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O trabalho escravo: entre o fardo, a resistência e a negociação

Com a voga neoliberal hegemônica até recentemente, a categoria do trabalho perdeu prestígio político e acadêmico, a ponto de alguns arautos da pós-modernidade diagnosticar o seu virtual desaparecimento. Operações ideológicas à parte, o fato é que os mundos do trabalho ainda continuam a ser espaços fundamentais para a compreensão da lógica e das relações sociais e de poder tecidas pelos homens no tempo e no espaço, se constituindo num conceito do qual o historiador não pode prescindir. Esse raciocínio fica ainda mais evidente quando se trata das sociedades escravistas modernas, que tinham na exploração de homens e mulheres transformados em mercadorias um de seus fundamentos histórico. Nesse sentido, devemos concordar com o historiador americano Stuart Schwartz, que ao parafrasear uma famosa passagem de Marx afirmou que o trabalho escravo era o “segredo interno” do escravismo.299 Em outras palavras, é uma importante chave explicativa do complexo universo da escravidão africana que se implantou e desenvolveu em várias regiões da América. Por isso mesmo toda pesquisa que se preze deve ter como horizonte esses pressupostos epistemológicos e historiográficos. É óbvio que a escravidão não era apenas um sistema de

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Ver SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

exploração, se constituindo num complexo processo de relações sociais que se interpenetravam no tempo e no espaço, envolvendo não apenas os senhores e os escravos. O próprio autor citado reconhece isso, ao ressaltar a importância da resistência escrava e do compadrio para a formação de uma comunidade negra, numa prova de que cultura escravas e trabalho podem e devem caminhar juntos na análise histórica concreta.300

Reconhecer esses pressupostos é necessário, porém não é suficiente. Sabemos que apesar de traços comuns a todas as sociedades escravistas do Novo Mundo, os processos de trabalho escravo variaram no tempo e no espaço, obedecendo a dinâmicas históricas próprias. Contavam muito nessa variação fatores tais como dimensões da propriedade, tipo de atividade, tamanho do plantel, técnicas empregadas, tradições de trabalho herdadas, conjunturas históricas, personalidades senhoriais e outros mais.

Conforme vimos em capítulos anteriores, o antigo município de Campina Grande se caracterizava por ter uma estrutura sócio-econômica diversificada, combinando produção e comércio, culturas de exportação e de subsistência, pequenas, médias e grandes propriedades. Em relação à propriedade escrava, embora predominassem os pequenos e médios plantéis, também tínhamos a presença de uma expressiva participação de grandes escravarias, que lembravam as plantations típicas de outras regiões tradicionais do Brasil e até das Américas, especialmente o setor algodoeiro. Vejamos então algumas características do trabalho escravo local e sua dinâmica ao longo do século XIX.

Uma característica marcante do trabalho escravo em Campina Grande era a sua pouca especialização, em comparação com a escravaria de outros municípios do Império, como começamos a demonstrar no final do capítulo anterior. Retomamos agora a temática em outro patamar, verticalizando a análise. Esse processo se materializava de várias maneiras, tanto numa dimensão individual como social. Desse modo, em sua trajetória individual de vida, o cativo poderia passar por diferentes experiências. Assim, ainda criança, ele iniciava

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Ao fazer o balanço dos desdobramentos da produção acadêmica sobre a temática da escravidão no pós- centenário da abolição, Schwartz afirma que “a nova historiografia da escravidão brasileira deixa clara a importância de se compreender a organização da escravidão e seu funcionamento tanto como forma de trabalho quanto como sistema social e cultural, para que seja possível entender suas conseqüências teóricas e sistêmicas mais amplas para a compreensão da história do Brasil (...)”, raciocínio esse que podemos perfeitamente estender para a própria perspectiva adotada pelo autor em seus escritos. É por tudo isso que consideramos deslocada a crítica da historiadora Sandra Graham, para quem Schwartz teria censurado os estudos recentes sobre a escravidão que enfatizam o papel da cultura, em detrimento da centralidade do trabalho, enquanto categoria de análise na conformação da vida dos escravos. Na verdade, o que o autor faz, do nosso ponto de vista, é chamar a atenção para as limitações tanto de abordagens economicistas quanto culturalistas. Aliás, entendemos que as obras de ambos têm mais pontos em comum do que de divergências, havendo muito mais uma diferença de ênfase do que de conteúdo. Ver, respectivamente, SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, p. 29; GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 49.

