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CAPÍTULO 2 RECONFIGURAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL

2.1 EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL E AS INFLUÊNCIAS DOS MODELOS INTERNACIONAIS

O ensino superior não teve espaço no período do Brasil Colônia nem do Império; as primeiras iniciativas se dão apenas após o início da República, na década de 1920, com o surgimento da Universidade do Rio de Janeiro (URJ). Antes, houve várias tentativas de criação da universidade no país.

No período colonial, os jesuítas propuseram a criação da universidade, para elevar a graus superiores formação dos alunos dos colégios da Companhia, o que foi negado pelos colonizadores portugueses, pois para eles se deveria evitar a organização de cursos superiores

15 Embora a colonialidade (do saber, do Ser e do poder) não seja preocupação deste trabalho, fazemos a

indicação desse fenômeno apenas para indicar a dificuldade de fazer valer a autonomia, em especial a universitária, de sistemas de educação superior em países dependentes, agravada pela dimensão global do conhecimento e dos fenômenos do poder. Pode-se consultar o termo a partir de seu criador, o intelectual peruano Anibal Quijano, e de vários pesquisadores que o têm aplicado à educação, com destaque para o Grupo Modernidade/Colonialidade, internacional e interinstitucional.

na colônia e, aqueles que tivessem elevado poder aquisitivo, deveriam completar seus estudos nas universidades europeias. Até aqui se observa que Portugal exerceu grande influência sobre a formação educacional das elites brasileiras.

Com a vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, houve a instalação dos primeiros cursos superiores na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro, fundamentalmente cátedras superiores de caráter profissionalizante que pudessem atender às necessidades da aristocracia monárquica, isto é, quaisquer sinais de independência cultural e política da colônia era alvo de atenção para que não fossem bem-sucedidos. Assim, o Brasil não chegou a implantar efetiva e puramente os modelos clássicos de educação superior, o modelo napoleônico conquistando certa predominância durante o Império com a instalação da Academia de Medicina (incluindo os cursos de farmácia, obstetrícia e odontologia), duas faculdades de Direito e uma de Engenharia, organizadas em cursos ou faculdades isoladas, como instituições públicas mantidas pelo Estado brasileiro, que não sofreu qualquer alteração com a independência de 1822.

Com a proclamação do Brasil República (1889) e a primeira constituição republicana de 1891, o ensino superior é mantido como atribuição do poder central, mas não exclusivamente. De 1889 até 1930 o ensino superior no Brasil sofreu um conjunto de mudanças decorrentes de diferentes diplomas legais: Reforma Benjamin Constant (1880- 1881); Reforma Rivadávia Corrêa16(1911-1915) - com essas reformas, o ensino sai da vertente federal e se desloca para os estados. Surgem, então, a Universidade de Manaus, em 1909, a Universidade de São Paulo, em 1911, e a Universidade do Paraná, em 1912, como instituições de iniciativa particular. Em 1920 foi instituída, por meio do Decreto n. 14.343, a Universidade do Rio de Janeiro (URJ), que reuniu três escolas profissionalizantes preexistentes, a Escola Polytechica do Rio de Janeiro, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, que teve assegurada autonomia didática e administrativa própria das instituições europeias. Essa foi a primeira universidade criada pelo poder público, resultado da reunião de três escolas tradicionais, sem maior integração entre elas e cada uma mantendo as suas características (FÁVERO, 2006). Juntamente com a Associação Brasileira de Educação (ABE), de 1924, e a Associação Brasileira de Ciências

16 A Reforma Rivadávia Corrêa instituiu o ensino livre. Por meio dela, o governo do presidente Hermes da

Fonseca, tendo como seu Ministro da Justiça o jurista Rivadávia Corrêa, ambos seguidores da doutrina positivista, decretaram o fim do status oficial do ensino. Pelo Decreto Presidencial n. 8.659, de 1911, determinou-se que as escolas de ensino secundário e superior perderiam a condição de instituição governamental e passariam a ser entidades corporativas autônomas. Com isso, o Estado perde a titularidade do monopólio da validade oficial dos diplomas e certificados, tal prerrogativa passando a ser dessas entidades. (CURY, 2009, p. 717)

(ABC), de 1916, inicia-se o debate científico-acadêmico que orientará o caminho a ser seguido pelas universidades, abrangendo temáticas como a concepção e modelo de universidade, e a autonomia universitária.

