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2. HISTÓRIA DO SURGIMENTO E PRÁXIS DA ORDEM

3.1 A Educação Popular

A Igreja católica, no início da colonização da América Latina, teve o monopólio da educação. A princípio, a proposta foi direcionada quase que exclusivamente aos indígenas, por meio da catequese e da escolarização de crianças e adolescentes. Posteriormente, essa mesma Igreja, que visava através dessa prática conquistar mais fiéis e servidores para as coroas europeias, dirigiu sua educação à formação das elites que, mais tarde, seriam as detentoras do poder nas colônias. É estranho que ela saia de um polo e chegue a outro totalmente oposto, mas cabe pensar que em alguns momentos da história latino-americana a educação serviu como elemento domesticador dos povos nativos para torná-los servis aos conquistadores. Ainda assim, a educação realizada pelos missionários, em alguns espaços, atuou como agente de mudanças.

A Igreja católica fazia parte constitutiva do projeto político de colonização da coroa portuguesa para a América Latina. A proposta pedagógica em curso era formar e catequisar os nativos. Apesar de o projeto de colonização ser quase homogêneo na sua totalidade, havia nesta história, e no decorrer dela, vozes e práticas que visavam à resistência ou à desconstrução dos objetivos iniciais. Entre as forças mais conhecidas encontra-se o frei dominicano Bartolomeu de las Casas (1474-1566) que

,

segundo Dussel, é a base da matriz para uma educação comunitária, popular ou libertária na América Latina.

Bartolomé de las Casas (1474-1566) dijo muy precisamente que ‘dos maneras han tenido en extirpar de la faz de la tierra aquellas miserandas naciones’ refiriéndose a los dos modos que han usado los europeos para dominar la periferia. ‘La una por injustas, crueles y sangrientas tiránicas guerras’; es decir, los europeos han asesinado a los habitantes de la periferia (es la muerte del otro). ‘La otra, después que han asesinado a todos los que podían anhelar la libertad, como son los hombres varones [...]’. Han asesinado el indio; pero cuando dejan alguno en vida lo reducen oprimiéndolo con horrible servidumbre. El texto indica además que dejan en vida la mujer, para amancebarse con ella (dominación erótica), y a los niños, para educarlos en la cultura europea (dominación pedagógica). (DUSSEL, 1996, p. 21).

A luta entre o projeto de uma pedagogia colonizadora e uma pedagogia de libertação perpassa toda a história da América Latina. Está presente nos movimentos de constituição dos estados nacionais e nas lutas por sua independência: os movimentos de fundo revolucionário, como a Bolivariana (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia), alguns brasileiros (Conjuração Mineira, Conjuração Baiana, Revolução Pernambucana) e a Revolução Cubana.

Quase todos esses movimentos, com exceção da Revolução Cubana que teve como objetivo sair do domínio estadunidense em consequência da Emenda Platt31, todos os demais buscaram transcender a condição de colônia para tornarem-se estados independentes, sair do jugo do opressor visando a um melhor porvir para suas nações. É claro que, em alguns casos, estavam presentes as elites locais, que tinham seus interesses mesclados com as reais necessidades do povo mais explorado das colônias. De qualquer forma, ainda que alguns deles não tenham frutificado, como no caso do Brasil, e outros não tenham conseguido dar continuidade ao que haviam proposto de início, essas ações

31 Dispositivo legal que constava na Carta Constitucional de Cuba afirmando que, em caso de ameaça aos

realizadas pelos países periféricos apontam para o grande desejo e necessidade que têm os povos latino-americanos de se libertarem das amarras tirânicas dos opressores.

O movimento denominado Bolivarismo partia da visão pan-americana, concebida por Simón Bolívar (1783-1830), que defendia a união dos países americanos, lutava pela fraternidade pan-americana. Liderou a libertação da Grã-Colômbia, composta pelas antigas colônias espanholas do Vice-Reino da Nova Granada e da Capitania Geral da Venezuela, que culminou na sua independência em 1819. Em sua Carta de Jamaica de 1815, Bolívar aponta o porquê da necessidade de libertação do domínio da coroa espanhola.