precocemente seu aprendizado no universo da escravidão, justamente através do trabalho, desempenhando pequenas tarefas nas lides domésticas. À medida que crescia, ele era transferido para o campo, onde dava os primeiros passos nas atividades produtivas, aprendendo a cuidar de pequenos animais e ajudando nas atividades agrícolas mais simples, como a colheita do algodão. Quando chegava à idade adulta, geralmente depois dos 14 anos, ele se inseria definitivamente no mundo do trabalho, sendo obrigado a assumir plenamente as atividades laborais, notadamente aquelas mais pesadas ligadas à pecuária e à agricultura. Por fim, se chegasse à velhice, o ciclo se fechava, quando então ele voltava a desempenhar funções que havia exercido na infância. Por outro lado, em perspectivas mais amplas, o grupo escravo poderia desempenhar múltiplas tarefas, às vezes inclusive de forma concomitante, tais como a de trabalhador do eito, criado, artesão que fazia os reparos de manutenção das ferramentas e equipamentos do campo etc.301

A grande maioria dos trabalhadores escravos de Campina Grande estava empregada nas atividades rurais. Aqui é preciso fazer uma distinção entre os diversos tipos de propriedades. Grosso modo, nas pequenas e médias propriedades, aquelas que tinham entre 1 e 9 escravos, é provável que os escravos laborassem ao lado do senhor, de seus familiares e de alguns agregados ocasionais, enquanto nas grandes propriedades, aquelas com 10 ou mais escravizados, o processo de organização do trabalho talvez fosse mais impessoal.302 Por seu turno, havia uma pequena parcela de trabalhadores escravizados que se dedicava às poucas oportunidades oferecidas no meio urbano.303

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Um exemplo típico dessa situação vem de um proprietário local de nome José Avelino de Almeida, em litígio com parte de sua escravaria em 1880. Quando da matricula de 1872, este senhor registrou 7 cativos, dentre eles Rosa e suas 4 filhas: Henriqueta, Jovina, Maria e Joana. No item “profissão”, todos foram descritos como “criados”, porém na margem direita da folha há a seguinte observação: “Rosa e suas quatro filhas empregam-se no serviço doméstico e todas casualmente em serviços agrícolas”. Ver Tribunal da Relação de Pernambuco. Apelação civil do juízo de Direito da cidade de Campina Grande. Apelante, o Juiz de Direito. Apelado. José Avelino de Almeida, senhor dos escravos Pedro, Rosa, Henriqueta e outros-1880. AIAHGP.

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O fenômeno do absenteísmo, típico de algumas regiões escravistas como o Caribe, foi prática rara no município de Campina Grande e, de resto, na maior parte do Brasil escravista. Pela análise dos inventários é possível concluir que a esmagadora maioria dos escravistas campinenses residia em suas propriedades, administrando diretamente o trabalho da escravaria. Isso, como veremos, terá implicações políticas para o processo de sociabilidade e resistência escrava. Ver KLEIN, Herbert S. A escravidão africana: América latina e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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Apesar de seu caráter acanhado, o núcleo urbano de Campina Grande, no período em discussão, sofreu transformações no curso dos oitocentos, abrindo novas oportunidades de trabalho para os escravos e ex-escravos em atividades e ofícios tais como carpinteiro, sapateiro, ferreiro, pedreiro, ao ganho, pequeno comércio etc. Em 1831, o preto Marcolino, escravo da viúva do finado Manoel Alves Bezerra, possuía, em umas casinhas alugadas na rua do meio, um estabelecimento de “secos e molhados”. Por sua vez, o forro Cristóvão, morador na rua do comércio, juntamente com sua mulher ganhava a vida vendendo em dois tabuleiros de madeira guloseimas da culinária afro-brasileira aos potenciais fregueses da cidade. Ver Inventários de Manoel Sabino do Nascimento- 1831 e Cristóvão, liberto-1863. ADJFACCG

