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É na configuração da política de assistência, acima exposta, que se põe o parâmetro do nosso debate acerca do trabalho profissional do Serviço Social nesta política para o fortalecimento das mobilizações, ações coletivas e lutas dos sujeitos que a demandam.

A direção política da profissão e os avanços do Serviço Social brasileiro ao longo dos últimos 40 anos recusam a adoção de abordagem conservadoras, autoritárias ou disciplinadoras, de cunho moralizante, que individualizam a “questão social”, culpabilizam ou criminalizam as famílias e os indivíduos por sua condição de pobreza. Como explicita Raichelis (2010, p. 769),

“os assistentes sociais, com base em sua autonomia profissional, ainda que relativa, e tendo em vista prerrogativas legais, éticas e técnicas -, estão sendo desafiados a inovar e ousar na construção de estratégias profissionais que priorizem abordagens coletivas” que incentivem a participação dos indivíduos e das famílias na política, no intuito de contribuir para a superação de apassivamentos, subalternizações e tutelas.

O atual projeto profissional do Serviço Social surge vinculado a um novo projeto societário, já que propõe a construção de uma nova ordem social, sem exploração de classe, etnia e gênero, tendo a liberdade como valor ético central e o compromisso com a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais. Por estar vinculado a um novo projeto societário (Netto, 2009), o projeto profissional encontra limites estruturais para se concretizar, principalmente no contexto de regulação social fundamentada na orientação ultraneoliberal em que há redução das políticas sociais, expansão da concentração e centralização de riqueza e da sistemática implementação de uma política macroeconômica lesiva à massa da população.

Não obstante, ao considerar a dinâmica contraditória e o contexto histórico desfavorável ao projeto ético-político não se pretende, por isso, desacreditá-lo, mas sim ter clareza de seus desafios e reconhecer a sua centralidade no questionamento das relações sociais postas pela sociabilidade capitalista. É com esta compreensão, que afirmamos a necessidade de avançarmos nos indicativos

13 Apesar da política de assistência social ser um campo de trabalho multiprofissional e interdisciplinar, ela se constitui “historicamente como uma das principais mediações do exercício profissional dos assistentes sociais, sendo reconhecidos socialmente (e se autorreconhecendo) como os profissionais de referência desta política” (Raichelis, 2011, p. 751).

PARTE 1 - CAPÍTULO 7 - POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E O (AINDA) DESAFIO DO TRABALHO

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de intervenção profissional, parte ainda pouco explorada neste projeto profissional. Como apontado por Netto (1999, p. 106):

[...] não se desenvolveram suficientemente as suas possibilidades [do projeto profissional], por exemplo, no domínio dos indicativos para a orientação de modalidades de práticas profissionais, neste terreno, ainda há muito por fazer-se) [...] (grifos nossos).

Nesta direção, como afirma Iamamoto (2009, p. 354):

Alargar as possibilidades de condução do trabalho no horizonte daquele projeto exige estratégias político-profissionais que ampliem bases de apoio no interior do espaço ocupacional e somem forças com segmentos organizativos da sociedade civil, que se movem pelos mesmos princípios éticos e políticos.

Ampliar “bases de apoio no interior do espaço ocupacional” significa criar possibilidades de articulação com os/as demais trabalhadores/as que compõem o processo de trabalho nos espaços sócio-ocupacionais (como aqui tratado nesta coletânea, no caso na política de assistência social e com os trabalhadore(a)s da psicologia) bem como com os segmentos das classes subalternas (e suas organizações) que demandam o acesso aos serviços e benefícios que compõem o nosso trabalho nestes espaços (no caso os que compõem o SUAS). Objetivamos, aqui, pontuar algumas ações que possam potencializar e ou desenvolver processos que politizem a política na direção da visibilização pública e coletiva no que nela existe de precário, insuficiente ou o que é inexistente.

O tema da participação popular na PNAS/2004 está referenciado na questão da “transferência de poder de decisão”; bem como das “garantias de canais de participação local”. Mas estas indicações não são tratadas de forma precisa, havendo uma indicação, no texto, da necessidade da formulação e operacionalização de uma metodologia que desenvolva o processo de participação dos sujeitos da política de assistência social na perspectiva de terem acesso aos seus direitos. Esta perspectiva de ensejo à participação está vinculada à questão da territorialização, ou seja, nas “garantias de canais de participação local” (Brasil, 2004, pg.44). Assim, o que é mais explícito é a imprecisão do que se entende como participação e de como incitá-la, sendo mais explícito quando ela é referida na LOAS (1993) e na PNAS (2004) na dimensão representativa do chamado “controle social”, que a reduz aos espaços institucionais dos conselhos e conferências da política de assistência social14.

A constatação do seu tratamento exíguo nas legislações da política, em que a centralidade está nos espaços conselhistas e nas conferenciais, nos levou a tentar apreendê-la nas orientações técnicas dos serviços ofertados nos CRAS, quando se define a função e a finalidade das oficinas, ou seja, do trabalho socioeducativo com grupos, com as famílias. As oficinas são refletidas como uma mediação na materialização dos objetivos do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família

14 A LOAS regulamenta a participação em seu artigo 5, inciso II, “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis” (Brasil, 1993, p. 9), o que acaba por restringir a participação popular nos espaços de representação, institucionalizando-a.

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(PAIF), no nível da proteção social básica, uma vez que orbitam na realização de espaços coletivos com as famílias que contemplem suas questões, necessidades e demandas envolvidas em reflexões, trocas e conhecimentos coletivos. Subtende-se que sua realização precede a feitura de estudos prévios, avaliações e planejamento, os quais devam necessariamente considerar a realidade social e cultural dos territórios atendidos pelos CRAS.

