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2. HISTÓRIA DO SURGIMENTO E PRÁXIS DA ORDEM

2.5. As repercussões das ideias de Santa Joana de Lestonnac na Educação Social

2.5.1 A Prática da Educação Popular na Ordem

Santa Joana, a partir da realidade de seu tempo, deu a sua resposta abrindo a possibilidade de ampliar a missão educativa, pois o seu desejo era “ter mil vidas para colocar a serviço da missão”. Se naquele momento histórico ela entendia que ainda havia muito o que fazer, lugares a ir, pessoas a educar, mãos a estender, hoje, a ODN continua “mantendo a chama” e “estendendo a mão” em 26 países, seguindo sua missão de evangelizar através da educação em diferentes plataformas: educação básica, universidades, paróquias, centros de saúde, hospitais, centros socioeducativos, com populações indígenas, campesinas, em organizações em defesa da vida e dos direitos humanos, tendo uma única missão: educar a serviço da fé que frutifique em obras de justiça, tendo como campo preferencial os jovens, a mulher e a família.

As 1.480 religiosas da Ordem da Companhia de Maria Nossa Senhora realizam sua missão educativa organizadas em províncias ou delegações: Província do Pacífico (Colômbia, Peru e Estados Unidos), da África Central (Camarões e República Democrática do Congo), da Europa (França, Bélgica, Itália e Albânia), da Espanha (Espanha), da Ásia (Japão, Filipinas e Vietnam), do México (México, Cuba e Nicarágua),

do Cone Sul (Argentina, Chile, Brasil, Paraguai e Bolívia); Delegação da Inglaterra (Inglaterra) e do Oriente Próximo (Egito e Líbano). Em 2003, seguindo uma das inspirações de Santa Joana, que sempre instou a suas “filhas” a buscarem continuamente trabalhar com outras e outros, iniciou-se a Rede Laical Companhia de Maria composta por aproximadamente 970 pessoas, entre mulheres e homens que desejam viver e partilhar a mesma Espiritualidade das religiosas da Ordem.

Os pressupostos e a visão de mundo que norteia os projetos sociais e a posição política da congregação foram reassumidos com base nas inspirações de Santa Joana no encontro do Paraguai: “Nossa Presença entre os Pobres y Excluídos”.

La opción por los pobres adquiere todo su sentido desde nuestra experiencia del Dios de Jesús, que se define como un Dios a favor de los pobres, de las víctimas. Desde ella confirmamos que los últimos, aquellos que viven una situación de marginación y de injusticia, contraria a la voluntad de Dios, deben ser los primeros. De este modo amamos como Jesús amó y hacemos de su testimonio la pauta de nuestras vidas y de nuestros compromisos.

En este casi medio siglo de nuestra historia reciente, queda patente que la opción por los pobres tiene un calado hondo en nuestra vida religiosa apostólica y se ha convertido en un irrenunciable de la misión de la Compañía de María.

Si miramos en trayectoria nuestros Documentos, podemos apreciar claramente la evolución de la misma: en el caminar con los pobres, hemos experimentado que ellos nos cambian y nos evangelizan y que nuestra mirada a la realidad del mundo se ha ido ampliando”. (ODN, 2011)

O pressuposto da educação popular e da educação comunitária e social é de caminhar junto, e os processos de aprendizagem e de mudanças ocorrem no encontro com o outro. O encontro com o outro na prática pedagógica de Jesus e de Santa Joana ocorre na troca, isto é, ambos são afetados. Pois parte de uma “concepção positiva e enriquecedora do diferente, baseada na convicção do valor do outro, que favoreça a inter- relação e o diálogo aberto, sem posturas de superioridade, discriminação étnica, xenofobia, sexismo […]” (ODN, 2007, p. 12). Esse encontro é o espaço privilegiado da produção de conhecimento e de valores.

É na opção preferencial pelos pobres que é expresso o compromisso com a educação popular da Ordem. Os educadores são convidados a “ter um conhecimento direto das realidades vividas pelas pessoas pobres e excluídas, a partir do desejo de deixar- se afetar e mobilizar por sua situação” (ODN, 2007, p. 12). É daí que em cada momento

o rosto desta prática se constitui pelo testemunho e a comunhão dos educadores com as concepções, teorias e ação.

O atrativo dessa proposta pedagógica se dá por esse testemunho coerente na América Latina, apesar de algumas irmãs terem pago com a própria vida por esse testemunho. Não defendemos aqui o martírio para todos, mas em alguns casos a educação popular e a educação comunitária na América Latina foi realizada com a mistura do sangue dos educadores e das vítimas, a tal ponto que Dom Pedro Casaldáliga declarou que o Sangue dos Mártires mistura com o sangue de Cristo e dessa experiência brota a libertação da América Latina.