Aprofundando esse debate, evidenciam-se dois pontos de vista distintos quanto às funções da universidade que se desejava implementar no país: de um lado, aqueles que defendiam um modelo centrado no desenvolvimento da pesquisa científica e na formação de investigadores; de outro, os que consideravam a centralidade da formação profissional. O debate se ampliou durante a 1a Conferência Nacional de Educação, promovido pela ABE em 1927, que defendia que o ponto de partida das instituições universitárias deveria ser a pesquisa científica. Entretanto, a proposta não se consolidou na prática e, em 1927, a UFMG foi criada com o mesmo modelo de ensino profissional da URJ.

Com a criação do Ministério da Educação e da Saúde Pública (MESP), em 1931, os diversos segmentos de ensino (secundário, superior e comercial) passam por reformas encabeçada pelo ministro Francisco Campos, reformas essas de características centralizadoras, pois se tratava, com a Revolução de 1930 que abriu a Era Vargas, de superar a fragmentação dos poderes provinciais (a política do café com leite que dependia de acordos com as presidências dos estados da federação) e aprofundar o protagonismo dos órgãos centrais, consolidando o Estado nacional. É dessa data e desse órgão a proposição do Decreto n. 1985117, de abril de 1931, que ficaria conhecido como Estatuto das Universidades. De um lado, organizava-se a formação das elites e de sua visão política de mundo; de outro, estabeleciam-se os mecanismos de capacitação para o trabalho dirigido às classes menos prestigiadas. Nessa Reforma, a integração das escolas e faculdades se dava na nova estrutura das universidades, mesmo sem articulação nas afinidades e nos propósitos, sem a prerrogativa da autonomia, que ainda dependia da administração superior, a qual também não a possuía plenamente (FÁVERO, 2006). A Reforma de Campos, de 1931, então, indicava que a finalidade da universidade “transcende o exclusivo propósito do ensino, envolvendo preocupações de pura ciência e de cultura desinteressada.” (FÁVERO, 2006, p.4)

O Decreto n. 19851 dispõe que o ensino superior deve obedecer, preferencialmente, ao “systema universitario, podendo ainda ser ministrado em institutos isolados, e que a organização technica e administrativa das universidades é instituída no presente Decreto, regendo-se os institutos isolados pelos respectivos regulamentos, observados os dispositivos

17 O original desse tão importante decreto está em www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930 -1939/decreto-

do seguinte Estatuto das Universidades Brasileiras.” No seu Art. 6º indica que “as universidades brasileiras poderão ser criadas e mantidas pela União, pelos Estados ou, sob a forma de fundações ou de associações, por particulares, constituindo universidades federaes, estaduaes e livres.” As indicações vêm no mesmo sentido, a se repetir quase sete décadas depois, da Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que iremos tratar no capítulo seguinte.

Mesmo com todas as dificuldades de um período centralizador foi possível apresentar alguns feitos como a criação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, e da Universidade do Distrito Federal18 (UDF), em 1935, ambas criadas por decreto. Aqui,

destacamos a perseverança de Anísio Teixeira, que encabeçou a criação da UDF para que tivesse características de universidade de pesquisa científica e cultura desinteressada e, para isso, deveria constituir-se como instituição livre e autônoma. O esforço do intelectual baiano e de outros professores da UDF em mantê-la como instituição autônoma e voltada à pesquisa científica, à formação cultural, acadêmica intelectual teve seu preço:

Dentro do clima de inquietação e do estado de guerra decretado no país, o destino do fundador da UDF não poderia ser outro: afastamento de Anísio das funções públicas que vinha exercendo. Exonerado do cargo de Secretário de Educação a pedido, Anísio recebe de imediato apoio de colaboradores nos serviços de educação do Distrito Federal, alguns dos quais integrantes dos quadros da Universidade, também demissionários. (FÁVERO, 2006, p. 26)

Para o governo federal, esse não era o modelo oficial de universidade proposto pelo MESP. É assim que, por meio do Decreto nº 1.063, de 1939, admite-se a incorporação e transferência dos cursos da UDF para a Universidade do Brasil (UB), que para o governo seria a universidade instituída, mantida e dirigida pela União e que teria função de modelo nacional.

