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SOCIEDADE, ECONOMIA E DEMOGRAFIA ESCRAVA EM CAMPINA GRANDE

Maria do Carmo Lopes contraiu núpcias com José de Sousa Carneiro e com este passou a residir na então Vila Nova da Rainha, na Província da Paraíba do Norte. Depois de algum tempo de vida em comum, o matrimônio chegou ao fim, tendo a mulher depois disso retornado para a casa paterna, localizada na Vila de Santo Antonio do Recife, em Pernambuco. Apesar do processo de separação em curso, os bens do casal ficaram sob a administração do ex-marido, sendo para isso remunerado pelo sogro, de nome Paulo Manoel Lopes. Porém, em 1820 este último morreu. Durante a abertura do inventário, Maria solicitou, através de uma carta precatória, a remessa dos bens que ficaram sob a responsabilidade de seu ex-marido e que agora faziam parte de sua legítima herança paterna. Dentre esses bens se destacavam sete escravos, que viviam com José de Sousa Carneiro, no Sítio Surrão. Contudo, esse não aceitou de bom grado o pedido, alegando inicialmente que não remeteria bem nenhum enquanto a ação judicial de separação não fosse concluída. Além disto, no caso dos cativos, ele alegava que seria até contraproducente liberá-los naquele momento, pois eles estavam empregados na lavoura do algodão, sem cujo concurso o chamado “ouro branco” jamais poderia ser colhido. Por sua vez, o procurador do embargante, José Ferreira da Silva, depois de insinuar que Maria era uma mulher adúltera e, portanto, sem direito aos bens, retomou a questão nos seguintes termos:

Os escravos contemplados na precatória estão na posse e domínio do embargante, com os quais está trabalhando em lavras de algodão no termo desta vila, e por isso jamais devem ser tirados do seu poder e remetido para a Praça do Recife antes daquela decisão do divórcio, uma vez que a sua conservação no poder do embargante, seu legítimo administrador, é útil e proveitosa ao seu casal, porque os lucros do trabalho dos mesmos aumenta as suas forças, e virá a servir de benefício a mesma embargada.185

Pouco mais de uma década depois, em “dias de abril de 1831”, sentindo a morte se aproximar, Antonio da Costa Gadelha, solteiro, morador na povoação do Bacamarte, também termo da Vila Nova da Rainha de Campina Grande, decidiu que era chegada a hora de acertar contas com os vivos e os mortos. Para isso resolveu fazer seu testamento, deixando expressas

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Ver Carta precatória vinda da Vila de Santo Antonio do Recife, província de Pernambuco, para a Vila Nova da Rainha a requerimento de Maria do Carmo Lopes contra seu marido José de Souza Carneiro-1820. Documento avulso. ADJFACCG.

suas últimas vontades, tanto em relação às coisas do mundo material como em relação às do espírito.

Apesar de “doente de moléstia que Deus foi servido dar-lhe”, Antonio se encontrava no seu mais pleno “juízo e melhor de mim e de todas as minhas potências e faculdades mentais com perfeito conhecimento do que faço”. Por isso mesmo se sentia em condições de ele mesmo comandar todo o cerimonial de confecção do testamento.

Como era praxe em uma sociedade ainda tão marcada pela religiosidade em cada gesto cotidiano, abriu o testamento invocando a proteção dos entes sagrados de sua preferência no panteão católico: “Em nome da Santíssima Trindade Padre Filho Espírito Santo em quem eu Antonio da Costa Gadelha firmemente creio em cuja fé protesto viver e morrer como bom católico”.186

Depois de traçar um pequeno perfil autobiográfico, dedicou o restante do tempo para detalhar seus últimos desejos. Nesse ponto, seguiu mais ou menos o script da época. Quanto ao cerimonial fúnebre, solicitou que quando a morte chegasse queria ser sepultado na capela do lugar da maneira mais simples possível, ou seja, “sem pompa alguma com as despesas mais módicas que puder ser”. Entretanto, não esqueceu (dentro do melhor espírito da filantropia cristã) de olhar para os necessitados, ao pedir que da terça parte dos bens, de que podia dispor livremente, fossem separadas quatro vacas, as quais deixavam “por amor a Deus” para as suas duas sobrinhas e afilhadas de nomes Antonia e Francisca. Testamentos também são fontes privilegiadas para o reconhecimento das “fragilidades humanas” do testador. Por isso mesmo era comum que erros e falhas enterrados no passado por muito tempo fossem desencravados e assim viessem à público; tal confissão era fundamental para que pudesse haver oportunidade para a remissão dos pecados. Nesse sentido, o momento mais solene do testamento de Antonio da Costa Gadelha foi quando resolveu instituir como seu herdeiro Antonio, filho natural e fruto de “amizade ilícita” com a inventariante Izabel Maria.

