• Nenhum resultado encontrado

Não poderíamos encerrar essa seção sem apresentar e discutir o uso metodológico dispensado à documentação. Nesse sentido, gostaríamos de lembrar algumas reflexões do já mencionado Carlo Ginzburg a respeito da questão. Ao estabelecer uma analogia entre a estratégia de busca da verdade por parte dos antigos inquisidores com os procedimentos do trabalho de campo dos modernos antropólogos, ele apresenta importantes reflexões para a história, especialmente no que diz respeito à forma como o historiador se relaciona com as suas fontes.47 Se essas questões levantadas pelo historiador italiano são válidas para a disciplina como um todo, o são ainda mais para determinadas tendências e objetos de estudo. É o caso dos que lidam com a temática da escravidão no Brasil, que sabem muito bem dos obstáculos que os cercam quando o assunto é documentação. Esse quadro tende a se agravar quando se busca resgatar a história da escravidão a partir do ponto de vista dos escravos, pois como sabemos foram pouco os homens e mulheres escravizados que deixaram registros diretos de suas experiências no cativeiro, e tampouco houve interesse posterior em preservar a memória oral dos seus descendentes.48 Contudo, como vimos há pouco, já de algum tempo os historiadores da escravidão no Brasil vêm buscando contornar essas dificuldades de ordem metodológica, reunindo e explorando sistematicamente determinados tipos de fontes ditas “oficiais”.

Neste rol se encontra a maior parte da documentação que serve de suporte para a presente tese. Apesar dos muitos filtros interpostos entre as fontes e nó,s entendemos que quando bem inquiridas elas podem trazer à tona as muitas e contraditórias “vozes do passado”, uma verdadeira polifonia, mesmo que assimétrica, em que o oral e o escrito se

47

Ver GINZGURG, Carlo. “O inquisidor como antropólogo”. Revista Brasileira de História. São Paulo: Vol 1, Nº 21, setembro 1990-fevereiro 1991, pp. 09/20. Republicado em GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Como já havia ocorrido anteriormente com o conceito de “circularidade cultural”, a tese do caráter polifônico dos testemunhos históricos (idéia central do artigo de Ginzburg acima citado) foi largamente inspirada nas reflexões do teórico russo da literatura Mikhail Bakhtin. Desse último ver, respectivamente, BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade média e no Renascimento. São Paulo: HUCITEC/Brasília: EDUNB, 1999; BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

48

Louvem-se aqui iniciativas empreendidas recentemente por pesquisadores interessados na trajetória de escravos e seus descendentes nos anos finais e período posterior ao cativeiro. Ver RIOS, Ana Lugão e CASTRO, Hebe Mattos de. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: 2005.

cruzam.49 Quanto aos escravos, suas vozes aparecem aí de diversas maneiras e em diferentes tonalidades, às vezes emudecidas, outras tantas ensurdecedoras.

A base da nossa documentação é formada por três quatro grandes séries, a saber: inventários post-mortem, processos criminais e ações cíveis de liberdade e escravização. Esse material encontra-se arquivado, embora nem sempre em condições ideais, no Depósito Judicial do Fórum Afonso Campos de Campina Grande; no Arquivo do Cartório da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Campina Grande e no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.

Inventários: O inventário é um instrumento legal que regulamenta o direito de propriedade no momento de sua transmissão para os herdeiros do morto. Embora variasse aqui e ali, o mesmo seguia uma estrutura mais ou menos uniforme, prevista pela legislação de época.50 Quando da morte do proprietário, chamado de inventariado, o juiz de órfão convocava o seu representante legal, chamado de inventariante, geralmente um parente (viúvo, filho, pai, irmão etc) encarregado de prestar contas de todos os bens acumulados em vida pelo morto, sob pena de severas punições. Quando havia herdeiros menores de 21 anos de idade, era-lhes nomeado um tutor para gerir a sua pessoa e bens, isso em função da incapacidade civil dos mesmos.