Os americanos, sob o sistema espanhol que está em vigor, e talvez com maior força que nunca, não ocupam outro lugar na sociedade que o de servos próprios para o trabalho, e quando muito o de simples consumidores, e ainda esta parte coagida com restrições chocantes [...], enfim, você quer saber qual é o nosso destino? Os campos para cultivar o anil, o grão, o café, a cana, o cacau e o algodão, as planícies solitárias para criar o gado, os desertos para caçar bestas ferozes, as entranhas da terra para escavar o ouro que não pode saciar a esta nação [a Espanha] avarenta. Estávamos, como acabo de expor, abstraídos e, digamos assim, ausentes do universo no que é relativo à ciência do governo e administração do Estado. Jamais éramos vice-reis ou governadores, senão por causas muito extraordinárias, arcebispos e bispos poucas vezes, diplomatas nunca, militares, só em qualidade de subalternos, nobres, sem privilégios reais, não éramos, enfim, nem magistrados, nem financistas, nem mesmo comerciantes, tudo é contravenção direta de nossas instituições. (BOLÍVAR, 1815 apud SANTOS, 2013, p. 137). Essas lutas, esses ventos de uma contra-hegemonia repercutem na América Latina nos anos 40, conforme narra Dussel, à medida que as lutas e as conquistas avançam em função das comunidades.

La filosofía que sepa pensar esta realidad, la realidad mundial actual, no desde la perspectiva del centro, del poder político, económico o militar, sino desde más allá de la frontera misma del mundo actual central, desde la periferia, esa filosofía no será ideológica (al menos lo será en menor medida). Su realidad es la tierra toda y para ella son (no son el no-ser) realidad también los ‘condenados de la tierra’. (DUSSEL, 1996, p. 21).

O processo da educação na América Latina passa por várias etapas. Se em um momento o paradigma tem o viés da “evangelização”, em outro, é o do “direito humano”, influenciado por múltiplas ideias oriundas de várias regiões do mundo.

[...] É dever da sociedade a oferta de educação para todas as pessoas. Por isso mesmo, o período republicano emergente em vários países do continente será marcado por campanhas e projetos de democratização de educação. Este é o primeiro sentido da ideia de ‘educação popular na América Latina’. (BRANDÃO, 1996, p. 13).

Essa ideia de escola como direito humano visava à participação consciente de todas as pessoas na vida do país. Nesse caso, o Estado deveria proporcionar a educação para que todos os cidadãos tivessem as mesmas possibilidades e oportunidades. É sabido que a escola não possibilitou a democratização de oportunidades, mas esteve sempre a serviço do poder hegemônico e reprodutor de desigualdades, portanto, não servindo como apoio aos processos de desenvolvimento, tal como era necessário na América Latina.

A educação começa a estar vinculada a processos comunitários de desenvolvimento e de transformação social. A tomada de consciência do número de analfabetos nas camadas mais baixas da sociedade e a necessidade capitalista de sujeitos capacitados para gerir a força de trabalho forçaram as campanhas de alfabetização, formação de mão de obra e ampliação dos modelos de alfabetização de adultos. Após a Segunda Guerra Mundial, diante da constatação das grandes maiorias analfabetas e semianalfabetas da América Latina, recomenda-se “desenvolver as capacidades e aptidões dos indivíduos, a fim de orientar sua conduta moral e social e sua capacidade profissional ou técnica” (BRANDÃO, 1996, p. 15). Essa preocupação não ocorre apenas no nível educacional; ela se estende a outros setores sociais, mas sempre a partir de uma perspectiva de assistência e nunca de transformação da realidade dos destinatários dessa ação.

Esse processo, iniciado na década de 40 do século passado, vai seguir com algumas modificações na década de 60, em que se aperfeiçoam as propostas de educação dirigida a populações de baixa renda. O problema dessas propostas, chamadas populares, é que elas, na realidade, incutem valores alheios aos da população, dificultando o “desenvolvimento do saber, dos valores, e dos modos de organização que, sendo próprios das camadas populares da sociedade, refletem seu modo de vida e os seus interesses e projetos históricos e são, portanto, uma base de criação de um poder político” (BRANDÃO, 1996, p. 19).

Não é possível ser ingênuo e acreditar que, por ser um projeto hegemônico, não houve e não há brechas para que haja alguma modificação social por meio do movimento educativo. Se em um momento se pode pensar na educação como algo que vai manter a

hegemonia das classes políticas e interesses das classes dominantes, também vale refletir que o fato de ela acontecer junto e pari passo com a sociedade, pode também possibilitar a reflexão sobre as questões sociais e favorecer uma proposta de mudanças dessas mesmas estruturas.

Quando se reflete sobre o modelo de educação não-formal dirigida às classes populares, observa-se que ela vem com a proposta de preparar as pessoas para o mercado de trabalho, seja no campo ou na cidade, visando possibilitar a geração de uma população que tenha uma “cidadania ativa, enquanto consumidora de bens, e passiva, enquanto produtora de ações políticas” (BRANDÃO, 1995, p. 24). Nesse modelo, a educação, ainda que se fale de uma dimensão comunitária, vai servir para manter a estrutura social hegemônica. Não visa a possibilidade de algum processo de mudança, pelo contrário, a ideia é que as pessoas se sintam confortáveis na situação em que estão.