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1 EM BUSCA DE UM HORIZONTE CRÍTICO PARA O QUEFAZER EM PSICOLOGIA

Historicamente, a Psicologia, como campo de produção do conhecimento e intervenção na realidade, tem atuado, hegemonicamente, atrelada à ordem burguesa, e, isto significa, afirmar que os conhecimentos daí derivados atenderam e seguem servindo aos interesses da classe dominante, que, em nossa realidade, foram responsáveis, dentre outras atrocidades, pela colonização sanguinária, espoliadora e violenta pela qual passamos na América Latina (Parker, 2007; Cuellar, 2017). O alinhamento ao projeto de classe dominante se expressa em diferentes dimensões, com a (re)produção de esquemas cientificistas provenientes de um positivismo antiquado, possuidor de um caráter individualista e meramente quantitativista, pelo apagamento da memória histórica de nosso povo, pelo racismo e machismo necessários à sustentação da ordem vigente, bem como pelo fatalismo engendrado ideologicamente como mecanismo de silenciamento e controle subjetivo de sujeitos e grupos sociais (Martín-Baró, 2017, Pavón-Cuellar

& Mentinis, 2020).

Nessa direção, acordamos com Parker (2007) e Fairclough (2008) de que a Psicologia em seu passado, mas também em seu presente, configura-se como uma poderosa tecnologia necessária na guerra ideopolítica travada no âmbito da sociedade capitalista neoliberal. Ou seja, a Psicologia tem sido um importante instrumento utilizado no convencimento de sujeitos oriundos das classes subalternas, bem como os demais setores sociais, a aceitarem e introjetarem o modo de vida sob o capital como algo imutável, e, mesmo, desejado. Valores e práticas como competitividade, meritocracia, individualismo e egoísmo são tratados como naturalmente humanos, algo a ser, inclusive, estimulado, - com a ajuda de um profissional da Psicologia e afins -, para o pretenso

“desenvolvimento” das pessoas.

PARTE 1 - CAPÍTULO 8 - PSICOLOGIA E A PRÁXIS PROFISSIONAL NO âMBITO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: DIÁLOGOS E CAMINHOS POSSÍVEIS

FERNANDO SANTANA DE PAIVA, CAMILA BORGES MACHADO, LUIZA MIRANDA FURTUOSO, MATHEUS HENRIQUE SILVA

Por conseguinte, conforme bem apresentam Oliveira e Costa (2018), a noção liberal de indivíduo que apresenta uma subjetividade ensimesmada, interiorizada, intrapsíquica e autodeterminada, apartada, portanto, do contexto político-econômico e histórico-social é funcional à ideologia da classe burguesa dominante, bem como aderente aos valores da sociedade capitalista em voga, que prescindem da manutenção do status quo. Expressa-se, a partir do exposto, uma restrição ao terreno da pseudo-concreticidade materializada pela suposta dicotomia entre indivíduo e sociedade, engendrando uma miríade de limitações para a apreensão do sujeito em sua verdadeira concretude.

No Brasil, bem como no restante da chamada América Latina, conforme mencionado, a Psicologia emergiu aliada às classes dominantes da formação social brasileira com concepções de indivíduo, personalidade e comportamento que justificaram a ordem social extremamente injusta do país (Lacerda JR., 2013). Em um primeiro momento, tinha como atuação as áreas da clínica individual, escolar e organizacional e do trabalho, sempre aportando um papel regulador, adaptativo e normalizador, recorrendo constantemente à individualização e à patologização, tratando como anomalia ações da classe trabalhadora que provocassem tremores ao ordenamento do capital (Lacerda Jr., 2016).

Dimenstein (2000) e Guzzo (2016) corroboram as críticas aventadas, afirmando ainda que a Psicologia, de modo geral, almeja modificar o sujeito sem alterar a ordem social.

Lacerda Jr. (2010) considera ainda que a Psicologia se restringe em explicar os problemas sociais através da perspectiva individual, desencadeando assim uma naturalização das mazelas sociais, o que acaba por contribuir para a manutenção e reprodução do sistema classista, racista e patriarcal vigente.

Contudo, segundo Antunes (2012), a construção da Psicologia no Brasil - e na América Latina -, baseia-se em uma heterogeneidade, onde coexistem diversas perspectivas epistemológicas e teórico-metodológicas, que orientam as práticas profissionais nos diferentes campos de atuação.

Existem correntes em nosso campo ainda alinhadas com o projeto de dominação e manutenção da ordem de acordo com o que foi acima explicitado, mas, também, paradigmas e perspectivas que têm buscado um outro horizonte para a Psicologia, e, indo muito mais além, para a construção de um novo mundo, de um novo projeto de sujeito e humanidade (Cuellar, 2014 - 2017).

