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Escravidão, tráfico transatlântico e origem das “nações” africanas de Campina Grande

Se vamos priorizar em nosso trabalho a escravidão negra, cabem aqui algumas indagações preliminares: quem eram os africanos que vieram para Campina Grande e aí foram transformados em escravos? Quais os caminhos e redes de interesses que percorriam, desde o momento em que eram deportados de suas terras de origem até chegarem a estas plagas? Quais as peculiaridades dos contextos do tráfico, e os diferentes fluxos de escravos e suas ligações com as conjunturas locais e regionais? Qual a procedência étnica dos escravos e as implicações desse processo para a formação de uma comunidade escrava? É esse conjunto de questões que tentaremos responder neste tópico.

Antes de tudo, convém lembrar que o tráfico transatlântico foi uma das experiências históricas mais dramáticas na formação do mundo moderno; especialmente entre os séculos XV e XIX, milhares e milhares de seres humanos foram deportados de seus lugares de origem, alterando assim definitivamente não só o destino das sociedades africanas como também as das Américas e da Europa. Em termos quantitativos, mais de dez milhões de africanos foram deslocados para diferentes regiões do Novo Mundo a labutar como trabalhadores do eito, na pequena e média produção de alimentos, na pecuária, na mineração,

em atividades artesanais, no comércio, em serviços domésticos e tantos outros mais.192 Sabe- se cada vez mais, devido ao esforço de uma nova historiografia da diáspora, que as relações entre as partes do que durante muito tempo ficou conhecido como “tríplice comércio” foi algo bem mais complexo do que se possa imaginar. Se antes as análises priorizavam, às vezes de forma quase que absoluta, os interesses metropolitanos ligados a grupos de mercadores e comerciantes europeus, hoje esse quadro vem sendo cada vez mais problematizado, com a recuperação da dinâmica das outras partes envolvidas, ou seja, a América e a África. No que diz respeito, por exemplo, aos negociantes negreiros, uma parcela significativa era formada por grupos de origem americana, cuja participação foi se tornando cada vez mais sofisticada, de acordo com as diferentes conjunturas que o comércio de almas enfrentou.193 Porém, a maior mudança talvez tenha se dado em relação ao papel atribuído à África nesse jogo de interesses. Antes de ter assistido passivo a toda a trama do tráfico e das suas trágicas conseqüências humanas, a verdade é que as evidências cada vez mais deixam claro o papel ativo desempenhado pelo referido continente nesse processo. Afinal de contas, a África tinha história e como tal o tráfico transatlântico passava pelo crivo de muita negociação e conflito, envolvendo também as sociedades e os interesses dos grupos locais, de acordo com as diferentes conjunturas e as particularidades de cada povo.194

O Brasil teve um papel fundamental na história do trafico transatlântico, desde o período em que fazia parte do Império colonial português na América, passando pelo

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Apesar dos muitos avanços, inclusive com a formação de um banco de dados internacional, as estatísticas em torno do tráfico de escravos para o Brasil e as Américas continuam sendo uma questão em aberto. O número de dez milhões foi calculado pelo historiador americano Robert Conrad. Essa cifra está bastante próxima de dados apresentados mais recentemente por especialistas no assunto, oscilando entre 9.600.000 e 10.800.000. Para consultar alguns títulos básicos sobre o tráfico negreiro ver, dentre outros, BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. RJ/SP: Expressão e Cultura/EDUSP, 1976; CONRAD, Robert. Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985; ELTIS, David, BEHRENDT e RICHARDSON, David. “A participação dos países da Europa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências”. In. Afro-Ásia. Nº 24, 2000, pp. 09/50; GOULART, Maurício. A escravidão africana no Brasil. São Paulo: Martins, 1949; VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico entre o golfo de Benin e a Bahia de todos os santos. São Paulo: Corrupio, 1987; RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 6ª ed. São Paulo/Brasília: Companhia Editora Nacional/EDUNB, 1982.

