazer valer seu domínio. Mesmo com as novas exigências advindas com a aprovação da Lei de Terras, de 1850, as fronteiras então cridas pelas cercas nem sempre eram claras, sendo objeto de tensões e disputas entre os diferentes sujeitos envolvidos. Transformadas em bens privados, podiam ser vendidas, trocadas, hipotecadas, doadas etc.87

Por outro lado, na maior ou menor valorização dessas terras interferiam diversos fatores, além da dimensão. As de “plantar”, devido à maior fertilidade, eram mais valorizadas se comparadas com as de “criar”, estas quase sempre áridas e pouco apropriadas para as lides agrícolas. Aliás, era comum os conflitos de jurisdição entre umas e outras, a ponto das posturas municipais tentarem regular os seus limites periodicamente.88 Numa região de clima

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Ver Apud. TAVARES, João de Lira. Apontamentos para a história territorial da Parahyba. Edição fac- similar. Brasília: Senado Federal, 1982, pp. 491/492.

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A terra foi motivo de conflitos entre - elite, e entre esta e os médios e pequenos proprietário, e até entre estes últimos. Para agravar o quadro, havia certos problemas extras que só faziam agravar a situação, como era o caso do registro oficial. Em 1844, o presidente da província reclamava do estado lastimável dos livros de sesmarias e datas de terras, propondo que estes fossem transcritos pelo funcionário mais antigo da secretaria do governo, no sentido de evitar “maior confusão do direito de propriedade, já tão disputado entre nós”. Não sabemos ao certo se tal recomendação foi ou não seguida. O que sabemos é que a maior parte destes livros não se encontra nos arquivos públicos, onde em tese deveriam estar. Por outro lado, esse trecho nos deve alertar para o fato de que não é apenas a ação do tempo e o trabalho das traças e demais roedores os responsáveis principais pelo destino dos documentos. Na maioria das vezes são os interesses das forças vivas da sociedade em disputa, no passado e no presente, que decidem a sua sobrevivência ou desaparecimento. Ver Relatório que o Exmº Sr. Agostinho da Silva Neves, presidente da província, a Assembléia legislativa provincial da Paraíba do Norte em 03 de maio de 1844. <www.crl.edu/content/brazil/pari.htm> Acessado em março de 2006.

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Várias posturas municipais tentaram regulamentar a questão ao longo do tempo, o que por si só já denunciava as dificuldades em resolvê-la definitivamente. Em muitas delas buscava-se criar uma espécie de “cinturão” divisório entre as duas áreas no interior do município. Embora boa parte dos proprietários possuísse ao mesmo tempo terras de plantar e terras de criar, isso não impedia os atritos entre diferentes indivíduos e famílias. O 66

predominantemente seco, uma boa fonte de água natural podia fazer a diferença. A localização e a extensão também eram elementos importantes. Nesse sentido, podemos afirmar que havia grandes, médios e pequenos proprietários, de acordo com a combinação daquelas diferentes variáveis. Vejamos alguns exemplos.

O coronel José Antonio Vila Seca era um dos grandes proprietários, na primeira metade do século XIX. Nascido em Portugal, ele migrou para a América, fixando residência em Campina Grande, tendo a partir daí ocupado diferentes cargos na estrutura político- administrativa desde a época colonial, sendo por isso mesmo agraciado com diversas benesses pelo Estado. Quando de sua morte, em 17/03/1826, seu inventário apontou um total de 20.711.193 contos de réis, um montante considerável para os padrões da época. Dentre os bens que legou para a sua descendência constavam os seguintes bens de raiz:

Uma propriedade de terras denominada Massapé, que houve por compra a Nunes Guedes Alcoforado por escritura (...) com as confrontações e extensões constantes das mesmas escrituras, avaliada em 700.000 mil réis. Outra propriedade de terras Montes, por compra ao Reverendo João Barbosa de Góes e Silva por escritura (...) avaliada em 178.000 mil réis.

Uma sorte de terras no lugar Santa Catarina no Riacho do Açu, por compra a João Batista Ferreira, avaliada em 100.000 mil réis.

