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Gênese e perfil populacional da escravidão no antigo município de Campina Grande

pela historiografia local.

Partindo desta lacuna historiográfica, objetivamos no presente capítulo reconstituir aspectos demográficos, econômicos e sociais da escravidão no antigo município de Campina Grande. Para isso daremos ênfase aos seguintes tópicos: a gênese histórica da escravidão no município; a procedência dos escravos africanos locais no contexto da diáspora negra no Novo Mundo; as peculiaridades da crioulização da população escrava e o processo de reprodução endógena da escravaria local; a composição étnica da população cativa e suas implicações; a estrutura e distribuição da propriedade escrava no município; o preço dos escravos e sua evolução no tempo; o peso da propriedade escrava no conjunto dos bens dos proprietários escravistas; ocupação e distribuição da escravaria entre as principais atividades econômicas do município.

Gênese e perfil populacional da escravidão no antigo município de

Campina Grande

A população escrava da Paraíba do Norte sempre figurou numa posição intermediária entre as maiores e as menores províncias escravistas do Império no século XIX. A título de comparação, tomemos como exemplo Pernambuco e Rio Grande do Norte. O contingente cativo da primeira província sempre esteve entre os maiores, desde o início da colonização até praticamente as décadas finais dos oitocentos, enquanto a segunda pode ser incluída entre as que menos concentravam escravos no período em foco. Vejamos então a evolução da população escrava em cada uma delas, em diferentes momentos do século:

No primeiro período os cativos da Paraíba representavam 1,5% da população escravizada brasileira; no segundo momento esse percentual aumentou ligeiramente, chegando a 1,7%; no terceiro continuou subindo até atingir o seu limite máximo em 2,8%, para depois declinar e voltar a patamares do começo do século no censo de 1872, chegando ao índice de 1,4%.

Quanto à participação do quantitativo servil no conjunto da população da Paraíba, o quadro mudou ao longo do tempo, adquirindo diferentes configurações no que diz respeito à relação escravos X livres:

Quadro 4: POPULAÇÃO DA PARAÍBA POR CONDIÇÃO CIVIL – SÉCULO XIX

Período Escrava Livre Total

1819 16.723 79.725 97.448 1823 20.000 102.407 122.407 1867 40.000 260.000 300.000 1872 21.526 354.700 376.226 FONTE: Estatísticas Históricas do Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro: IBGE, 1990.

Observamos que, em que pese o número absoluto de escravos ter crescido durante a maior parte do tempo, chegando ao limite de 40.000 em 1867, houve um declínio acentuado em termos relativos. Se em 1819 os escravos representavam 17,3% do conjunto da população paraibana, em 1872 eles eram apenas 5,7% daquele universo, ao contrário da população livre que cresceu em termos absolutos e relativos. Além de fatores históricos, tais como alforrias, tráfico interprovincial, mortes etc., o quadro acima é explicável por uma taxa de crescimento

Quadro 3: COMPARAÇÃO DA POPULAÇÃO ESCRAVA DA PARAÍBA COM OUTRAS PROVÍNCIAS DO IMPÉRIO – SÉCULO XIX

Paraíba Pernambuco Rio G. do Norte Brasil

Período População Período População Período População Período População

1819 16.723 1819 97.633 1819 9.109 1819 1.107.389

1823 20.000 1823 150.000 1823 14.376 1823 1.147.515

1867 40.000 1867 250.000 1867 5.000 1867 1.400.000

1872 21.526 1872 89.028 1872 13.020 1872 1.510.806

FONTE: Estatísticas Históricas do Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro: IBGE, 1990. 118

natural maior entre um contingente populacional e outro. Em outros termos, os livres cresceram numa proporção bem mais acentuada que os escravos.

Esse contingente de trabalhadores estava distribuído por diferentes microrregiões da província. No litoral, estes trabalhadores estavam concentrados especialmente na zona da mata açucareira, enquanto nas áreas interioranas se dividiam entre os setores da pecuária, agricultura e serviço doméstico. Durante muito tempo todo o interior da província fazia parte da área conhecida como “sertões”, conforme visto no primeiro capítulo. Com o tempo foi se constituindo uma diferenciação nesse todo maior, com a emergência de uma região intermediária denominada de agreste.189 Nessa estava situado o antigo município de Campina Grande, que também cresceu à sombra da escravidão.