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Parte significativa do capital acumulado no Brasil entre fins do século XVIII e começo do século XIX vinha do tráfico negreiro, cujos participantes foram cada vez mais se incorporando à sociedade através de casamentos, compra de terras e títulos. Um dos mais notáveis negreiros brasileiros foi um baiano de nascimento que migrou para o Daomé, na Costa da África, e lá se tornou um dos maiores traficantes da história: Francisco Felix de Souza, o Chachá. Ver SILVA, Alberto da Costa e. Francisco Felix de Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/EDUERJ, 2004.

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Sobre a nova historiografia do tráfico negreiro no contexto da diáspora, ver FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; ELTIS, David e RICHARDSON, David. “Os mercados de escravos africanos recém-chegados às Américas: padrões de preços, 1673-1865”. Topoi. Rio de Janeiro: janeiro/março 2003, pp. 9/46; THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. Rio de Janeiro: Campus, 2004; ALENCASTRO, Luiz Filipe de. O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; SELMA, Pantoja e SARAIVA, José Flávio Sombra. Angola e Brasil nas rotas do atlântico sul (Orgs). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999; Klein, Herbert S. O tráfico de escravos no atlântico: novas abordagens para as Américas. Ribeirão Preto: FUNPEC, 2004.

momento de formação do Estado-nação depois da independência política, até chegar à conjuntura de proibição oficial do mesmo em meados dos oitocentos; aqui se formou uma sociedade escravista cuja reprodução no tempo e no espaço dependeu, em grande medida, do fluxo constante de africanos cativos. Nesse sentido, é sintomático que do total de africanos chegados vivos nas Américas, aproximadamente a metade tenha se deslocado justamente para o nosso país. Esse fluxo de mercadorias humanas dependeu tanto de fatores ligados à oferta e à demanda nas duas pontas do Atlântico-sul, isso para não falar nas conjunturas políticas.

Foram três as regiões da África que forneceram os maiores contingentes de escravos para o Brasil, quais sejam, as áreas que gravitavam em torno da Costa da Mina, do complexo Angola/Congo e finalmente de Moçambique. Por outro lado, os portos de desembarque mais importantes da costa brasileira eram os do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, que além de atenderem as respectivas demandas internas, se transformaram em entrepostos de redistribuição da população cativa nos territórios vizinhos e às vezes muito além.195 No caso da Paraíba, embora haja notícias de desembarques provenientes diretamente do continente africano, a verdade é que o grosso de sua escravaria vinha do porto do Recife, aonde aqui chegavam por mar ou terra. A chegada dos primeiros africanos na Paraíba remonta as primeiras tentativas de conquista de seu território em meados do século XVI, quando grupos de portugueses e espanhóis vindos da vizinha Vila de Olinda armaram expedições militares com o intuito de garantir a posse da terra contra franceses e seus aliados indígenas locais. Dentre os grupos que formavam as tropas militares dos conquistadores, se destacavam “africanos em grande número”, nas palavras de um historiador local.196 Com a posterior posse e o início efetivo da colonização portuguesa da Capitania Real da Paraíba do Norte, os negros foram sendo paulatinamente empregados como força de trabalho nas mais diversas atividades econômicas, com destaque para os primeiros engenhos de cana de açúcar erguidos nas várzeas do Rio Paraíba, a começar no primeiro deles, o Tibiri. Posteriormente, com a expansão do processo colonizador para além da zona litorânea da capitania, os africanos foram sendo solicitados pelas atividades ali desenvolvidas, mormente a pecuária e as lavouras mercantis e de subsistência.

No que se refere a Campina Grande, é muito provável que os primeiros africanos tenham chegado por essas plagas já nas primeiras décadas do século XVIII. Neste período o

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Ver FLORENTINO, Manolo, RIBEIRO, Alexandre Vieira e SILVA, Daniel Domingues. “Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)”. Afro-Ásia, nº 31, 2004, pp. 83/126.