O PAIF (Brasil, 2012) apresenta a diretriz de que o trabalho com grupos deve potencializar três dimensões - convivência, reflexão e ação. Oficinas de reflexão priorizam a tematização de questões e temáticas de interesse das famílias; oficinas de convivência priorizam atividades voltadas para o vínculo de pertencimento, para a comunicação e interação, o que pode possibilitar o desenvolvimento de processos mais amplos de participação dos sujeitos no território. Estes conteúdos são muito próximos dos desenvolvidos na de ação, em que o foco é o fomento da participação, do protagonismo e da autonomia para o acesso a direitos (Brasil, 2011, p. 29). Nessa perspectiva, o PAIF incorpora, em suas normativas, que o trabalho com famílias e com e no território deve realizar o desenvolvimento de atividades de grupo e comunitárias a serem planejadas pela equipe técnica, e com a participação dos sujeitos. Ou seja, não obstante a constatação de que, de acordo com a PNAS, “há a necessidade de produzir uma metodologia que se constitua ao mesmo tempo em resgate de participação de indivíduos dispersos e desorganizados, e habilitação para que a política de assistência social seja assumida na perspectiva de direitos publicizados e controlada pelos seus usuários” (Brasil, 2004, p.

46), essas indicações das construções deste trabalho socioeducativo nos apresentam possibilidades de ativação do que aqui neste texto consideramos central no trabalho profissional no SUAS15.

Nos equipamentos dos CRAS e CREAS trabalhamos no atendimento às mais variadas expressões da questão social vividas pelos indivíduos e as famílias que se explicitam em demandas diversas pelo acesso a benefícios sociais, trabalho e renda, alimentação, violências e discriminações, etc. Essas demandas necessitam também serem apreendidas pelos processos coletivos que as geram bem como necessitam serem debatidas em espaços em que essa dimensão coletiva do que as geram sejam também apreendidas coletivamente pelos indivíduos e pelas famílias que demandam a política. Esta abordagem coletiva das necessidades sociais – do que as geram e de como são coletivamente vividas pelos sujeitos sociais - tem na dimensão territorial em que se situam os equipamentos um espaço que precisa ser ocupado pelos profissionais. Ocupado no sentido de ser apreendida as possibilidades existentes, latentes ou a construir “processos de mobilização e organização popular e de luta pelos sujeitos que o habitam, produzindo uma ativa e potente articulação entre os equipamentos, a dinâmica das expressões das desigualdades sociais e a teia organizativa do território”. Ou seja, nosso trabalho profissional tem uma possibilidade forte de fazer visibilizar resistências e inconformismos, o que pode nos possibilitar abrir novos horizontes de ação que nos conduzam para além das demandas institucionais-legais que nos são postas. Esta dimensão ainda desafiante ao trabalho profissional pode nos possibilitar a que nossas

15 Uma contribuição nesta direção está em Eiras (2012).

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ações não se pautem pelo fornecimento de informações que levem à simples adesão dos sujeitos aos programas institucionais, à individualização do acesso a serviços e políticas que reforçam a perspectiva do apassivamento. Mas o sentido oposto, ou seja, que nos abre possibilidades de trabalhar nos sujeitos a busca da construção de estratégias coletivas para o encaminhamento de suas necessidades16.

Uma outra perspectiva de trabalho a ser tratada é possibilitar a viabilização da participação coletiva dos sujeitos no processo de avaliação dos serviços que operamos, socializando a eles informações acerca da política, dos serviços, dos benefícios, atribuindo transparência e visibilidade às situações de inexistência, oferta precária ou violação dos direitos. Precisamos, por exemplo, questionar os critérios de elegibilidade e estabelecer alianças com os sujeitos que recorrem ao nosso trabalho, conquistando legitimidade junto a eles. Estas perspectivas tendem a representar uma abertura de novos horizontes para o trabalho profissional, são possibilidades de trabalho que tendem à fortalecer a presença das demandas e interesses das classes subalternas nos espaços institucionais da política17.

Essas iniciativas podem nos conduzir a enfrentar processos que vêm formando uma cultura profissional que tende a dar primazia à ação imediata, circunscrita às demandas institucionais centradas no produtivismo medido pelo quantitativo de atendimentos de famílias e indivíduos e nas tendências das abordagens individuais das “vulnerabilidades e dos riscos sociais”. Essas iniciativas podem tensionar o apoliticismo e o acriticismo da minimização e dos focalismos e seletivismos dos serviços, recursos e benefícios ofertados pela política nas diferentes realidades nacionais em que são desenvolvidas. Politizar a política pelo fomento e indução de desenvolvimento de mobilizações e organizações coletivas dos sujeitos que a ela recorrem nos parece um dos caminhos profícuos para tensionar18 e resistir às regressões das nossas competências e atribuições profissionais na política de assistência social.

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16 A Lei de Regulamentação (1993) da profissão determina como competência do assistente social “prestar assessoria e apoio aos movimentos sociais em matéria relacionada às políticas sociais, no exercício e na defesa dos direitos civis, políticos e sociais da coletividade”; Código de Ética (1993), afirma como direito do profissional “apoiar e/ou participar dos movimentos sociais e organizações populares vinculados à luta pela consolidação e ampliação da democracia e dos direitos de cidadania”. Ver também CFESS (2010, 2011).

17 Outros elementos nesta direção foram tratados em Duriguetto (2014) e Duriguetto e Marro (2016).

18 Na segunda parte desta Coletânea serão tratados outros elementos centrais para a produção destes tensionamentos.

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CAPÍTULO 8

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