Duas sortes de terras, uma em Santa Catarina e outra na Serrinha denominada Serra Branca, por herança paterna, avaliadas em 395.000 mil réis.89

Algumas dessas propriedades eram dedicadas à agricultura e outras à pecuária, numa espécie de divisão de trabalho. Assim, por exemplo, a propriedade de nome Massapé era a responsável pela produção do algodão. Este era cultivado geralmente em consórcio com culturas de subsistência. Foi o caso da safra daquele ano, quando havia sido plantado “um roçado de algodões novos deste ano (...) com o milho, feijão, jerimuns, semente de carrapato e o mais que se acham dentro do dito roçado.” Depois de colhido o algodão era descaroçado, maior problema era a invasão de terras agrícolas por animais, que acabava por gerar conflitos violentos que nem a intervenção do Estado, através das autoridades constituídas, era capaz de pôr fim. Em dezembro de 1846, houve em Fagundes um grande embate entre “gadistas” e “lavradores”, agravado pela seca que castigava a região por aqueles anos. Chamado a intervir, o subdelegado João Alves Viana, acompanhado de seu irmão, o comandante superior da Guarda Nacional Bento José Alves Viana, foi mortalmente atingido por um disparo dado por Bento Francisco de Macedo, provavelmente a mando de um dos grupos em confronto. Por envolver membros de um dos clãs mais influentes do município, a notícia (“o ponto negro que veio escurecer o quadro fiel e lisonjeiro da segurança individual”, na instrutiva metáfora do presidente da província, especialmente em se tratando de uma sociedade escravista) foi amplamente divulgada nos meios oficiais. Contudo, quantos fatos dessa natureza envolvendo homens comuns ficaram no anonimato ou perdidos em meio a papéis pouco nobres aos olhos das elites? Ver Relatório apresentado à Assembléia legislativa provincial da Paraíba do Norte pelo Exmº Sr. tenente-coronel Frederico Carneiro Campos em 03 de maio de 1847. <www.crl.edu/content/brazil/pari.htm> Acessado em março de 2006.

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Ver Inventário do coronel José Antonio Vila Seca e sua mulher D. Francisca José de Jesus-1826. ADJFACCG.

transformado em pluma e depois ensacado, beneficiamento esse feito em “um armazém com duas portas e duas janelas com quatro mil telhas, muito velho já a cair no mesmo sitio Massapé”, que contava com equipamentos tais como bolandeira e imprensa. Esse algodão era quase todo vendido no mercado, com exceção talvez da parte menos nobre, utilizada na confecção da indumentária básica dos escravos e demais trabalhadores da fazenda. Da safra de anos anteriores, por exemplo, o coronel havia enviado para o Recife 32 sacas de algodão em pluma. Através da intermediação de um comerciante pernambucano lá instalado, de nome Joaquim da Silva Pereira, o produto foi exportado para a Europa. A safra daquele ano de 1826 foi bastante promissora: desta vez foram 58 sacas, com 367 arrobas do “ouro branco”, avaliadas em, aproximadamente, 1.475$000 contos de réis. Tudo isso transformava José Antonio Vila Seca em um dos principais plantadores e negociantes de algodão locais da primeira metade do século XIX. Mesmo se dedicando prioritariamente à agricultura de exportação, o coronel não se descuidava das outras culturas. No mesmo ano de 1826, em uma outra propriedade, um sítio localizado no brejo de Alagoa Nova, foram plantadas “6.000 covas de roça” de mandioca. Alí também existia uma casa de taipa equipada de aviamentos, tais como “uma roda velha (...) e uma prensa de pau d’arco”, utilizada para a fabricação de farinha de mandioca.

Por outro lado, na propriedade denominada Santa Catarina havia “três currais grandes de madeira de pau-a-pique com mil estacas cada um”, onde eram criadas as 380 cabeças de animais que o defunto deixou, entre gado vacum, cavalar e suíno. Além de servirem como meio de transporte e de força de trabalho, a exemplo de “quatro bois mansos de todo serviço”, a maior parte dos animais era dedicada ao abate e à comercialização nas feiras locais e nos mercados regionais, e deles se aproveitava o couro e a carne. Essa última, combinada das mais variadas formas com a farinha de mandioca, formava a dieta básica da população.

Um dos três herdeiros que dividiram entre si a fortuna deixada pelo coronel foi o alferes Luis Antonio Vila Seca, filho do defunto. Além de parte dos bens que lhe coube na partilha, calculados em 4.245$445, também herdou o prestígio do sobrenome, o qual lhe foi