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Ver VIDAL, Adhemar. “Três séculos de escravidão na Parahyba”. Estudos afro-brasileiros. Recife: Massangana, 1988, pp. 105/152. (edição original de 1934). Para uma leitura atualizada da questão, ver ROCHA, Solange Pereira da. “Travessias atlânticas: rotas do tráfico e a presença africana na Paraíba colonial”. In. Portuguese Studies Review. Nº 14 (1), 2006, pp. 279/305.

processo de colonização estava mais ou menos consolidado, não só em termos econômicos, mas também político institucional, possibilitando assim aos grupos proprietários investir parte de suas fortunas nesse tipo de mão-de-obra, o que contribuía para aumentar a riqueza material e o status social dos mesmos. Por outro lado, é preciso lembrar que com o declínio da produção do ouro por essa mesma época, na região das Minas Gerais, houve todo um redesenhar na distribuição dos escravos africanos pelas diversas regiões da América portuguesa, permitindo até que áreas periféricas do Império tivessem acesso a esse tipo de mão-de-obra, embora na concorrência final aqueles setores mais dinâmicos continuassem a tirar vantagem.

O estabelecimento dos primeiros grupos de escravos de matriz africana em Campina Grande se consolida em meados dos setecentos e coincide com a criação das companhias monopolistas de comércio criadas na gestão do Marques de Pombal, o primeiro-ministro do reinado de D. José I. Dentre elas se destaca a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, cujo estatuto foi aprovado em 1759. Como se sabe, um dos principais objetivos dessa última companhia era abastecer de cativos africanos a região de lavoura escravista capitaneada por Pernambuco. Já em 1761 chegavam ao porto do Recife, provenientes da Costa África, os 6 primeiros navios negreiros da companhia, tendo descarregado 2.298 cativos africanos, entre adultos e crias. Desde então, e durante os próximos 26 anos em que funcionou a referida empresa econômica, foram empregadas 26 embarcações, entre Corvetas, Galeras e Sumacas, num total de 125 viagens entre as duas pontas do Atlântico, com um saldo de quase 50.000 escravos, vindos majoritariamente da África Centro-ocidental e em menor escala da África ocidental. Esse número de cativos se aproxima do volume importado entre 1742 e 1760, antes da criação da dita companhia. Do total de escravos importados por ela, uma parte rumava para o Rio de Janeiro, outra ficava no Recife e o restante era redistribuído entre as capitanias circunvizinhas subordinadas, como era o caso do Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba. Em 1773, por exemplo, foram enviados para essa última 50 escravos recém-desembarcados; número esse que subiu para 110 no ano seguinte, 116 em 1775 e 69 em 1781.197 Com o fim dos negócios negreiros por parte da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, na década de 1780, o tráfico para a região prosseguiu por outros meios, tendo inclusive aumentado de volume. Para se ter uma idéia, apesar do tumultuado contexto em que se deu o processo de independência e dos conflitos verificados na África, entre 1815 e 1831 desembarcaram no

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Ver CARREIRA, Antonio. As companhias pombalinas de navegação, comércio e tráfico de escravos entre a costa africana e o nordeste brasileiro. Porto: Afrontamento, 1969; RIBEIRO JÚNIOR, José. Colonização e monopólio no nordeste brasileiro. São Paulo: HUCITEC, 1976.

porto de Recife mais de 67.000 africanos na condição de escravos. Nem a pressão inglesa para pôr fim ao “infame comércio”, com a Lei de 7 de novembro de 1831, foi capaz de deter essa tendência, embora desde então as condições em que o tráfico passou a operar tenham mudado em muitos aspectos. Segundo estimativas feitas pelo historiador Marcus Carvalho, entre 42.000 e 50.000 africanos foram ilegalmente desembarcado em portos clandestinos da orla de Pernambuco entre os anos de 1832 e 1850, o que somando os dois períodos do século chega a mais de 100.000.198

Verificando-se a procedência dos escravos de Campina Grande através das séries de inventários post-mortem, constatamos que eles eram originários das três grandes áreas do continente africano fornecedoras de cativos para o Brasil e o Novo Mundo como um todo. Porém, a contribuição numérica de cada uma dessas regiões foi bastante desigual, conforme podemos verificar no quadro que se segue:

Quadro 8: PROCEDÊNCIA DOS ESCRAVOS AFRICANOS DE CAMPINA GRANDE – 1785/1888

Origem Quantidade Percentual

Angola 438 81,3 Congo 25 4,6 Cassange 17 3,2 Angicos 10 1,8 Da Costa/Mina 09 1,7 Benguela 8 1,5 Camunda 5 0,9 Moçambique 5 0,9 Camundongo 4 0,7 Cabinda 4 0,7 Guiné 4 0,7 Rebolo 3 0,5 Candeia 1 0,1 Quibundo 1 0,1 Sem registro 5 0,9 Total 539 100

FONTE: Inventários post-mortem – 1785/1888.