Após o rito inicial, com seus diversos juramentos de praxe, o processo se instaurava com a descrição propriamente dita dos bens. Para isso o juiz indicava dois avaliadores, pessoas da comunidade encarregadas de atribuir o valor monetário de cada um dos itens descriminados. Quanto a estes últimos, variavam de proprietário para proprietário e de época para época, indo desde os que apresentavam verdadeiras fortunas até aqueles cujos bens mal davam para cobrir as dívidas e custas judiciais. Grosso modo, o primeiro desses itens avaliados dizia respeito ao dinheiro que por acaso o defunto tivesse deixado. Na seqüência temos os objetos em ouro (cordão, anel, crucifixo, brinco, pulseira etc), prata (garfos, colheres, facas, fivelas, etc), cobre (especialmente tachos e panelas), ferro (enxada, machado, foice etc), imóveis (casas e os mais variados objetos de uso doméstico e cotidiano, tais como mesas, bancos, cadeiras, camas, cangalhas, estrado, caixão etc), animais (gado, eqüinos,

49

Sobre as “vozes do passado” ver DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

50

No período colonial, e ainda durante boa parte da história do Império pós-independência, o Brasil foi regido, nos vários campos de sua vida social, pela legislação emanada dos monarcas portugueses, sendo a mais famosa e longeva delas a compilada no reinado de D. Felipe I, em 1603, o chamado Código Filipino, composto de cinco livros. As normas que regiam o direito de propriedade e sua transmissão, incluindo aí a feitura dos inventários, estavam contidas principalmente no seu livro quarto. Ver Código Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal Recompiladas por Mandado d’EIRey D. Philippe I (1603) . 14ª ed. Rio de Janeiro, Typ. do Instituto Philomathico, 1870.

porcos, ovelhas, cabras etc), bens semoventes (escravos), bens de raiz (especialmente terras e lavouras) e dívidas, que podiam ser de duas naturezas: passivas e ativas.

Depois de descriminados e avaliados, os bens eram somados. Aqui, mais uma vez, o juiz de órfão interferia, nomeando dois novos “técnicos”, os partidores, desta vez para estabelecer a divisão dos bens entre os herdeiros. A divisão do espólio era feita da seguinte maneira: ao viúvo (a) era atribuída a metade dos bens, a denominada meação. Caso o inventário viesse acompanhado do testamento, era permitido ao defunto dispor de 1/3 da metade dos bens a que tinha direito por lei. Quanto à outra metade, era dividida eqüitativamente entre os demais herdeiros, através da chamada legítima.

Além desse núcleo básico, outras peças legais poderiam ser agregadas ao corpus principal de um inventário, sendo as mais comuns os autuamentos de credores buscando justificar a cobrança de dívidas contraídas pelo falecido; os autos de conta dos órfãos, prestados periodicamente pelos tutores; o testamento, cujo conteúdo expressava as últimas vontades do inventariado e petições várias de escravos, cujo objetivo visava assegurar certos direitos adquiridos e muitas vezes ameaçados pelos herdeiros, como era o caso das alforrias previstas em testamentos ou mesmo pactuadas entre as partes.

Mesmo que não tenham sido pensados como tal, com o tempo os inventários adquiriram o status de fonte histórica, principalmente com a revolução teórica e metodológica que a historiografia experimentou no século XX. Encarados num primeiro momento pelos genealogistas como base para se estabelecer, na linha do tempo, a origem e legitimação do domínio das famílias tradicionais, hoje eles se transformaram em um valioso instrumento para a reconstituição de diferentes traços da vida material e espiritual de uma determinada sociedade, a exemplo das noções de riqueza e pobreza então imperantes; as crenças religiosas dominantes; as relações sociais tecidas no cotidiano; as atividades econômicas mais destacadas; os modos peculiares de se vestir, morar, trabalhar, alimentar, morrer etc.51

Salvo engano nosso, foi Elpídio de Almeida quem primeiro fez uso dessa documentação, em termos de historiografia local. É verdade que de forma assistemática e bastante conservadora, principalmente no que diz respeito ao potencial crítico que a mesma enseja. A historiadora Marly Vianna utilizou exaustivamente os inventários como base de sua