Após o presidente Getúlio Vargas ser destituído do poder, em 1945, e ainda durante o governo provisório que se instaura, há uma tentativa de redemocratização do país para um regime menos autoritário e mais livre. O Ministro da Educação Raul Leitão da Cunha propõe, então, e o Presidente José Linhares sanciona o Decreto-Lei nº 8.393, em 17/12/1945, que

18 A Universidade do Distrito Federal (UDF), foi criada pelo Decreto Municipal n° 5.51 3 em abril de 1935,

composta por cinco escolas: Ciências, Educação, Economia e Direito, Filosofia e Instituto de Artes. O principal objetivo da nova universidade era encorajar a pesquisa científica, literária e artística, e formar os quadros intelectuais do país, e não apenas ‘produzir’ profissionais. (GPDOC/FGV disponível para consulta em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos3037/RadicalizacaoPolitica/Universidade DistritoFederal

“concede autonomia administrativa, financeira, didática e disciplinar à UB, e dá outras providências” (BRASIL, 1945), desde que fosse cumprido o dispositivo que dava o ato de nomeação ao Presidente da República e a escolha por meio de uma lista tríplice entre professores catedráticos da UB, aposentados ou não. Os eleitores eram os integrantes do Conselho Universitário, que fariam a escolha em votação uninominal. Dessa forma, faria parte da gestão da UB o Conselho Universitário, a Reitoria, mas também o Conselho de Curadores. Para Fávero (2006, p. 26), no entanto, não foi isso que se observou nos documentos da Universidade do Brasil, pois a “autonomia outorgada às universidades não passa muitas vezes de uma ilusão, embora se apresente, por vezes, como um avanço.”

Nesse passo, o que se observa é que a universidade moderna, da forma que conhecemos atualmente, se configurou no século XIX e originou três modelos clássicos de universidade: o modelo napoleônico, o modelo anglo-saxônico e humboldtiano (ou prussiano). A origem desses modelos se caracterizou pelo protagonismo de diversos atores- base: o Estado, a sociedade civil e a comunidade interna à instituição. Segundo De Vivo e Genovesi (1986, p.146), “a prevalência do Estado dá origem ao modelo napoleônico; prevalecendo a sociedade civil tem-se o modelo anglo-saxônico; e sobre a autonomia da comunidade acadêmica se funda o modelo prussiano.”

Para Moraes (2017), os modelos alemão e francês de educação superior repercutiram globalmente e foram exemplares paras diversos países, a eles se incorporando o modelo norte-americano. O modelo alemão é o humboldtiano, o mais antigo do período contemporâneo. Criado por Von Humboldt, na primeira metade do século XIX, estabeleceu um sistema que combina ensino e pesquisa, e tornou-se tão influente que a Alemanha se transformou no polo de atração para os grandes intelectuais dos Estados Unidos do final do século XIX e início do XX, quando neste país se constituíram as denominadas ‘universidades de pesquisa’ seguindo o modelo alemão. Era para lá que eles se dirigiam, com o objetivo de aprofundar sua formação em pesquisa. Na Alemanha, o ensino privado é mínimo, em todos os níveis: elementar, médio e superior, sendo este último quase totalmente público. O foco da educação alemã está na escola média – o chamado ‘sistema dual’ –, cujas características profissionalizantes organizam a transição da juventude para a idade adulta, atingindo cerca de 70% dos jovens alemães com algum tipo de ensino profissional. Segundo Moraes (2018, p. 3), a Alemanha “apresenta um ensino médio fortíssimo, com viés profissionalizante e dois tipos de instituição de ensino superior: a universidade e a escola superior. O tempo médio de permanência dos alunos nessas instituições é de cinco a seis anos.” O resultado disso é um

país que possui um padrão industrial bastante inovador. O modelo humboldtiano ou prussiano apresentou a concepção de universidade liberta da regulação estatal, na qual ensino e pesquisa devem andar juntos e o ensino não necessariamente se volta à formação profissional. Na Alemanha, a universidade é um degrau a mais, cujo acesso é relativamente restrito.

Quando as universidades de pesquisa norte-americanas foram criadas, em 1870, seus fundadores se inspiraram no modelo alemão. Após a Segunda Guerra Mundial, com a Europa devastada, os Estados Unidos tornaram-se o centro do mundo. Os grandes recursos econômicos proporcionados pela atividade industrial voltada para o esforço de guerra forneceram a base material da hegemonia cultural norte-americana que as indústrias cinematográfica e fonográfica ajudaram a disseminar. E isso repercutiu também na exportação de seu modelo de ensino superior. Na avaliação de Moraes (2018, p. 3), os norte- americanos

têm um ensino médio de qualidade muito desigual. A maioria das High Schools têm baixa qualidade. Eles tentam resolver essa deficiência no nível superior por meio dos Community Colleges, que oferecem um ensino de curta duração, de dois ou três anos, e cujo nível é quase equivalente ao do ensino médio alemão (...) Bombeiros, ajudantes de enfermagem, eletricistas, detetives se formam em

Community Colleges.