Como seria de esperar, a maior parte dos cativos locais era proveniente da África Centro-ocidental, que tinha em Angola seu núcleo irradiador. Com efeito, Campina Grande seguia uma tendência regional, nacional e até mesmo internacional, já que foi desse complexo

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Ver CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Recife: EDUFPE, 1998, pp. 95/153.

que saiu o maior número de escravos para as Américas durante o tempo em que perdurou o tráfico transatlântico visto no seu conjunto.199

Antes de começar a caracterizar estes grupos, é preciso fazer alguns esclarecimentos gerais para que o nosso raciocínio ganhe alguma plausibilidade. Como alguns pesquisadores vêm enfatizando, traficantes, senhores, autoridades e burocratas nem sempre conseguiam dar conta da diversidade das sociedades africanas com as quais entravam em contato no contexto da diáspora, impedidos que estavam de ver o “outro”, em função de interesses materiais e de preconceitos ideológicos e culturais. Daí a preferência por termos genéricos, tais como Angola, Mina, Guiné, Moçambique, Benguela, Cabinda, Congo etc. Esses termos nomeavam os lugares onde os africanos eram aprisionados, comercializados ou embarcados, tais como barracões, feiras, reinos e portos, localizados no litoral ou no sertão do continente. Porém, esses termos nem sempre correspondiam à complexa experiência histórica de homens e mulheres em processo de transformação em cativos que haviam nascido e crescido em sociedade, que por mais que estivessem fisicamente próximas umas das outras guardavam entre si diferencias acentuadas. Daí também a combinação dessa variável, por assim dizer “espacial”, com características étnicas e culturais de seus habitantes, tais como Camundongos, Candeias, Angicos, Camundás, Quibundos, Rebolas etc. Por outro lado, essas identidades atribuídas e/ou impostas eram re-significadas pelos próprios africanos no contexto das sociedades escravistas americanas em que se viam abruptamente inseridos; identidades expressas, por exemplo, nas tradições de trabalho, religiosidades, lazer, rituais em torno da morte e cosmologias, sintetizadas nas diversas “nações” que aqui criaram e recriaram.200

Num primeiro momento, proprietários e autoridades usaram duas grandes terminologias para nomear os indivíduos transformados em escravos no processo de formação da sociedade colonial. Como a historiografia vem mostrando com evidências cada vez mais consistentes, os primeiros trabalhadores cativos dos engenhos e fazendas implantados entre nós foram os índios. Para se referir a esta, os colonizadores passaram a empregar a expressão “negros da terra”, que em muitas situações era uma expressão que funcionava como sinônimo

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Ver CARVALHO, Marcus J. M. de. Op. cit. p. 100.

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A discussão sobre identidade africana e seu processo de recriação no contexto de formação do mundo moderno vem se tornando um tópico privilegiado pela historiografia da escravidão em anos recentes no Brasil. Ver KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 35/66; SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; FARIAS, Juliana Barreto, SOARES, Carlos Eugênio Líbano e GOMES, Flávio dos Santos. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

de escravo.201 Com o avanço da colonização na América portuguesa, foram chegando os primeiros africanos escravizados. Para diferenciá-los dos nativos, os senhores passaram a nomear estes últimos, de forma genérica, como “negros da Guiné”, ou seja, da África. Estes primeiros africanos poderiam ter vindo de Portugal, de alguma ilha atlântica conquistada pelos portugueses ou mesmo da região do Golfo da Guiné, na Costa ocidental daquele continente.202 Na documentação de Campina Grande, temos resquícios dessa nomenclatura de época. Por exemplo, Manoel foi um dos poucos escravos da nossa amostra a ser caracterizado como sendo “do gentio de Guiné” e que tinha quarenta anos quando da morte e conseqüente abertura do inventário de seu senhor em 1798.203