51

No Brasil, foi Alcântara Machado que em 1929 utilizou pioneiramente os inventários como fonte histórica para a reconstituição de aspectos materiais e culturais da sociedade paulista colonial. Em relação à temática da escravidão, coube a Kátia Matosso o uso moderno e sistemático dessa documentação em suas pesquisas sobre a Bahia oitocentista. Ver MACHADO, Alcântara. Morte e vida do bandeirante. 2ª ed. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1990; MATOSSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo: HUCITEC, 1978.

já comentada pesquisa sobre a estrutura da propriedade agrária e as relações sociais correlatas no antigo município de Campina Grande.52

Na nossa pesquisa, conseguimos arrolar pouco mais de 900 inventários referentes a Campina Grande, no período compreendido entre os anos de 1785 e 1888. Este material foi tabulado e processado em um programa de computador, onde buscamos estabelecer uma série de variáveis quantitativas e qualitativas, no sentido de dar densidade aos argumentos e às hipóteses levantadas ao longo da tese. De alguma maneira esse material, com maior ou menor peso, estará presente nos quatro capítulos programados para a tese, especialmente naquele em que tratamos da demografia escrava vigente no município. No que diz respeito ao ponto fulcral do trabalho (ou seja, a questão da escravidão e a resistência escrava) algumas conclusões parciais já podem ser extraídas. O estudo dos inventários deixa claro que a Campina Grande oitocentista não era só um lugar em que as pessoas possuíam escravos, mas sim que era uma sociedade efetivamente escravista. Isso significa dizer que a posse de escravos não era apenas mais um detalhe daquela sociedade, mas sim o seu traço definidor, em termos econômicos, sociais e políticos. Para se ter uma idéia desse processo, basta dizer que mais de 60% dos inventariados (portanto, a maioria daqueles que morriam e deixavam algum tipo de bem para a sua descendência) registrava a posse de escravos. E mais: o restante da riqueza que tinham, seja em terras, animais, roças, benfeitorias etc, ou foram geradas diretamente ou para a sua manutenção dependiam da sistemática exploração e domínio do trabalho escravo.

Com uma população escrava que se crioulizou precocemente, a estrutura de posse e da propriedade escrava local variou ao longo do recorte temporal estabelecido para o trabalho. Observamos, por exemplo, que até a primeira metade do século XIX era raro o inventário que não acusava a presença de, pelo menos, um escravo. Na segunda metade desse mesmo século o quadro começou a mudar, de forma lenta, porém contínua, fazendo com que a sua posse fosse cada vez mais se concentrando nas mãos de poucos. Isso se deve, além de fatores internos, tais como as secas, a fome, as crises econômicas, as vendas, ao fim do tráfico internacional em 1850, cuja conseqüência primeira foi encarecer o preço dos cativos e, por conseguinte, estreitar a oferta, levando os pequenos e médios proprietários a se desfazer dos mesmos, embora muito paulatinamente. De todo modo, na média, a oferta de escravos foi elástica o suficiente para que na maior parte do tempo muitos indivíduos e grupos sociais possuíssem escravos, contemplando assim diversos segmentos da sociedade.

52

Ver ALMEIDA, Elpídio de. Op. cit; VIANNA, Marly Gomes de Almeida. Op. cit.

Além de permitir a discussão e caracterização da sociedade local, em especial os fatores ligados à realidade econômica e demográfica da escravidão, os inventários também possibilitam ao pesquisador reconstituir aspectos da vida cotidiana dos escravos. Além do nome dos escravos, os mesmos também traziam importantes informações, tais como a origem e a nacionalidade, a cor da pele, a idade, o estado civil, o valor monetário, a profissão, a aptidão para o trabalho etc. Tudo isso nos permitirá estabelecer um perfil da comunidade escrava que aqui se formou ao longo do século XIX, em suas tensões, conflitos e solidariedades.