De um ângulo da fé e de verdadeiro compromisso com o Povo, a perseguição e o martírio não intimidam: esclarecem e confirmam na opção e comprometem mais seriamente na caminhada. Esse sangue todo é mudo e vem se transformando num clamor continental pela Justiça e pelas reivindicações pela justiça e pela aquisição de todos os direitos do Povo índio, lavrador, operário. (CASALDÁLIGA, 1978, p. 142)

A pedagogia da Companhia de Maria, fundada na opção pelos pobres, se mistura com esse veio da América Latina.

Os desafios e as novas esperanças que a ODN se coloca hoje, depois de mais de quarenta anos da presença de comunidades de inserção entre os pobres e marginalizados, neste contexto latino-americano tão sofrido e explorado, forjaram os educadores populares da Ordem, o que confirma que “servir de uma maneira sempre nova” é “estender a mão às necessidades mais urgentes de salvação”.

Más de cuarenta años de andadura en los que la fidelidad al Espíritu, encarnado en los gritos y silencios de los hombres y mujeres de cada tiempo y lugar, ha ido modelando y abriendo el horizonte de nuestra vida religiosa apostólica y nos coloca hoy ante nuevos retos y nuevas esperanzas”. (ODN, 2011)

Revendo seu caminho de presença entre os pobres, a Companhia de Maria esteve atenta à realidade e a ouvir os clamores dos mais necessitados. Como desde a sua fundação, buscou escutar as necessidades da Igreja, dando uma resposta coerente de acordo com a realidade de injustiça e opressão reinantes na América Latina. A Igreja Latino-americana,

[...] a partir da Conferência de Medellín (1968) e mais tarde da de Puebla (1979), impulsiona o compromisso com os pobres. Isto significa um desafio assumido por vários institutos e congregações: optar por

estabelecer algumas comunidades em meios populares, para realizar a tarefa evangelizadora. A Companhia de Maria escuta este chamado e se soma a este movimento. (ODN, 2011)

Tanto para a Igreja quanto para os institutos religiosos é momento de sair dos espaços de comodismo e se posicionar ao lado do Cristo pobre e sofredor. E neste momento histórico, a Companhia de Maria começa a abrir suas comunidades religiosas inseridas em meio popular na América Latina, primeiramente na Colômbia 1960, Peru 1965, Chile 1968, Argentina 1969, Brasil 1972, México 1973, Paraguai 1976 e Bolívia 1998.

A Palavra de Deus refletida nas CEBs24 e nos Círculos Bíblicos foi o

impulso fecundo para gestar, com o povo, alternativas de vida. Irmãs e leigos, começamos a percorrer, como Companhia de Maria, um caminho novo na Educação. (ODN, 2011)

Hoje, após quase 50 anos de caminhada entre os pobres, podemos acreditar que a trajetória educativa de Santa Joana de Lestonnac iluminou a prática de educação popular, social e comunitária desenvolvida pela Ordem. “Las situaciones que se presentan en campos en los que tenemos poca experiencia, y en circunstancias conflictivas y ambiguas, hacen muy necesario el discernimiento como dinámica de nuestra búsqueda” (ODN, 2011).

Podemos cogitar que este estar no meio dos marginalizados foi lido pelas educadoras da ODN, a partir da máxima de Joana: “Nem todos calçam o mesmo sapato”,25 e então, refletindo quais eram os sapatos que calçavam o homem do campo, os indígenas, os afrodescendentes, a mulher marginalizada, o jovem das grandes periferias, a criança em situação de vulnerabilidade... Partiram em busca de outra forma de educar, que viesse da própria experiência dos povos latino-americanos, da experiência do povo simples, das Comunidades Eclesiais de Base: a Educação Popular. “[...] optar por los pobres no se improvisa, es necesario poner medios concretos. Se señala la importancia de favorecer una formación espiritual y académica que lo propicie, de visibilizar esta opción a través de nuestro estilo de vida...” (ODN, 2011).

24 No Brasil, em 1980, realizou-se o primeiro encontro de CEBs em nível latino-americano. “As religiosas

é que acompanham o processo de pessoas e comunidades” (Recuperação da memória histórica da mulher

na Vida Religiosa da América Latina. CLAR, 2002).

25 Joana de Lestonnac, por ser sobrinha de Montaigne e provavelmente ter tido muita intimidade com seus

A saída dos colégios para as periferias trouxe consigo uma mudança no estilo de vida e também vocações religiosas do meio popular. Isso também possibilitou uma maior proximidade ao mundo dos excluídos.

Muitas vezes o trabalho se inicia a partir de alguma solicitação da Igreja local, de uma congregação religiosa, de uma necessidade da comunidade... e a partir da observação da realidade e de um processo de visitas às famílias dos bairros, do campo, povoados, grupos de trabalho, também nas comunidades eclesiais, nos grupos de oração, a realidade vai sendo conhecida, assim como as necessidades do lugar. Mesmo tendo havido um convite, uma solicitação, faz-se necessário um tempo para conhecer a realidade da perspectiva das educadoras e fazer uma aproximação com as pessoas. E a partir desse conhecimento ir tentando perceber se as pessoas também têm consciência das suas necessidades para que se possa dar início a um processo educativo. Esse processo vai se dando através dos grupos de base, de oração, e as pessoas vão se dando conta da sua realidade de opressão, de carência, o que possibilita o empoderamento das mesmas e, junto com os outros, em comunidade, conseguem buscar alternativas a partir da realidade em que estão inseridos.