Seguindo essa direção, no presente trabalho, em razão da complexidade que a realidade de atuação da Psicologia no âmbito da Política de Assistência Social nos impõe (pobreza, miséria, desigualdades), bem como na tentativa de fortalecermos uma perspectiva crítica, transformadora e libertária no bojo da Psicologia, partiremos das contribuições já acumuladas, e, indubitavelmente, em processo de contínua construção, oriundas da Psicologia Comunitária latino-americana e da Psicologia da Libertação. Avaliamos que se trata de perspectivas alinhadas a uma práxis ética e politicamente comprometida com as maiorias populares, além de uma expressão concreta de um quefazer crítico em nossa área.

PARTE 1 - CAPÍTULO 8 - PSICOLOGIA E A PRÁXIS PROFISSIONAL NO âMBITO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: DIÁLOGOS E CAMINHOS POSSÍVEIS

FERNANDO SANTANA DE PAIVA, CAMILA BORGES MACHADO, LUIZA MIRANDA FURTUOSO, MATHEUS HENRIQUE SILVA

Nesta perspectiva, Parker (2015) considera fundamental que a crítica à Psicologia possa se orientar, sinteticamente, por alguns aspectos: 1) o modo de produção do conhecimento hegemônico, que se vale de uma perspectiva neutra e asséptica, distante da realidade social; 2) o individualismo que sustenta suas análises e práticas em relação ao sujeito e a subjetividade; 3) a necessidade de reflexão sobre os processos de construção de conhecimento, engendrando novos aportes epistemológicos e metodológicos à área que explicitem os seus limites, mas que também contribuam para a emancipação dos sujeitos e grupos sociais; 4) o reconhecimento de que o conhecimento, bem como as práticas em Psicologia, estão imersas em relações de poder e, que, portanto, podem contribuir para a legitimação de ideologias dominantes.

Além de um convite para repensar a Psicologia e o seu quefazer, trata-se, ainda, de um movimento em prol da construção de novas articulações com campos do conhecimento como a sociologia, antropologia, ciência política, mas também a medicina, saúde coletiva e o serviço social, dentre outros, que forem considerados importantes para uma melhor apreensão sobre as relações entre sujeito e sociedade. Ademais, é essencial que o conhecimento e a prática em Psicologia se dê em diálogo aberto e completamente disponível para com os sujeitos, grupos e movimentos sociais que produzem sua experiência de vida, e, que, portanto, podem contribuir para que a Psicologia se reinvente e se supere como disciplina do controle, da ordem e da normalização.

A Psicologia Comunitária latino-americana e a Psicologia da Libertação de Ignácio Martín-Baró emergem, em nosso continente, como alternativas concretas para um quefazer psicológico concatenado com as reais necessidades de nosso povo. Para além de um movimento de crítica à Psicologia hegemônica, tais vertentes apresentam um arsenal teórico e metodológico, bem como visam desenvolver uma nova epistemologia no tocante à produção de conhecimento em nossa área.

A ênfase dada à participação social, à construção coletiva das ações, bem como a busca constante pelo diálogo horizontal entre os atores envolvidos, são algumas das características centrais destes campos do conhecimento (Guzzo, 2016) (Góis, 2005) ( Ximenes & Góis, 2010).

Indubitavelmente, trata-se também de um movimento em prol da decolonização do pensamento e da ação da psicóloga e do psicólogo que exerce sua atividade em nosso continente.

Conforme adverte Martín-Baró (1986), tendo em vista o regime que determina a Psicologia como ciência à serviço do capital, é peremptório, e ademais, um exercício ético, que a Psicologia se liberte de si própria primeiro para que, assim, possa contribuir na libertação de outrem. Nessa perspectiva, a construção destes campos no bojo da Psicologia tem se pautado em uma ação dialógica, ética e politicamente comprometida com a transformação das condições de vida dos sujeitos e grupos sociais. Assim, acumula contribuições de campos distintos do conhecimento, como a Pedagogia conscientizadora de Paulo Freire, a Sociologia Crítica de Orlando Fals Borda, a Teologia da Libertação de Leonardo Boff, a Filosofia da Libertação de Enrique Dussel, assim como o movimento da Reforma Sanitária e da Saúde Coletiva brasileira/latino-americana, pautando-se em contribuições de Sérgio Arouca, Maria Cecília Donnangelo, dentre outros.

PARTE 1 - CAPÍTULO 8 - PSICOLOGIA E A PRÁXIS PROFISSIONAL NO âMBITO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: DIÁLOGOS E CAMINHOS POSSÍVEIS

FERNANDO SANTANA DE PAIVA, CAMILA BORGES MACHADO, LUIZA MIRANDA FURTUOSO, MATHEUS HENRIQUE SILVA

A partir das premissas expostas acima, discutiremos a seguir o processo de inserção da Psicologia no âmbito da Política de Assistência Social, compreendendo as dissonâncias que possam existir entre a práxis em Psicologia e a realidade enfrentada no cotidiano dos serviços. Além disso, consideraremos a própria configuração das políticas sociais em nosso país, bem como os limites impostos à assistência social em nossa atual conjuntura.

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