Como toda fonte histórica, os inventários post-mortem têm suas limitações. Poderíamos aqui citar algumas. Em primeiro lugar, convém sempre recordar que esse tipo de fonte expressa a realidade de forma desequilibrada e parcial. No caso da nossa pesquisa, levantamos todos os processos existentes nas instituições pesquisadas. Para determinados anos há um número significativo de dados e para outros não. Assim, para ficar em comparações limites, localizamos 36 inventários para 1856 (não por acaso, ano do primeiro surto da cólera-morbus na região) enquanto que para outros, a exemplo de 1824, temos apenas um único exemplar. Por outro lado, as evidências contidas nos mesmos nem sempre são uniformes, isso pela natureza mesmo de tais documentos. Se, para ficar apenas nos dados sobre a escravaria, são abundantes e mais ou menos confiáveis os dados sobre preço de cativos, em compensação itens como estado civil e profissão são raros e pouco explícitos. Para minimizar tais lacunas, a solução é fazer o cruzamento com outras fontes, no sentido de confrontar resultados e explicitar argumentos, recurso metodológico esse, aliás, válidos para as outras séries documentais.

Em que pese isso, os inventários continuam a ser uma documentação com grandes virtualidades. Apesar de ser uma fonte aparentemente protocolar e homogênea, eles deixam entrever conflitos e tensões latentes na vida cotidiana, que no momento da morte do proprietário poderiam se manifestar com mais nitidez, a exemplo das muitas pendências envolvendo escravos e herdeiros e o movimento das fugas. Estes traços, por assim dizer silenciosos, serão por nos explorados no sentido de entender as peculiaridades da escravidão e da resistência escrava no município.

Processos Criminais: Em termos de estrutura formal, um processo crime obedecia a diferentes etapas e era composto de várias peças.53 Apesar de algumas variações ao longo do

53

Além do famoso Livro Cinco das ordenações Filipinas, a legislação penal brasileira foi alterada em função do contexto pós-independência, quando foram sancionados o Código criminal do Império e o Código do processo criminal, respectivamente em 1830 e 1832. Este último foi sofreu duas grandes reformas: em 1841 e 1871. Ver 43

século, seguiu um ritual mais ou menos uniforme. Geralmente ele começava com o inquérito policial, dirigido por um delegado ou sub-delegado de polícia. A partir da queixa ou denúncia do crime, feita pelo queixoso, o promotor de justiça ou mesmo alguém da comunidade, os fatos eram circunstanciados, com a descrição do local do ocorrido, a data, o tipo de delito e os principais envolvidos. Em seguida, era feito um exame de corpo de delito ou uma vistoria no local do crime. Logo depois, a vítima e as primeiras testemunhas eram ouvidas. Caso fosse preso em flagrante ou imediatamente após o ocorrido, era feito junto ao réu o chamado auto de qualificação. Vencida essa etapa, a autoridade competente fazia uma espécie de relatório, que por sua vez era remetido ao juiz municipal. Aqui o processo entrava numa segunda etapa. A par das circunstâncias e dos fatos, o juiz aceitava ou não a denúncia. Se não aceitasse, o processo era arquivado ou então as peças eram devolvidas à autoridade policial para a re- instrução do processo, no sentido de evidenciar melhor as provas contra o suposto criminoso. Caso o processo fosse aceito, era remetido ao promotor público para a pronúncia do (s) acusado(s). Nesse momento, o juiz municipal passava a dirigir os autos, com a inquirição de testemunhas e réus, das razões dos advogados de defesa e de acusação e com a reunião de mais provas. É a chamada formação da culpa. Concluídos os trabalhos dessa etapa, o réu era enquadrado em um dos artigos do código criminal e tinha seu nome lançado no rol dos culpados, através de um libelo criminal oferecido pelo promotor. Após estar devidamente instruído, o processo era remetido ao Juiz de Direito, autoridade responsável pela direção do julgamento propriamente dito da causa. Mais uma vez, testemunhas e réus eram convocados; o promotor e os advogados de defesa e de acusação apresentavam seus arrazoados finais. Depois de tudo isso, era apresentada ao corpo de jurados uma série de questões atinentes ao crime, que deveriam ser respondidas na afirmativa ou negativa. A par desse quadro de respostas, o Juiz de Direito estabelecia a pena ou a absolvição para o réu por meio de uma sentença. Determinados delitos eram julgados por um corpo de jurados. Findo o processo em primeira instância, as partes podiam interpor recurso junto ao Tribunal da Relação de Pernambuco, em Recife, ou ao Supremo Tribunal de Justiça, no Rio de Janeiro.