Com a intensificação do tráfico negreiro e as mudanças nas duas pontas do Atlântico, esse quadro foi paulatinamente se alterando, com a explosão de novas nomenclaturas para designar os africanos no contexto da diáspora. Em vista desse quadro, o denominativo da “Guiné” foi sendo substituído por termos tais como Angola, Mina e Benguela etc, no sentido de dar conta dessa nova realidade em mutação. Embora se constituísse em uma espécie de termo “guarda chuva”, já que abrigavam em si diferentes configurações étnicas e culturais, estes termos encontrados na documentação são um bom ponto de partida para entendermos aspectos importantes da geografia e da natureza do tráfico e da escravidão.204

Vista isoladamente, Angola era, de longe, a região africana de onde provinha o maior número dos escravos locais. Do montante geral de 539 cativos de origem africana do banco de dados, pelo menos 438 eram angolanos, ou seja, 81,3%. Como se sabe, a região de Angola e seu entorno já era habitada desde tempos imemoriais por diversos povos que aí formaram sociedades complexas, contando inclusive com hierarquias e divisões sociais claras.205 Em meados do século XVI, os portugueses, no contexto das expansões ultramarinas, entraram em contato com esses povos, estabelecendo desde então relações que variaram entre as alianças e confrontos, dependendo das conjunturas históricas vividas. Assim, por exemplo, os

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Ver MONTEIRO, John. Os negros da terra. São Paulo: Companhia da Letras, 1994; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 21/73.

202

Ver OLIVEIRA, Maria Inês Cortês de. “Quem eram os negros da Guiné?”. Afro-Ásia. nº 19-20, 1997, pp. 37/73.

203

Ver Inventário de José de Abreo Franca-1798. ADJFACCG.

204

Ver SOARES, Mariza de Carvalho. “Minas, Angolas e Guiné: nomes d’ África no Rio de Janeiro Setecentista”. In. Tempo. Vol. 3, Nº 6, 1998, pp. 73/93.

205

Ver SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, pp. 193/211. Esse detalhe é importante ser ressaltado, pois muitas das técnicas ligadas às atividades agrícolas, metalúrgicas e pastoris já eram praticadas pelos africanos dessa região desde muito tempo antes do contato com os portugueses e outros grupos de europeus no século XV/XVI. É, por exemplo, impossível pensar a agricultura praticada nos trópicos, seja nas plantations ou nas culturas de subsistência, sem o uso do tripé enxada, foice e machado, uma técnica largamente conhecida e praticada pelos africanos da cultura bantos que viviam na referida área.

portugueses tanto podiam fazer alianças com os soberanos em função de interesses colonialistas, como podiam declarar guerra aberta, em função da correlação de forças do momento. Por sua vez, os grupos locais também podiam se aproveitar da situação e fazer acordos com os portugueses, em troca de garantias para conseguir armas de fogo e outros produtos comerciais, em detrimento de facções locais rivais. Do mesmo modo, esses mesmos grupos locais poderiam esquecer momentaneamente as suas divergências, algumas delas seculares, e se unirem no combate comum ao inimigo invasor europeu, fosse ele português, espanhol, francês, holandês ou inglês.206 Como pano de fundo de todo esse cenário histórico havia a disputa em torno do controle do tráfico negreiro na região. Nesse estavam envolvidos diferentes sujeitos sociais, tais como os representantes da coroa, traficantes de diversas nacionalidades e lugares, os intermediários, os contrabandistas, os soberanos locais e seu séqüito de funcionários, que juntos formavam uma complexa e contraditória teia de interesses cujo objetivo fundamental era a transformação de homens e mulheres em cativos. Nesse contexto, os africanos eram (através de variados mecanismos sociais, políticos e militares) aprisionados nos sertões do continente, ao redor dos quais se estabeleciam as rotas do tráfico por terra. Em seguida, eles eram levados para pontos estratégicos de venda, as feiras, onde os