A labuta dos trabalhadores escravizados locais não era nada fácil. Já com o aparecimento dos primeiros raios do sol eles eram obrigados a despertar, quase sempre acompanhados do acorde do canto dos galos, os relógios naturais daquele tempo304, dando início a uma longa jornada de trabalho que, dependendo da atividade, poderia se estender até altas horas da noite. Nesse sentido, podemos afirmar que praticamente não houve ocupação econômica desenvolvida no antigo município de Campina Grande em que os cativos não estivessem empregados. Assim, de forma exclusiva ou ao lado de trabalhadores livres, lá estavam eles nas fazendas e currais, cuidando do gado, na condição de vaqueiros ou auxiliares; plantando e colhendo a mandioca, para depois produzir a farinha, que juntamente com a carne seca era um dos principais componentes da dieta regional; extraindo da cana de açúcar aguardente e rapadura, produzidas nas engenhocas locais; desempenhando as mais variadas funções domésticas, quer seja no interior de modestas casas de pau-a-pique ou então em casas-grandes, feitas de materiais mais nobres, tais como tijolo e telha ou mesmo pedra e cal; trabalhando como ferreiros, sapateiros, marceneiros, pedreiros e demais ofícios artesanais; marcando presença no pequeno comércio, feito nas redondezas e, principalmente, nas famosas feiras semanais, realizadas nas quintas-feiras e aos sábado, onde compravam, vendiam e trocavam os mais diversos tipos de mercadorias. No século XIX, com o boom algodoeiro gerado pelo aumento da demanda local e internacional, o município se transformou numa destacada praça fornecedora desse produto agrícola. E, mais uma vez, os escravos foram intensamente empregados, desde o plantio, a colheita, o beneficiamento, o ensacamento até o seu transporte.305

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O canto dessa sagrada ave para a tradição cristã, junto com o badalar dos sinos das igrejas, era o principal marcador de tempo que pontilhava o cotidiano da sociedade. Em 1865, a cadeia da cidade foi arrombada, desta vez para a soltura do preso Antonio da Costa Freire Maracajá. Com a abertura dos procedimentos formais de investigação policial, chegou-se à conclusão que o mentor do delito foi um irmão do preso, o cidadão Patrício da Costa Freire Maracajá, morador na vila de São João do Cariri, que veio acompanhado de outras pessoas, dentre elas um seu escravo de nome Damião. Ao ser interrogado, este informou que seu senhor saiu acompanhado logo “depois do galo cantar duas vezes”. Ver Autuamento de uma portaria sobre o arrombamento de um alçapão da cadeia e fuga do criminoso Antonio da Costa Maracajá-1865. Documento avulso. ADJFACCG.

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O algodão já era uma cultura de importância para a economia local desde pelo menos o final do século XVIII. Este fato foi reconhecido em documentação oficial quando da criação de uma vila próxima ao município de Campina Grande. Ali é dito que o grande povoamento do território desta última devia-se à produção algodoeira. Era uma cultura relativamente “democrática”, sendo praticada até por escravos, que com o seu produto formavam um pecúlio utilizado para vários fins, dentre eles a compra da liberdade. Contudo, isso não impedia que fossem os grandes proprietários os mais favorecidos com o monopólio das melhores terras, a produção das maiores safras (incluindo aí aquisição da produção de pequenos e médios proprietários), os mais sofisticados equipamentos do plantio e beneficiamento da planta, e, o mais relevante, com o controle do maior número de trabalhadores escravos e não escravos ao dispor desses proprietários. Ver Carta de José Bispo de Pernambuco, secretário do governo da capitania de Pernambuco a José da Silva Coutinho, ouvidor geral da comarca da Paraíba, em 16 de março de 1799. Cx. 01. AHPB. Para um histórico do algodão em Campina Grande, ver ALMEIDA, Josefa Gomes de. Latifúndio e algodão em Campina Grande: modernização e miséria. Mestrado em História. Recife: UFPE, 1985.