Após rogar a Antonio Nunes Pereira que fosse seu fiel testamenteiro, Antonio da Costa Gadelha deu por findo o testamento. Contudo, para que o mesmo tivesse força de lei, o Escrivão do Juiz de Paz foi convocado a ir a “casas de morada” do testador para fazer o cerimonial de praxe, onde foi aprovado em 11 de abril de 1831, acompanhado da presença das respectivas testemunhas, conforme prévia a legislação. Dentre as pessoas que serviram de

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Ver Inventário de Antonio da Costa Gadelha-1831. ADJFACCG. Ao que parece, o registro oficial de testamentos em cartório era prática pouco usual em Campina Grande no século XIX. Dos mais de 900 inventários post-mortem pesquisados apenas 51 vieram acompanhados de disposições testamentárias, assim distribuídas no tempo: 2 entre 1800/1810; 2 entre 1811/1820; 1 entre 1821 e 1830; 14 entre 1831/1840; 8 entre 1841/1850; 7 entre 1851/1860; 1 entre 1861/1870; 1 entre 1871/1880 e 5 entre 1881 e 1890.

testemunha naquela ocasião estavam Francisco de Mendonça Furtado, José Joaquim de Souza e o Alferes Francisco Lopes de Vasconcelos, todos moradores e vizinhos no lugar Bacamarte. Quando perguntados sobre seus meios de sobrevivência, o primeiro respondeu ser “agricultor e negociante”, enquanto o segundo disse viver de “negócios”. Já o último, o alferes Francisco Lopes Vasconcelos, foi mais direto ao assunto, ao responder que vivia “do trabalho de seus escravos”.

As duas fontes citadas acima poderiam remeter o pesquisador para diferentes questões. No primeiro caso, poderíamos questionar a imagem tradicional das mulheres no Brasil escravista, vistas durante muito tempo pela historiografia como vítimas passivas da dominação masculina, fosse do pai, fosse do marido ou mesmo de outros homens. Afinal de contas, Maria do Carmo Lopes não só se separou do marido (questionando outro sacrossanto valor daquela sociedade: o caráter indissolúvel do casamento cristão), como também ousou lutar pelos seus direitos, buscando reaver bens que José de Sousa Carneiro teimava em reter ilegalmente. Para compreender a sua atitude não precisaríamos transformá-la numa espécie de proto-feminista, isso por duas razões históricas básicas. Em primeiro lugar, o seu exemplo, tanto em Campina Grande como em outras partes do Império, foi bem mais freqüente do que até pouco tempo atrás era admitido, apesar dos feitos da opressão que as mulheres sofriam. Em segundo lugar, ela lançou mão das regras da patriarcalismo para legitimar sua atitude, recorrendo à justiça no sentido de resolver o conflito então instaurado.187 Por outro lado, o cerimonial protagonizado por Antonio da Costa Gadelha muito poderia nos ensinar sobre os rituais em torno da morte e do morrer, e sobre as relações dos vivos com o mundo dos mortos, fronteira sobre a qual a experiência religiosa desempenhava um papel crucial.188

Contudo, gostaríamos de explorar o teor das citações com as quais começamos o capítulo por outra via. O que há em comum entre as duas histórias sumariadas acima? Para além de suas diferenças de forma e conteúdo, podemos destacar que ambas chamam a atenção

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A condição feminina no Brasil oitocentista dependia de inúmeras variáveis, tais como os contextos históricos de cada localidade e os diversos tipos de pertencimento: econômico, social, racial, geracional etc. No caso de Campina Grande, por exemplo, encontramos várias delas gerenciando o dia-a-dia dos negócios da casa e da família, inclusive da escravaria. Quanto às mulheres cativas, teremos a oportunidade de discutir as especificidades de sua inserção não só na sociedade mais geral, como também no interior da comunidade escrava. Para uma visão de conjunto dos novos estudos sobre o protagonismo das mulheres na história do Brasil ver DEL PRIORE, Mary (Org). História das mulheres no Brasil. 8ª ed. São Paulo: Contexto, 2006.

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Em Campina Grande observamos que, pelas recomendações deixadas pelos moribundos em relação a sua iminente morte (tais como o número de missas, o acompanhamento, as vestimentas, as esmolas etc), os rituais em torno da morte no período pesquisado eram relativamente modestos, em comparação com outras regiões do Brasil. Uma das razões para isso talvez fossem as próprias limitações sócio-econômicas de seus moradores, embora possamos perceber pequenas variações ao longo do tempo, especialmente em relação a alguns proprietários mais abastados. Sobre a cultura da morte e do morrer no Brasil, ver REIS, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

para a importância que é dada ao trabalho de escravos na manutenção e reprodução sócio- econômica daquela sociedade, vista em perspectiva microscópica. Tanto as inquietações do casal que briga na justiça pelo espólio que cabia a cada um deles quanto o testemunho de um alferes, que empresta legitimidade às últimas vontades do amigo no leito de morte, revelam em tom quase confessional como suas sobrevivências dependiam da exploração de trabalhadores escravizados. Estas relações de dependência ficavam expressas concretamente na labuta do algodão ou então de forma genérica, mas nem por isso menos incisiva, na sugestiva expressão “do trabalho de seus escravos”. Nesse sentido, poderíamos continuar a citar falas de contemporâneos que caminham na mesma direção. Mesmo que claramente reducionistas, pois transformam os cativos em mera força de trabalho, esses olhares nos remetem a uma realidade cada vez mais evidente à medida que avançamos na investigação histórica: a de que a escravidão marcou consideravelmente a história do antigo município de