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IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS DA CONDIÇÃO DE “ASSISTIDO”

Conforme sinalizamos anteriormente, ser um “usuário” ou “assistido” da política de assistência social, sobretudo, diante do atual modelo neoliberal de desenvolvimento das políticas sociais brasileiras, pode acarretar diferentes implicações para a vida daqueles(as) que se encontram nessa posição. Trata-se de uma condição que é permeada por inúmeras contradições que, inclusive, extrapolam os limites do que cabe à política em si, ainda que esta exerça uma importante função de mediação na vida de tais sujeitos.

O caráter focalizatório e seletivo que marca a política de assistência social em nosso país, somado ao demérito social que acompanha as ações do campo, já nos traz importantes questões para uma inicial e necessária caracterização destes(as) que representam o público-alvo dos programas e serviços socioassistenciais ofertados pelo Estado brasileiro. Sabemos que a extrema pobreza marca as condições de vida de 55% da população atendida pela política de assistência social, que possuem renda per capita de até R$70, conforme apontam os dados de 2014 levantados através do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Além disso, a maioria das(os) cadastradas(os) é mulher, de cor/raça considerada parda ou preta, de baixa escolaridade e residente de áreas urbanas (cerca de 77%, o que demonstra a falta de cobertura nas áreas rurais), bem como enfrenta barreiras significativas no acesso adequado a serviços básicos como energia elétrica, água, coleta de lixo e escoamento sanitário - nesse cenário, contudo, são as áreas rurais que se destacam (Brasil, 2014).

O contexto da pobreza se constitui por múltiplas implicações, não apenas pela escassez de oportunidades e bens materiais, mas também pela produção de diferentes processos psicossociais

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que atravessam as formas pelas quais a população pobre se reconhece nessa posição e busca superá-la. A cultura da pobreza, muitas vezes, acaba sendo reproduzida acriticamente por aqueles que a vivenciam no cotidiano, o que interfere negativamente em seus processos de consciência, conforme já discorrido anteriormente.

Estanislau & Ximenes (2016) apontam que a construção histórica da figura do pobre como necessitado, acomodado, vagabundo e marginal gera nos próprios sujeitos experiências e introjeções marcadas pela humilhação, vergonha e inferiorização. Associado a isso, Martín-Baró (2017) nos alerta para a ideologia do fatalismo que acompanha a vida dos latino-americanos, sobretudo, os mais empobrecidos, acarretando a predominância (ainda que não absoluta e cheia de contradições) de sentimentos e ações forjados no presentismo, no individualismo, na resignação e na passividade frente às adversidades vivenciadas no cotidiano de desigualdades.

Consideramos, por conseguinte, que alguns dos elementos ideológicos presentes no cotidiano das práticas na política de assistência social dificultam processos de conscientização e organização coletiva dos sujeitos atendidos. Tais ideologias, muitas vezes, acabam por reforçar a subalternidade instituída, na medida em que se materializam através de ações e programas não apenas insuficientes para a combate à pobreza, como, também, legitimadores dessa realidade. Por esta razão, ser um “assistido” nem sempre traz condições para a superação dos estigmas sociais da pobreza, como os já citados sentimentos de vergonha e humilhação, podendo, inclusive, reforçá-los (Yazbek, 2006).

Conforme apontam Freitas e Guareschi (2014), a noção de “necessitado” se faz presente na caracterização dos “usuários” da assistência social desde as diretrizes traçadas pela política, a partir da elaboração de documentos como o PNAS (2004), a LOAS (1993) e as Normas Operacionais Básicas do SUAS (NOB/SUAS), publicada em 2010. Outros autores como Silva (2015) e Couto (2015) reafirmam que a imprecisão ou dispersão conceitual do público-alvo da política possui uma finalidade prática perante a fragmentação dos programas socioassistenciais, bem como na autorresponsabilização e despolitização dos sujeitos e comunidades por eles atendidos.

A vinculação do “assistido” a “necessitado” traz distintas e perversas implicações, estando relacionadas com as formas, predominantemente, adotadas para intervir frente à pobreza: a filantropia e o assistencialismo, que caminham lado a lado na construção histórica das ações socioassistenciais. Nessa perspectiva, que serve como pilar da política neoliberal, a lógica de direitos é desfigurada e a assistência social passa ser compreendida como uma ajuda, um favor do Estado ou de um governo, o que interfere, ainda, na forma como os sujeitos destinatários se relacionam e se colocam perante os programas e ações desenvolvidos (Yazbek, 2006 & Euzébios Filho, 2016).

A lógica assistencialista presente reflete(-se) na despolitização e baixa participação da população não apenas na política, exercendo seu controle social, como, também, em processos de mobilização por direitos sociais mais amplos, conforme sugerem Bravo e Correia (2012). Além disso, a negação da assistência social como direito está, totalmente, imbricada na desvalorização

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e rebaixamento da política, bem como de seus destinatários, considerados pelo imaginário social como subalternos, não-cidadãos e não-dignos de direitos - condição essa, conforme afirmamos, bastante assimilada e reproduzida por aqueles que a enfrentam.