Essas características implicavam em diferentes condições e ritmos de trabalho, em termos, por exemplo, de vigilância, moradia, vestimentas e alimentação. Embora a documentação compulsada seja, em muitos aspectos, bastante lacunar em relação a estas e a outras questões correlatas, podemos aqui traçar em linhas gerais o estado da questão.

A questão da vigilância e do controle social se reveste de importância tal no âmbito da escravidão que não podemos pensar a própria existência de qualquer sociedade escravista sem o recurso da violência, vista em suas várias manifestações ( seja real, seja simbólica) a permear o cotidiano de senhores e escravos, fosse através da humilhação, da ameaça, e até do uso do chicote. Em Campina Grande, os próprios senhores comandavam diretamente o processo de trabalho, mormente nas pequenas e médias propriedades, mas também nas grandes.

Contudo, verificamos que pelo menos em algumas destas últimas a tarefa era delegada pelos senhores a feitores especialmente contratados para tal fim. Este era o caso do português José Antonio Vila Seca, cujo feitor se chamava Antonio de Campos. Representante típico das elites escravistas de seu tempo, o coronel Vila Seca era possuidor de uma fortuna considerável para os padrões da época, incluindo aí terras, rebanhos, plantações, imóveis, dinheiro, objetos em ouro e prata e, obviamente, escravos. Seu inventário acusou a presença de 39 cativos, entre africanos e crioulos, homens, mulheres e crianças.306 O mais provável é que os escravos fossem distribuídos pelas diversas propriedade que o português possuía, embora talvez a maioria deles estivesse concentrada no sítio Massapé, o centro de gravidade da vida econômica e social da família. Aí eles desempenhavam as mais variadas funções. A safra de mais de 32 sacas de algodão em pluma, que os herdeiros se orgulhavam de ter embarcado para a Europa naquele ano, foi resultado de um duro esforço da escravaria nos messes anteriores. Assim, por exemplo, organizados em turmas eles limpavam e prepararam o terreno com as muitas foices, enxadas e machados constantes do inventário. Concluída essa etapa, cuja ocorrência se dava entre os meses de setembro e novembro, cuidavam de iniciar a plantação com o uso de um ferro de cova e introduziam nos orifícios feitos na terra as sementes da planta. Enquanto elas cresciam, era necessário um cuidado constante com os inimigos naturais, tais como as pragas, os animais e as ervas daninhas. Quando os primeiros frutos do algodoal afloravam, geralmente a partir de julho do ano seguinte, era chegada a hora da colheita. Com cestos em punho, os escravos passavam em revista cada fileira da planta, depositando em seu interior o “ouro branco”. Depois disso, cada escravo se dirigia com o

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Para o que se segue, ver Inventário do coronel José Antonio Vila Seca e sua mulher D. Francisca José de Jesus-1826. ADJFACCG.

cesto cheio de algodão para o serviço de pesagem em uma “balança grande de madeira e ferrada”, sempre sob o olhar vigilante do senhor e/ou do feitor. Se ao final do dia o escravo atingisse ou ultrapassasse a cota estabelecida previamente, poderia receber algum tipo de incentivo em forma de dinheiro ou outro beneficio qualquer. Caso, porém, a cota não fosse atingida, o escravo poderia ser punido exemplarmente; a pena poderia ir de umas palmatoadas até um castigo mais duro, dependendo das circunstâncias.307 Antes de seu beneficiamento, o algodão era colocado em um pátio da propriedade, onde os raios solares dos meses subseqüentes para a secagem eram aproveitados. Depois de completado esse primeiro ciclo, tinha início o processo de beneficiamento da cultura do algodão, cujo fardo recaía mais uma vez, literalmente, sobre as costas dos escravos. Esta etapa era feita quase toda nas dependências de “um armazém com duas portas e duas janelas e 400 telhas”, a começar pela separação do caroço e da pluma, processado por “quatro engenhos de descaroçar algodão com seus bancos usados”, cada um deles manipulado por dois escravos.308 Feito o descaroçamento, o algodão estava pronto para ser ensacado em uma prensa “de ensacar lã de ferragem em muito bom uso”. Findo todo o processo, o algodão estava pronto para ser exportado, quando era conduzido em lombos de animais cavalares dirigidos por grupos de cativos tropeiros rumo ao porto do Recife, onde depois de fazerem seus negócios os senhores e seus intermediários faziam a “festa” com o lucro obtido, caso tudo corresse conforme seus pragmáticos cálculos e a conjuntura fosse favorável.