A exemplo dos inventários, as ações criminais também não foram pensadas pelos seus agentes como fontes históricas. Porém, elas se transformaram numa das mais interessantes séries documentais utilizadas pelos historiadores para entender não só o discurso e a lógica de funcionamento da justiça (mediante a análise da ação e o saber de juízes, promotores, Código Philippino...; Pierangelli, José Enrique. Códigos penais do Brasil. Evolução histórica. Bauru; Jalovi, 1980, pp. 167/265; Código do processo criminal de primeira instância do Império do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Typographia Franceza, 1842.

advogados e escrivãos), mas, principalmente, as tensões e conflitos de sociedades atravessadas por divisões e assentadas em fortes hierarquias sociais tecidas no tempo e no espaço, como era caso da sociedade escravista brasileira do século XIX.54

Em termos de historiografia campinense, mais uma vez coube a Elpídio de Almeida o pioneirismo no uso dos processos crimes como fonte histórica, em que pese as suas limitações interpretativas, ligadas ao contexto histórico em que viveu e ao arcabouço teórico e metodológico que informou a obra que escreveu em homenagem ao centenário da cidade.55 A exemplo da historiografia brasileira como um todo, vários trabalhos locais, principalmente aqueles de natureza acadêmica, vêm utilizando esse tipo de material para a reconstituição de diferentes aspectos da história de Campina Grande.56

Na nossa pesquisa conseguimos localizar, aproximadamente, 60 ações criminais, que versam sobre os mais diferentes tipos de delito, a exemplo de homicídios, ferimentos, roubos, furtos e ofensas morais, que oferecem um painel das tensões e conflitos vividos pela sociedade no contexto e na dinâmica do século XIX, particularmente no período que vai do ano de 1832 até 1889. Quanto aos escravos, aparecem aí em diferentes papéis: na condição de vítimas, de réus, como testemunhas informantes de crimes de terceiros ou mesmo coadjuvando as ações principais. Pretendemos explorar essa documentação no primeiro e, especialmente, no quarto capítulo, quando buscaremos, a partir da análise do fenômeno da criminalidade (visto em suas múltiplas dimensões), entender a lógica e a estrutura de funcionamento de uma cultura de resistência escrava.

Ações Cíveis de Liberdade e Escravidão: Embora a sociedade escravista limitasse a personalidade jurídica e humana dos cativos, ao concebê-los como coisas, em determinadas situações esse quadro se alterava, em função do uso, por diferentes sujeitos sociais, de elementos do Direito positivo e costumeiro. É o caso das ações cíveis de liberdade e escravidão, acionadas em determinados contextos históricos por escravos e senhores, com objetivos muitas vezes opostos: os cativos, quando percebiam que determinados direitos seus

54

O primeiro (senão um dos primeiros) trabalho a usar sistematicamente processos criminais foi escrito pela socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco. No que diz respeito à escravidão, esse pioneirismo coube à historiadora Suely Robles Queiroz. Ver FRANCO, Maria Silvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1974; QUEIROZ, Suely Robles Reis. Escravidão negra em São Paulo. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1977.

55

. Ver ALMEIDA Elpídio. Op.cit.

56

Ver SOUSA, Fabio Gutemberg R. B. de. Cartografias e imagens da cidade: Campina Grande (1920-1945). Doutorado em História. Campinas: UNICAMP, 2001; SOUZA, Antonio Clarindo de. Lazeres permitidos, prazeres proibidos: cultura e lazer em Campina Grande (1945-1965). Doutorado em História. Recife: UFPE, 2002.

estavam sendo violados; os senhores quando viam seus interesses de proprietários contrariados.

Uma ação cível começava quando uma das partes interessadas entrava com uma petição em juízo.57 No caso do escravo, ele tinha que apresentar a petição através de um terceiro, que podia ser assinada por qualquer homem livre. Se o pedido fosse deferido, o Juiz municipal de órfãos nomeava um curador e solicitava um depositário, pessoa que ficava