Desse processo, surgem escolas, trabalhos de contra turno escolar, alfabetização de adultos, pré-escola, cooperativas agrícolas, cooperativas de trabalho, trabalho com mulheres, com indígenas, com camponeses, grupos de saúde, roupeiros comunitários, grupos de artesanato, assim como catequese de adultos e de crianças, formação de lideranças, formação, acompanhamento de comunidades...

Recolheremos aqui algumas constatações das participantes do Tercer Encuentro Latinoamericano de Educación Popular - 1994, que continuam sendo atuais, na prática da educação popular na Ordem Companhia de Maria Nossa Senhora.

O estar com o povo desde a escuta, a relação de igualdade, desde o acompanhamento nos foi convertendo a ser mais simples nas relações. Fomos aprendendo junto a contemplar a vida, a rezar de diferentes formas, a ser mais contemplativas na ação, aprendemos a discernir em situações de conflito, a buscar a vontade de Deus constante e paciente pela luta da justiça e da dignidade das pessoas.

Vemos a Deus vivo na fé do povo; este Deus encarnado, morto e ressuscitado nos pobres. As situações de maior urgência nos tocam, nos reclamam. Com ar de família, de Companhia com sentido de Corpo Apostólico, percebemos que o Espírito sopra fortemente neste modo de viver a inserção e a missão, além das ideologias, é o Evangelho e sua Palavra quem nos dá força ao caminhar.

1. “O cuidar da chama...” Quer dizer, esta experiência desde o pobre, na vida, nos conflitos...

2. “Em união de orações...” Como comunidade Apostólica que vive a missão, não como protagonistas... Sempre desde o “Magis” inserção. Em processo constante e ao mesmo tempo com paciência histórica.

3. “Para estender a mão...” Atentas às situações mais necessitadas de salvação: aos rostos que emergem do Cristo crucificado hoje, aos infernos que vivem os insignificantes da história. Atentas ao pequenino que nasce e que necessita uma mão de mulher, a mão de Maria, que cuida, apoia, orienta, sustenta, acompanha e antecipa a VIDA”. (3º ENCUENTRO LATINOAMERICANO DE EDUCACIÓN POPULAR. 1994. Trad. nossa).

Essas conclusões nos fazem perceber que a proposta educativa da Companhia segue se atualizando, em contextos onde haja necessidade de que a vida seja cuidada e que a justiça seja promovida.

Para explicitar o rosto e as práticas dos trabalhos dos educadores sociais vinculados à Ordem, apresentamos uma carta de uma liderança da comunidade Nossa Senhora Aparecida, Paraíso das Piabas – Minas Gerais:

As irmãs fizeram diferença na formação humana e cristã. Creio que muitos cresceram neste acompanhamento que elas fizeram. Ajudaram também no fortalecimento do significado de ser COMUNIDADE. Algo interessante também era e continua sendo a presença na Associação do bairro.

O grupo de mães. Ainda me lembro de sua criação, o entusiasmo das irmãs, dedicação. Sinto que foi um alicerce muito bem posto, que perdura ainda hoje. Naquele tempo sentia que não era apenas um meio de gerar renda, mas também de socialização, de encontro de mulheres, muitas das vezes sofridas, e que encontravam aí atenção e acolhida. (COMUNIDADE N. SRA. APARECIDA. PARAÍSO DAS PIABAS, Ribeirão das Neves – MG).

A Ordem da Companhia de Maria, após a celebração dos 400 anos, em 2007, sentiu a necessidade de um planejamento global de toda a sua missão educativa. No contexto da “Missão Entre os Pobres e Excluídos” (ODN, 2011), foram analisados os critérios de discernimento das obras existentes, para ter como base as futuras presenças nos contextos de exclusão:

Comunidade que assume a Obra ou Projeto; Projeto Educativo claro e definido; equipe de educadores comprometidos com o projeto; incidência na realidade e impacto no contexto; articulação com outras obras e comunidades da Companhia; trabalho em rede com outros grupos e instituições; sustentabilidade econômica; canais de

sensibilização e compromisso, sentido de pertença à comunidade eclesial. (ODN, 2011)

O Planejamento nos leva a confirmar como é importante para a Ordem desenvolver sua missão educativa junto àqueles que estão às margens, reafirmando o seu compromisso pela Educação da fé e promoção da justiça. Nele, a Educação Popular é sempre uma expressão dos grupos marginalizados, especialmente as mulheres, as crianças, os jovens, os indígenas, os negros, os desempregados, os sem-terra e sem moradia, os imigrantes que circulam em toda a América Latina. Ela expressa a desigualdade social, a perversidade e a crueldade em que vivem milhões de pessoas neste continente. Ela também está associada aos movimentos sociais e políticos que lutam pela democracia.