Além de se ocuparem com as culturas de exportação, os escravos também se dedicavam à produção de alimentos. Esta era feita em roças próprias ou, como era mais comum, no mesmo terreno onde era plantado o algodão, de forma consorciada, no intervalo entre uma fileira e outra. É importante lembrar que, além da alimentação, as plantações de subsistência consorciadas tinham outras serventias, como barreira natural de proteção ao algodão em fase de crescimento. No roçado de algodão do sitio Massapé daquele ano, por exemplo, foi plantado “milho, feijão, geremum (...) e o mais que se acha dentro do dito roçado”. Por outro lado, em uma outro sítio do coronel Vila Seca, localizado em Alagoa

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No inventário deste e de outros proprietários locais encontramos vários instrumentos de suplício, tais como grilhões, correntes, algemas etc. No inventário do padre Leonardo José Ribeiro, senhor de 17 escravos, consta entre os bens descritos “três correntes de ferro” e “dois ferros de pescoços de escravos”. Ver Inventário do padre Leonardo José Ribeiro-1834. ADJFACCG.

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Essa era uma das etapas do processo mais críticas para os interesses senhoriais, pois o algodão com caroço poderia se tornar um alvo fácil para a ação devoradora da ratazana no interior dos depósitos. Foi com essa preocupação, por exemplo, que o tutor dos filhos do finado João Luiz Lourenço solicitou que o depositário dos bens dos órfãos liberasse, “sem a menor perda de tempo”, alguns escravos da legítima paterna para o serviço de descaroçamento e ensacamento da safra de 1824. A razão alegada é que o algodão “estava sofrendo um grande prejuízo pela destruição que lhe tem feito os ratos”. Ver Inventário de João Luiz Lourenço-1821. ADJFACCG.

Nova, havia um roçado com “6.000 covas” de mandioca. Esta, depois de colhida, descascada, triturada e torrada, se transformava em farinha, o famoso “pão da terra”; esse trabalho era executado majoritariamente pelas mulheres escravas.309

Na hierarquia vigente no universo do trabalho escravo, o ser vaqueiro parecia ser uma aspiração de muitos, embora alcançada por poucos. Além dos ganhos materiais óbvios, através da possibilidade de formação de um pecúlio proveniente do sistema de quarta, esta atividade também trazia outras importantes vantagens para os trabalhadores escravos, como uma maior liberdade de movimentação. Não devemos esquecer que a este “tipo social” estavam associadas características tais como a destreza, a coragem e a valentia, valores estes caros àquela sociedade e ainda hoje presentes no imaginário popular da região.310 Na escravaria de Manoel Gonçalves de Freitas, identificamos dois deles; trata-se de João e Antonio, ambos angolanos. Provenientes de sociedades em que se praticava a pecuária, esse saber deve ter sido um fator importante para que se sobressaíssem num plantel constituído de 23 escravos, numa época em que os africanos, apesar de minoria, ainda continuavam a ter um peso considerável na escravatura local.311 Por outro lado, a exemplo de Manoel Gonçalves de Freitas e de outros grandes proprietários locais, o coronel Vila Seca também combinava atividades agrícolas com a pecuária. Seu rebanho era formado por 393 cabeças de gados vacum, cavalar, cabrum e suíno. Esses animais eram criados em uma outra propriedade do defunto, denominada “Fazenda Santa Catarina”, onde existiam “três currais de madeira de pau-a-pique com 1.000 estacas cada um”. Alguns escravos eram deslocados para a fazenda; lá parceiro de cativeiro) que ficava cuidando para que eles não destruíssem ou invadissem as áreas delimitadas para as culturas. Os escravos labutavam na fazenda separando as crias recém nascidas, ferrando os animais com “marcas de ferrar”, abatendo reses para o

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A exemplo de muitos outros inventários pesquisados, no do coronel Vila Seca havia aviamentos para o