Assim, ser um “assistido” da política apresenta toda uma carga histórica negativa da qual os sujeitos buscam, de alguma maneira, se desvencilhar. Da mesma maneira em que o pobre é percebido a partir da posição social que o outro ocupa, estar na condição de assistido pode ser entendido como algo emergencial diante de uma situação tida como provisória de desemprego, ainda que, na prática, muitos carreguem uma longa trajetória de dependência dos recursos e programas socioassistenciais (Yazbek, 2006). A concepção de transitoriedade da assistência pode, ainda, apresentar algumas problemáticas, tais quais: a oposição entre assistência social e trabalho, o que se efetiva na política de desmantelamento e fragmentação do campo de proteção e seguridade social no Brasil; e o pouco envolvimento e implicação dos sujeitos na condução da luta pela ampliação da política e dos direitos sociais.

Nesse sentido, conforma-se um intenso ciclo de reprodução das desigualdades sociais. Na contramão do necessário fortalecimento psicossocial dos sujeitos, a subalternidade reforçada a partir das contradições observadas na concretização da política de assistência social tem, em alguma medida, corroborado com processos psicossociais de fatalismo e resignação frente à realidade social (Pinto, 2019). A dinâmica histórica da pobreza vivenciada na particularidade do cotidiano dos

“assistidos” é, por vezes, individualizada, o que, somado ao caráter focalizatório e compensatório da política, contribui para camuflar a origem da luta de classes e transformá-la em uma disputa intraclasse pelo “ganha-pão” diário (Euzébios Filho, 2016).

Assim, diante da escassez de recursos ofertados pelos programas sociais mínimos, configura-se um cenário de competição pelo acesso a “ajuda” do Estado, valendo-configura-se da vigilância, fiscalização e denúncia daqueles que descumprem às condicionalidades postas para sua obtenção. Mais uma vez, observamos o pobre ser (auto)responsabilizado pelos problemas sociais que enfrenta, ao passo em que o Estado é desresponsabilizado pela garantia de direitos e efetivação das políticas de proteção social (Bravo & Correia, 2012).

Depreendemos, portanto, que os programas e ações ofertadas são destinados a sujeitos e grupos sociais que tem suas experiências de vida perpassadas pelas mediações ideológicas e afetivas que precisam ser considerados no processo de construção e efetivação da política em tela. As ações têm sido empregadas para tentar mitigar os efeitos da vida sob o manto do capitalismo, em sua face neoliberal e periférica na qual nos inscrevemos, e tenta produzir, portanto, melhorias materiais e subjetivas nas condições de vida de uma imensa população empobrecida. Entretanto, consideramos que deve ocorrer uma melhor articulação com os demais campos essenciais para a proteção social, como emprego e fomento ao trabalho, bem como às demais políticas setoriais de saúde e educação, estimulando o protagonismo e controle social ao representar um espaço de coletivização das demandas e necessidades para o fortalecimento e ruptura com a subalternidade posta.

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Isso implica, ainda, em romper com a lógica de desmonte do setor público e o incentivo à iniciativa privada, a burocratização da administração pública, a precarização das relações de trabalho que se acentua, com alta rotatividade, cargos temporários e mal remunerados, entre outras questões que impactam, diretamente, nas condições de trabalho dos(as) profissionais que atuam nas políticas sociais, em especial, nos equipamentos da assistência social, comprometendo o desenvolvimento das ações comunitárias articuladas com os sujeitos e grupos sociais (Behring, 2011). Sabemos, nesse sentido, que os desafios são inúmeros, inclusive, estruturais.

Em tempos de aprofundamento das mazelas e perversidades do brutal sistema capitalista, a luta pela ampliação e pela universalização dos direitos sociais torna-se urgente. Ao mesmo tempo, consideramos que essa luta não pode escapar de um projeto ético-político que avance na construção de ferramentas efetivamente emancipatórias, que consigam atingir o cerne da desigualdade social de modo a superá-la. A potencialização desse processo passa, necessariamente, por uma atuação (profissional, mas, sobretudo, de classe) que privilegie a conscientização e organização coletiva junto aos sujeitos explorados e oprimidos e aos movimentos sociais insurgentes.

Trata-se, assim, de um processo dialético posto na batalha permanente contra a pobreza e miserabilidade social produzidas pelo sistema capitalista, o que sugere a superação da pobreza e precariedade que fundamenta e dá sentido à própria política, em especial, em sua face neoliberal.

Nessa direção, torna-se indispensável a adoção de uma concepção de sujeito como histórico e ativo, de modo a romper com a noção dominante de “usuário” e “assistido” que carrega pressupostos individualizantes e que servem à subalternização da população pobre e superexplorada, bem como à naturalização de suas condições precárias de vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política de assistência social brasileira apresenta uma longa trajetória de avanços, mas que ainda encontra barreiras relacionadas à garantia de direitos e à melhoria nas condições de vida dos setores mais pauperizados da sociedade. As importantes conquistas obtidas pós-Constituição e os entraves neoliberais impostos à sua efetiva implementação revelam os desafios de superar o modelo assistencialista e focalizatório marcante das ações socioassistenciais, tendo em vista, sobretudo, os processos de assujeitamento e dominação - material e psicossocial - que acometem uma grande maioria da população trabalhadora e subalterna.

Buscamos, neste capítulo, contribuir para os estudos sobre esta particular política social dando uma especial atenção às problemáticas postas para os sujeitos destinatários de suas ações, pois através da relação construída com e para estes é que enxergamos a potencialidade e o sentido de todas as questões, aqui, levantadas. O debate segue em aberto na busca por estratégias de superação da desigualdade capitalista. Como sujeitos históricos e transformadores, cabe a nós a constante e urgente tarefa de desvelar o penoso presente com vistas a edificar um novo futuro.

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CAPÍTULO 7

POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

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