Para Campina Grande só dispomos de informações sobre o contingente escravo que nos permitem fazer uma comparação com o conjunto da população do município em dois momentos do século XIX, havendo por isso mesmo muitas lacunas no tempo.190 O primeiro se refere a um levantamento populacional da Paraíba organizado pela presidência da província e divulgado em 1851, enquanto o segundo conjunto de dados se refere ao censo nacional de 1872. Com eles montamos o seguinte quadro:

Quadro 5: POPULAÇÃO DE CAMPINA GRANDE POR CONDIÇÃO CIVIL – SÉCULO XIX

Período Escrava Livre Total

1851 3.446 14.449 17.895 1872 1.105 13.999 15.104 FONTE: Relatório apresentado à Assembléia provincial da Paraíba do Norte pelo

excelentíssimo presidente Antônio de Sá Albuquerque em 02 de agosto de 1851; Recenseamento Geral do Império do Brasil – 1872.

Em 1851, a população escrava de Campina Grande atingiu o seu ponto limite. Nesse sentido, Campina (juntamente com o município sertanejo de Sousa) era o município que detinha, isoladamente, a maior parcela de cativos da província, com exatos 3.446, representando 12,1% da população escravizada de toda a Paraíba, calculada em 28.546 indivíduos, superando assim a própria capital da província, que contava então com 1.387

189

Ver JOFFILY, Irenêo. Op. cit. p. 125/135.

190

A realização de censos populacionais no século XIX implicava o enfrentava de várias dificuldades. O principal problema era de natureza política, além de questões de ordem operacionais ligadas à falta de pessoal capacitado e à carência de recursos matérias, aparecendo com freqüência na documentação oficial desde pelo menos 1825. Na Paraíba a temática atingiu tal nível de gravidade que se transformou numa das principais razões para a revolta popular do Ronco da Abelha, pois o decreto imperial que mandava executar o censo em 1851 foi interpretado por parcelas da população como uma lei que visava tornar cativo o povo, em especial os chamados “homens de cor”. Sobre as implicações políticas dos censos no contexto de formação do Estado nacional ver BOTELHO, Tarcisio R. “Censos e construção nacional no Brasil imperial”. In. Tempo Social. V. 17, Nº 1, p. 321/341.

indivíduos escravizados. No que diz respeito ao total de habitantes do município, os cativos da “Rainha da Borborema” representavam 19,3% de seus 17.895 moradores. Em 1872, passados, portanto, pouco mais de uma década, esse cenário demográfico se alterou consideravelmente, verificando-se um declínio substancial da escravaria em relação ao conjunto da população, tanto provincial como municipal. Agora a população cativa local representava 5,1% dos 21.526 escravos paraibanos. Quanto à população total de Campina Grande, sofreu um declínio como um todo no interstício de tempo apontado acima, passando de 17.895 para 15.104. Porém, o ritmo foi muito mais acentuado no interior da população cativa do que na livre. Nesse sentido, os 1.105 escravos campinenses representavam apenas 7,3% da população do município.

Ao que tudo indica, com pequenas variações conjunturais, essa foi uma tendência de longo prazo, conforme podemos perceber no quadro a seguir:

Quadro 6: EVOLUÇÃO DA POPULAÇÃO ESCRAVA DE CAMPINA GRANDE - 1850/1887

Ano Número de Escravos Índice (1850 = 100)

1851 3.446 100,0 1872 1.105 32,1 1876 1.206 35,0 1880 1.130 32,8 1883 952 27,6 1884 913 26,7 1886 815 23,6 1887 543 15,7

FONTE: VIANNA, Marly de Almeida Gomes. A estrutura de distribuição de terras no

município de Campina Grande: 1840-1905. Mestrado em Economia Rural.Campina Grande:

UFPB, 1985.

O detalhe digno de nota no quadro acima diz respeito aos números referentes ao período 1872 e 1880. Nesse caso podemos observar uma interrupção na queda da população escrava que vinha se acentuando desde 1851, verificando-se inclusive um aumento em 1876 e em seguida um retorno aos patamares de 1872 em 1880.191 Desta data em diante temos um