Na avaliação desse autor, os Estados Unidos têm um ensino médio fraco e procuram suprir essa deficiência estrutural com os community colleges. Segundo o autor, mesmo as universidades norte-americanas que estão no topo do ranking mundial possuem um ensino de graduação menos sofisticado. O seu padrão de excelência está concentrado nos cursos de pós-graduação. O ensino superior em nível de graduação nos Estados Unidos é, em média, 70% ofertado pelo setor público, sendo que os alunos estudam em universidades estaduais públicas (não há federais) ou em community colleges, que também são públicos. Moraes (2018, p. 4) então resume a educação superior nos Estados Unidos da seguinte forma:

é paga, com anuidades e taxas. Um terço do orçamento das escolas é sustentado pelas taxas cobradas dos estudantes. O restante é basicamente dinheiro público. Inclusive grandes e renomadas escolas privadas, como Harvard e MIT, recebem enormes aportes de dinheiro público. O rendimento proveniente das aplicações dos patrimônios privados das universidades e as doações feitas por grandes magnatas cobrem uma parte mínima dos orçamentos. Essas doações servem muito mais para os herdeiros comprarem seus lugares nas escolas.

Como se observa, as instituições públicas são custeadas também por recursos das famílias do estudante por meio de taxas e anuidades. Além disso, outras fontes, como as doações e a venda de serviços aos governos, entram no orçamento das instituições de educação superior, embora eles não representem muito. O recurso é majoritariamente público nas instituições públicas, inclusive nas famosas instituições privadas. O Massachusetts Institute of Technology (MIT), por exemplo, é basicamente um grande provedor de pesquisa contratada, em boa parte do tempo fortemente direcionada para o setor militar.

O modelo napolêonico foi replicado nos países que participaram do antigo império colonial francês19. A França possui um modelo que fica entre o alemão e o norte-americano, mas com uma grande tendência ao modelo anglo-saxônico, com um sistema de educação superior muito peculiar e que apresenta quatro tipos de escolas, a universidade sendo uma delas. Praticamente todos os estudantes que terminam o ensino médio têm o direito de entrar em alguma universidade, a não ser em alguns cursos específicos, como o de Medicina. De acordo com Moraes (2018, p. 5), a universidade francesa é pouco seletiva e,

Em geral, ela é uma ‘escolona’ aberta e não o centro de educação da elite profissional, pública ou privada, nem o centro da pesquisa científica e tecnológica. Isso como regra geral, é claro, pois existem alguns departamentos de algumas universidades que são altamente sofisticados.

A instituição ‘nobre’ de formação dos quadros de nível superior do sistema francês, altamente seletiva e elitizada, é a chamada ‘Grande Escola’ como a Escola de Minas, a Escola Politécnica e a Escola Nacional de Ciência Política. Elas formam a elite dirigente do país - presidentes, ministros, diretores de grandes empresas etc. Essas escolas estão fora da estrutura das universidades e o acesso a elas se faz por meio do desempenho na estrutura muito capilarizada dos liceus de nível médio. Quando aprovados, os estudantes não entram propriamente nas Grandes Escolas, realizando o que se chama de classes preparatórias.

No Brasil, as diretrizes que estruturaram o ensino superior foram alicerçadas nas

19 Durante o século XX, os sistemas europeus de ensino superior assumiram dois modelos: binários e

unitários. Nos sistemas binários acomodavam as universidades mais tradicionais, lugar do saber e da cultura variada e da pesquisa ‘desinteressada’; separadas dessas instituições estão as escolas profissionais, lugar de aprender os saberes aplicados, técnicos. Esses sistemas binários se concentravam na Inglaterra, Alemanha e Portugal. Já os sistemas unitários as escolas profissionais eram integradas ao corpo das universidades. Para ler mais sobre o tema consulte-se o capítulo: O caso francês: um sistema peculiar, de Reginaldo Moraes. (Unesp, 2017, pp. 49- 70)

normas francesas, tendo como exemplo notável a Universidade de São Paulo, fundada em 1934 nessas bases, com a significativa influência posterior norte-americana durante a ditadura militar, que gerou as bases da reforma de 1969. A partir dos anos de 1990, a reforma da educação superior brasileira dos governos FHC definirá as características principais que estão em curso até os dias atuais, fundada na diversificação de formas institucionais e no objetivo de aproximação ao modelo estadunidense.

2.2 O MODELO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR ESTADUNIDENSE E A PRIVATIZAÇÃO