191

Uma possível razão para tal fato talvez se deva à origem dos dados utilizados para cada um desses anos. É que para 1872 foram utilizados os dados do censo, enquanto que para 1876 e 1880 a referência foi o registro geral de escravos da matrícula de 1872/1873. Como bem destacou Robert Slenes, embora realizadas quase que ao mesmo tempo, ambos os recenseamentos contaram com metodologias e fins distintos, registrando-se diferenças significativas no resultado final de cada um deles. Nesse sentido, mesmo levando em consideração que tenha havido defasagem para mais ou para menos tanto em uma como em outra fonte, houve uma tendência de sub-representação dos números do censo em comparação com os da matrícula. A esse respeito, foi justamente na Paraíba que se deu a maior diferença entre o resultado final de um e outro levantamento do elemento servil em relação ao conjunto das províncias do Império. Enquanto que o censo apresentou 21.526 escravos, a matrícula registrou 27.245. Uma diferença absoluta de 5.719 ou, termos percentuais, de 27% em favor da matrícula. É possível, portanto, que esse índice provincial geral tenha se refletivo na contagem da escravaria de cada município, inclusive Campina Grande. Ver SLENES, Robert. “O que Rui Barbosa não queimou: novas 120

declínio lento e gradual, porém persistente, a ponto de que às vésperas da abolição o município atingiu um percentual de apenas 15,7, em comparação com o máximo alcançado 36 anos antes. Como teremos oportunidade de discutir em momentos posteriores, o movimento da população cativa do município no tempo esteve ligado a diferentes fatores estruturais e conjunturais, tanto de ordem interna como externa.

Resta por enquanto discutir a gênese histórica da escravidão em âmbito local. Um primeiro aspecto a ser destacado é que os primeiros escravos de Campina Grande foram os indígenas da nação tapuia que escaparam das doenças, da expropriação de suas terras e à sanha destruidora dos Oliveira Ledo e de seus aliados, no conflituoso processo de conquista e ocupação dos sertões da capitania, entre os finais do século XVII e início do século XVIII. Indícios dessa realidade se encontram nos inventários de tempos posteriores, quando aparecem escravos com a denominação étnico-racial de “caboclo”. Estes foram os primeiros trabalhadores compulsórios engajados nas mais diversas atividades, a exemplo do transporte de mercadorias, no erguimento das cercas dos currais, na criação de animais na pecuária, na plantação, recolha e cuida dos roçados de alimentos, na construção dos prédios públicos e privados das casas grandes, capelas e igrejas etc. Porém, logo em seguida foram chegando os primeiros africanos, em função da existência prévia do tráfico Brasil/África, devido à insuficiência de indígenas para dar conta das atividades produtivas e da expansão das atividades sócio-econômicas do povoado (1697), depois Vila Nova da Rainha (1790) e finalmente cidade de Campina Grande (1864), possibilitando assim um acúmulo de riqueza com o conseqüente acesso de determinados grupos sociais à compra de cativos no circuito transatlântico, via porto de Recife. Com o tempo, esses mesmos africanos e seus descendentes foram se transformando na maior parte da sua força de trabalho, ao lado de diversos tipos de trabalhadores “livres”, tais como jornaleiros, moradores, meeiros e agregados. Nesse sentido, podemos afirmar que o antigo município de Campina Grande não só tinha escravo, mas também foi se constituindo numa sociedade efetivamente escravista, em função do enraizamento desse tipo de relação social em seu cotidiano. Para se ter uma idéia da força da escravidão na dinâmica da sociedade local, bastar dizer que em 911 dos inventários pesquisados 570 contavam com escravos em seu espólio, ou seja, 62,6%. Um percentual significativo que fica mais evidenciado se distribuirmos os dados por década, conforme aponta o quadro abaixo:

fontes para o estudo da escravidão no século XIX”. In. Estudos econômicos. Nº 13, janeiro/abril de 1983, p. 117/149.

Quadro 7: PARTICIPAÇÃO DOS PROPRIETÁRIOS DE ESCRAVOS EM RELAÇÃO AO CONJUNTO DOS INVENTARIADOS EM CAMPINA GRANDE –

1785/1888 Período Percentual 1785 – 1799 93,8 1800 – 1810 80,0 1811 – 1820 89,5 1821 – 1830 87,7 1831 – 1840 66,4 1841 – 1850 80,0 1851 – 1860 65,7 1861 – 1870 50,3 1871 – 1880 48,4 1881 – 1888 34,6

FONTE: Inventários post-mortem – 1785/1888. Como podemos observar, houve momentos em que o número de inventariados com escravos chegou a ultrapassar a 90% dos proprietários, especialmente entre finais do século XVIII e as primeiras décadas do XIX. Mesmo nas vésperas da abolição - quando a instituição sofria ataques por todos os lados, a começar de baixo com a crescente contestação escrava - um significativo número de 34,6% de senhores continuava aferrado às praticas escravistas.

Escravidão, tráfico transatlântico e origem das “nações” africanas de